domingo, 20 de fevereiro de 2011

Além da Janela - Parte IV



O legado de Valkíria se espalhava rapidamente, a cada momento surgia novas pessoas que no passado tinham sido alunos dela. Em meio a essas não demorou para que alguém que tivesse acesso à confecção de livros se oferecesse para publicar os registros, traduções, etc. que ela tinha feito no decorrer de sua vida.
 
Também já tinham me procurado para fazer a restauração da casa, o dia tinha sido muito movimentado.
 
Entre essas pessoas havia também quem tinha acesso aos meios de comunicação, alguns dias depois uma matéria completa sobre o trabalho de Valkíria e seu testamento estavam prontos e sendo expostos a todos.
 
Após essa reportagem curiosamente não surgiram mais incômodos, seja por parte daqueles que diziam querer “ajudar” ou daqueles que tinham por finalidade criar problemas.
 
Após os primeiros reparos, provisoriamente tinha me mudado para a casa, com a finalidade de me dedicar mais ao trabalho que me fascinava, sentia-me profundamente atraído pelo trabalho que realizava.
 
Já anoitecendo quando a casa estava vazia me sentia sonolento, ocupei o sofá, onde sabia que Valkíria gostava de dedicar seu tempo aos livros que ela lia, e fiquei analisando os esboços de como ficaria a casa quando restaurada.
 
Quando a lua ocupava o centro da grande janela que ficava à frente do sofá, sentia dificuldade em manter os olhos abertos, mas ainda assim queria ficar um pouco mais, apreciando o luar e meus esboços.
 
Tive a impressão de alguém estar por traz do sofá, também observando os esboços.
 
Nesse momento ouvi uma voz suave me perguntando:
 
- Por que em seus desenhos você retirou essa parte do muro no canto da mesma parede do portão e desenhou esse portão grande no lugar.
 
Sem me dar conta, respondi naturalmente:
 
- É só uma entrada para automóveis, o terreno é bem grande e tem espaço para que alguns fiquem estacionados.
 
Como resposta ouvi, da mesma mulher que tinha aquela voz melodiosa.
 
- Ah! Eu não gostaria que essas máquinas mau cheirosas fossem guardadas na casa, prefiro que nesses espaços sejam plantadas mais algumas árvores e, talvez um pequeno jardim com uma fonte, tenho certeza que vai ficar muito mais bonito.
 
Acordei no meio da noite, a casa estava em total silêncio, quebrando eventualmente por algum carro que passava pela rua, estava com o corpo dolorido por ter dormido sentado.
 
Aquela voz melodiosa do sonho ainda estava presente, parecia ter sido tão real, mas não quis esperar amanhecer, concordava plenamente, com mais árvores e o jardim com a fonte, sem qualquer dúvida ficaria mais bonito e, antes que as pessoas chegassem para continuar o trabalho, o novo esboço já estava pronto.
 
 
 
Os reparos na casa andavam mais rápido do que imaginava, a escada não esta comprometida como anteriormente havia pensado, só precisa ser lixada e envernizada, a impressão de que estava apodrecida era devido a uma camada de musgo que estava se acumulando sobre ela, devido a infiltração no telhado.
 
Os espaços para o jardim e a fonte já estavam demarcados e mudas de Ipês tinham sido plantadas, nessa casa não haveria espaço para as máquinas mau cheirosas, que poluem e estão sempre congestionando as ruas. A fonte seria instalada logo pela manhã.
 
O trabalho maior ainda por fazer era o telhado, esse não tinha como ser restaurado, não tinha telhas para reposição, e logo surgiriam infiltrações em outros lugares.
 
Tinha me acostumado nos finais das tardes me sentar no sofá defronte à grande janela da sala, estava anoitecendo e mais uma vez a casa estava vazia, me sentia cansado e sonolento, queria mais uma vez descansar no sofá e apreciar o jardim que iria se formar.
 
Pensei ter acordado de um cochilo, com a voz melodiosa que estava se tornando familiar, quando a lua já brilhava alto no céu.
 
- O jardim está ficando lindo, quero ver passarinhos bebendo água na fonte nos dias de verão.
 
- Prefiro que não restaure o telhado, vai ficar melhor se fizer um novo. Sinto vergonha do telhado que está na casa. Suas telhas são uma herança vergonhosa de quando o trabalho era feito por escravos nesse país, elas foram feitas nas coxas da gente que foi escravizada, não quero nem sombra dessa vergonha aqui, lembro que meu pai comentou que usou esse material por não ter outra opção. Tenho certeza que agora há outras possibilidades.
 
 
 
Era 03h00 da manhã e me sentia totalmente desperto, meus sonhos pareciam muito vivos, sabia que o sono não mais voltaria, assim resolvi me distrair com as anotações que Valkíria tinha deixado, um pensamento começou a se instalar em minha mente, senti que estava na hora de pensar em alguma outra ocupação, depois de restaurar essa casa meu trabalho como arquiteto iria diminuir gradualmente.
 
O trabalho que Valkíria fez em sua vida estava me fascinando.
 
 
 
Pela manhã, junto com as pessoas que iam fazer o novo telhado chegou uma senhora, carregando um quadro enorme, ela disse ter sido uma antiga aluna de Valkíria, trazia com ela um quadro de sua professora, comentou que queria colaborar com os trabalhos que seriam feitos na casa.
 
O quadro que trazia era um retrato expressionista de Valkíria, queria doar à casa, sentia vontade de ensinar as pessoas a pintar, atividade que aprendeu quando ainda era criança, descobriu sua facilidade com o desenho e pinturas com a ajuda de Valkíria.
 
Mais um dia os trabalhos no telhado seriam concluídos, depois disso só restariam alguns detalhes para concluir a restauração.
 
Muitos dos ex-alunos de Valkíria estavam se apresentando querendo dar continuidade ao trabalho iniciado por ela, só que agora em diversas atividades. Também vieram aqueles que queriam estudar os artigos que ela tinha traduzido, as anotações do médico e da própria Valkíria.
 
Vários trabalhos estavam sendo realizados simultaneamente.
 
Quando a noite se avizinhava, mais uma vez tomado pelo sono ocupei o sofá e fiquei apreciando o jardim.
 
Estava muito sonolento e outra vez aquela voz melodiosa chegou aos meus ouvidos.
 
 
- Sabe aquele tronco que colocaram na frente do portão, onde as pessoas se aglomeram para pegar o ônibus. É muito feio aquilo.
 
- Você gostaria que tentássemos mudar o ponto de lugar, por causa do movimento.
 
- Não, você não entendeu, as pessoas são bem vindas. É que quando a casa foi construída naquele lugar tinha sido plantado um Ipê, amarelo, era muito lindo. Fiquei muito triste quando o cortaram e colocaram aquele tronco morto horrível.
 
- Poderia ser plantada um outro no lugar, faria sombra para as pessoas que ficam esperando o ônibus.
 
- As parasitas costumam dar trabalho para se fazer esse tipo de alteração, aliás é só o que as parasitas sabem fazer, atrapalhar os outros.
 
- Acho que você consegue pensar em alguma coisa.
 
 
 
Quando acordei o diálogo ocorrido em meu sonho ainda estava muito vivo, resolvi fazer as coisas por iniciativa própria. Sabia onde encontrar uma árvore daquele tipo já meio desenvolvida.
 
Decidi sequer comunicar ao que chamam de poder público o que iria fazer, pedi que os trabalhadores arrancassem o ponto de ônibus e, em seu lugar plantei o Ipê. Esse nome “poder público irrita, por que o chamam de público se a sua finalidade é atender os interesses das parasitas, logo deveria ser chamado de “poder parasita”.
 
Também pedi à senhora que trouxera o quadro que fizesse uma placa bem bonita para substituir a de mau gosto sem qualquer estética que estava no ponto e pedi que a fixassem junto ao muro.
 
Não demoraria muito e aqueles que usavam os ônibus teriam uma sombra para se abrigarem.
 
Logo surgiu uma parasita se queixando prometendo multar a casa, não permiti que ela entrasse e fui atendê-la no portão. Naquele momento o ponto estava com várias pessoas esperando o ônibus, elas se aglomeraram à nossa volta e começaram a vaiar a parasita, que contrariada deixou o local e felizmente não mais retornou.
 
 
 
Parasitas são seres curiosos às vezes tenho a impressão de que seus problemas não se limitam aos transtornos de personalidade, parece que ainda têm algum tipo de déficit mental, qual será a parte da palavra expulsão que elas têm tanta dificuldade em entender, é só a gente se distrair um pouco que elas começam a reaparecer e multiplicar...
 
 
 
Não deu tempo de acabar a restauração da casa e parte daqueles que no passado tinham sido “alunos” de Valkíria já estavam desenvolvendo seus trabalhos nela. A senhora que trouxera o quadro estava ensinando pintura, a grande sala tinha se transformado em uma biblioteca, as anotações de Valkíria tinham sido impressas e encadernadas e ocupavam um lugar de destaque entre muitos outros livros, vários que tinham sido doados, a maior parte deles sobre o psiquismo.
 
Também não faltaram aqueles que trabalhavam com a saúde mental que se dispuseram a atender aqueles que precisassem desse tipo de auxílio e que queriam continuar o trabalho iniciado por Valkíria.
 
Só restaram uns poucos detalhes para concluir a restauração, à tarde depois de descansar um pouco iria procurar fechaduras para as portas e portões da casa.
 
Quando já estava sonolento, a mesma voz melodiosa começou a sussurrar em meus ouvidos.
 
- Mas por que você quer colocar fechaduras nas portas e no portão?
 
- Oras, para poder fechar a casa quando não houver atividades sendo realizadas nela.
 
- Ah! Preferia que só fossem colocadas as maçanetas e o acesso ficasse livre àqueles que quisessem conhecer a casa e os trabalhos que forem realizados.
 
- Mas é necessário algum tipo de segurança, para proteção e para que não estraguem ou roubem o que pertence à casa.
 
- Oras as pessoas têm uma idéia curiosa do que vem a ser segurança, ela não está nas coisas, a segurança está nas pessoas e se é que há necessidade de algum tipo de proteção, essa deve ser destinada às pessoas e não às coisas, esse tipo de segurança que as pessoas insistem em criar são uma inutilidade , sempre que há alguém pensando em um sistema de segurança, há muitas outras pensando em burlar esse sistema. Gostaria muito que a casa permanecesse aberta, como sempre ficou, desde que foi construída.
 
 
 
Quando acordei no final da tarde, acabara dormindo além do que desejava, as minhas idéias sobre segurança e proteção estavam fervilhando em minha mente e, nesse momento sabia que não mais seria possível resolver isso nesse dia, por outro lado estava convicto de que minhas idéias até então claras, estavam com seus significados ideologicamente construídos, comprometidas.
 
 
 
No final da tarde pouco antes de anoitecer quis dar uma volta pelo quintal e apreciar o jardim, estava tudo muito bonito as plantas cresciam rapidamente e as árvores logo estariam encorpadas, sentei-me para descansar no banco de jardim ali colocado para essa finalidade.
 
A lua estava cheia e amarelada, brilhava muito e as primeiras estrelas começavam a brilhar no céu, ao escurecer uma luz branda foi surgindo junto à grande janela da sala a qual passava a impressão de um leve silhueta de uma mulher sentada no sofá lendo algum livro.
 
Fiquei curioso, achava que a essa hora a casa já estava vazia.
 
Um pensamento se passou rapidamente, percebi que não mais iria cursar uma nova Universidade e me voltar ao estudo do psiquismo, sabia que minha vida ia passar por sutis transformações.
 
Permaneci por um longo tempo apreciando a casa agora restaurada e a imagem que via Além da Janela, na perspectiva em que estava, no interior da casa, que a cada instante se tornava mais nítida.
 
Uma janela sempre é um elo de ligação entre dois mundos.
 
Na perspectiva do mundo em que estava habituado essa silhueta que estava vendo pertencia ao mundo dos delírios, mas talvez do ponto de vista de quem se encontra do outro lado da janela, o mundo ao qual estamos habituados pode ser interpretado como um conjunto de delírios.
 
Quando a noite já tomava conta do horizonte dei uma última volta pelo quintal para apreciar o trabalho realizado, sabia que ao entrar na casa o acesso ao mundo que estava habituado não mais ocorreria, iria para algum outro lugar, para Além da Janela.
 
Dei meu passeio ao redor da casa e me senti pronto para a partir de então conhecer uma nova vida, não achei necessidade de qualquer despedida.
 
Ao abrir a porta da sala, notei que a luz ainda que tênue era um pouco mais claro do que a impressão que tinha ao olha-lá do exterior da casa.
 
Ao entrar na sala pude ver claramente uma linda mulher sentada no sofá há muito conhecido lindo um livro.
 
 
- Boa noite.
- Boa noite, tudo bem com você?
- Sim, tudo ótimo. O que você está lendo?
- Nada, só estava folheando, enquanto esperava por você.
Queria agradecer, a casa, o jardim, ficou tudo muito lindo.
 
 
 
Pensei em comentar dizendo que achava que a conhecia, mas sabia ser desnecessário, já tínhamos nos visto muitas vezes, mas sempre quando estávamos em lados opostos da janela.
 
 
 
- Por que não se senta aqui ao meu lado, vem ver a lua, ela está muito linda.
 
- Sim, claro, é um prazer.
 
- Fiz um chá, partilha ele comigo.
Está uma delícia.
 
- Sim, claro, já te disseram que sua voz é melodiosa?
 
- Sim, quando adolescente e ainda partilhava o mundo com meu pai, ele queria que eu aprendesse música, mas depois a vida tomou outros rumos, e essa idéia ficou perdida no passado.
 
- Acho que entendo, parece que a gente tem uma hora certa para as coisas e quando essa hora passa fica difícil retomá-las, não acha?
 
- Acho sim. Você notou no jardim, que entre as plantas e as árvores parece que se formou uma pequena trilha, e uma trilha, como uma janela, também é um elo de ligação entre dois mundos.
 
- Não, não tinha tido essa intenção ao planejar o jardim, mas você tem razão, olhando daqui a trilha é bastante nítida.
 
- Gostaria de caminhar por ela, você me acompanha.
 
 
Antes de formular a resposta me vi com Valkíria, em frente ao jardim, na entrada da trilha. Ela disse:
 
 
- Vem comigo, vamos juntos, de mãos dadas.
 
 
 
Valkíria disse:
 
Sabe, no fim desse trilha, há uma pequena casa, cercada por um gramado, lá vivem duas crianças, que precisam de minha companhia, tem também muitos bichos, cachorros e gatos, são muito meigos. Tem até um leão, ele é muito manso e está sempre com sono.
 
Às vezes gostaria que houvesse mais alguém, para partilhar comigo e ajudar a cuidar de todos eles.
 
 
 
Sabia que não era mais necessário exprimir qualquer resposta, caminhávamos já há algumas horas, agora em silêncio, só quebrado pelo sons de nossos passos na grama rala da trilha, devíamos estar já muito distante da casa.
 
A luz do luar clareava intensamente o nosso caminho, mas atrás de nós as árvores se fechavam, não deixando qualquer vestígio da trilha que se desenhava à nossa frente.
 
Uma bifurcação se desenhou à nossa frente, do lado esquerdo, agora sabia o que existia na bifurcação, mas Valkíria permaneceu serena, logo à frente podíamos avistar o gramado e a casa.
 
Valkíria disse:
 
- Vamos nos sentar na cadeira da varanda e descansar um pouco.
 
 
 
Enquanto descansávamos, agora com a luz do luar um pouco mais branda, a entrada da trilha começava a se apagar e as árvores que ladeavam o gramado, lentamente pareciam se aproximar da varanda e a nos envolver.
 
As duas crianças que dormiam no interior da casa se levantaram e vieram para a varanda.
 
Os galhos das árvores estavam tão próximos que era possível tocá-los e também encobriam um pouco do luar, parece que estavam apagando a lâmpada, para que pudéssemos dormir.
 
...
 
 
 
Lá na curva onde espaço se encontra com o tempo,
bem juntinho ao centro de tabuleiro,
tempo é espaço e espaço é tempo,
o antes pode ser agora,
e o depois já aconteceu.

Lá não há primeira, segunda ou terceira pessoa,
todos somos nós.
Não importa se animados ou inanimados,
mas ao mesmo tempo,
o nós não deixa de ser eu, você ou ainda ele.
Lá se centra a essência do Universo,
por outro lado não há tempo nem espaço,
e ao mesmo tempo o espaço é infinito,
e o tempo pode ir adiante como ao passado retornar.
O centro do tabuleiro
se encontra logo ali, além da varanda,
só que quando lá chegar, tabuleiro e varanda,
além do Universo irão estar.
 
 
 
Dedico à Marion, que está sempre presente com seu carinho, companhia, dedicação... Me incentivando e inspirando.
 
Um grande beijo, em sua alma.

Além da Janela. - Parte III



Sabia que a noite estava perdida, já era madrugada e de nada adiantaria tentar voltar para a cama, assim voltei à prancheta, para aqueles desenhos monótonos, aquelas caixinhas, todas iguais.
 
Ao iniciar arquitetura tinha dois sonhos, achar caminhos para construir casas populares, longe de encostas e enchentes; o outro era restaurar algumas das inúmeras casas antigas abandonadas, existentes na cidade.
 
Não demorou muito e, após a formatura tive meus sonhos frustrados.
 
Os projetos de casas populares só ficaram no papel em uma bela monografia enfeitando a biblioteca da Universidade, havia um total desinteresse daqueles que se dizem compor o poder público e, por parte daqueles que se dizem necessitados, parece que preferiam ficar na posição de necessitados, esperando alguma eleição para poderem se beneficiar de alguma promessa, daqueles que se propunham a compor o que chamam de poder público.
 
Assim, projetos muitas vezes viáveis, práticos e de baixo custo ficavam rabiscados nos papéis, aguardando, em filas intermináveis de uma burocracia sem fim.
 
Já as casas que precisavam de restauração enchia os olhos daqueles que funcionam como parasitas, ficavam esperando as construções ficarem condenadas, para em seu lugar construírem conjuntos comerciais, mais lucrativos e fonte de muitos impostos, as parasitas se realizavam a cada dia que surgia uma nova construção condenada, eram ávidas, por um lucro interminável.
 
Olhando ao espelho disse: Franz, já passou da hora ou de fazer seus sonhos se concretizarem, você não nasceu para satisfazer os desejos de parasitas, se com arquitetura você não consegue se realizar, talvez esteja na hora de achar uma nova ocupação.
 
De qualquer forma me sentia curioso com esse último pedido de projeto, o endereço me parecia familiar, tinha a impressão de que já conhecia o lugar.
 
 
 
Quando começou a ameaçar o amanhecer, estava sentindo a boca amarga dos vários cafés que tinha absorvido, mas não quis esperar mais, o mau humor estava instalado e o sono ia me perseguir o dia todo.
 
Mesmo assim fui ver do que se tratava o pedido da noite anterior. Ao chegar às proximidades notei que minhas percepções não estavam me enganando, eu conhecia muito bem o lugar e notei também que a casa era conhecida.
 
Ainda mais um incomodo me perseguia, exatamente na porta tinha um ponto de ônibus, e já tinha uma pessoa ao lado dele, levaria pelo menos uma hora para que o sol surgisse, mas não tinha alternativa teria que estacionar em uma travessa próxima, tinha certeza que com o movimento do dia, dificilmente conseguiria uma vaga nas proximidades.
 
Chegando ao portão não tive mais nenhuma dúvida, era a casa que meus pais me levava para passear, quando ainda era muito pequeno.
 
Ao empurrar o portão enferrujado ele rangeu, raspando no chão, ao colocar o pé no degrau para entrar no quintal toda minha irritação se desvaneceu, as lembranças de minha infância vieram à tona.
 
Aliás, não eram bem lembranças, eram só sentimentos, nunca entendi por que meus pais me levavam tantas vezes a passear pelo imenso quintal daquela casa, mas o sentimento era muito vivo, um extremo bem estar invadiu meu coração, como ocorria quando era criança, já nos primeiros passos naquele quintal.
 
Inicialmente me passou uma impressão de abandono, mas muito diferente das casas abandonadas que conhecia, nesta, até no abandono havia um certa organização, se fosse para restaurar, pelo menos nos jardins haveria muito pouco a fazer, a natureza sabia escolher os seus caminhos, pouco ou nada ela necessitava de nossa interferência.
 
Uma pena, mas para as parasitas isso não tinha nenhuma importância, o lucro era mais importante do que qualquer jardim.
 
Esse breve pensamento foi o suficiente para restaurar meu mau humor.
 
De qualquer forma decidi nada fazer no momento estava em uma sexta feira, véspera de feriado, tinha outras destruições a cumprir, para atender as parasitas, ainda queria perguntar a meus pais, que já há algum tempo não os via, sobre os passeios que eles me levavam nos jardins dessa casa.
 
 
 
A curiosidade em relação à casa e minha infância foram maior, no meio do dia interrompi meu trabalho e fui visitar meus pais, mas sabia que a visita era só um pretexto para satisfazer minha curiosidade.
 
Há muito não falava com eles como nessa tarde, que avançou até algumas horas após o jantar, a conversa só foi interrompida quando eles já estavam tomados pelo sono.
 
Ambos tinham tido aulas com Valkíria, a dona casa, eram incansáveis ao falar sobre o bem estar que sentiam na companhia dela, quando ainda eram crianças.
 
Quando a Professora já não estava mais entre eles, nunca deixaram de freqüentar a casa, mesmo que só tivessem acesso aos jardins, completaram dizendo que muitos dos que aprenderam com ela também tinham esse hábito, acreditavam que como eles, haviam outros que na atualidade ainda continuavam visitando a casa.
 
Depois que nasci e comecei a dar meus primeiros passos muitas vezes me levaram para passear na casa.
 
Diante da fala deles, e os sentimentos contidos nessas falas, senti um aperto no coração, não tive coragem de falar sobre o que iria acontecer.
 
Diferente do que era meu hábito, nessa noite dormi em meu antigo quarto, do tempo de adolescência, na casa de meus pais.
 
 
 
Ao amanhecer, pouco antes de o sol surgir, após um rápido café, a contragosto de meus pais resolvi ir trabalhar, mesmo estando em um feriado. Sentia-me atraído por ir conhecer a casa, cujo jardim muitas vezes fui levado a passear quando criança.
 
Como ocorrido anteriormente, bastou entrar no quintal e uma sensação de bem estar tomou conta de meu coração.
 
Andando pelo jardim, tinha a impressão de acolhimento, algo que nunca tinha sentido em outros lugares, as outras casas que tinham eu tinha demolido, para construção de prédios, no geral davam a impressão de abandono, sem vida, eram para seus donos um objeto que a eles rendiam um herança substanciosa.
 
A casa de Valkíria, mesmo vazia parecia transbordar vida.
 
Não foi difícil entrar na casa, a porta da sala estava um pouco emperrada, mas não estava trancada.
 
Fiquei curioso, há décadas a casa estava vazia e a porta sequer estava trancada, mas não tinha qualquer sinal de estar habitada, exceto por um pouco de pó, em nada lembrava abandono.
 
Aparentemente só escada estava comprometida, deve ter sido majestosa na época em que foi construída, infelizmente nesse local o telhado estava comprometido e havia goteiras, suas madeiras pareciam estar podres.
 
A idéia de restaurá-la tomava conta de meus pensamentos, mas isso sequer poderia ser cogitado com aqueles que agora se diziam donos dessa preciosidade, estavam sedentos por demolir tudo, por que será que estavam com tanta pressa.
 
A sala foi o que mais me impressionou, nunca tinha visto uma janela tão grande em uma casa, e o pequeno sofá que ficava em frente a ela se encontrava preservado, ao seu lado havia uma grande caixa de madeira.
 
Ao ver esse canto da sala, pela conversa que tive com meus pais, tive a certeza de que era ali que Valkíria ficava envolvida em seus livros.
 
 
 
Como era meu habito comecei a traçar os esboços do terreno e das construções, na realidade só precisava das dimensões precisas do terreno, mas sempre fazia os esboços do local, de como era antes da demolição e só depois começava a traçar as linhas da nova construção.
 
Curioso, nunca tinha tido maior interesse em guardar os registros da construção que estava fazendo, mas sempre mantinha os esboços de como eram os terrenos e construções antes de serem demolidos.
 
Não me lembrava de antes ter sentido um bem estar como sentia na casa de Valkíria, mas me recordava de meus passeios quando criança, e que gostava muito deles.
 
Enquanto caminhava e desenhava pelo quintal da casa não pude deixar de notar a fascinação que sentia ao olhar para a grande janela da sala, era muito linda, fiquei imaginando os dias em que Valkíria ficava no sofá, entretida com seus livros ou apreciando o jardim.
 
No final da tarde os esboços estavam praticamente prontos, mas antes de ir embora quis dar mais uma volta no interior da casa, logo escureceria e a eletricidade estava cortada, assim não teria iluminação.
 
Ao entrar na sala a grande caixa de madeira ao lado do sofá me chamou a atenção outra vez.
 
Não hesitei em ocupar o sofá e especular o que havia em seu interior.
 
Seu tampo estava limpo e não tinha nenhum tipo de fechadura, em seu interior tinha livros e muitos cadernos, todos impecavelmente encapados e cuidados, imaginei serem de Valkíria.
 
Em cima dos livros e cadernos havia um envelope, amarelado pelo tempo fechado, em sua face escrito à tinta, tinha certeza que era bico de pena, com uma letra legível e delicada, com os dizeres: “Muito Importante”.
 
 
 
Ainda que não houvesse qualquer indicação, tinha certeza de que aquele envelope estava destinado a mim. Hesitei um pouco em abri-lo, mas o impulso era mais forte, sabia estar diante de coisas que tinham sido muito importantes para Valkíria, não entendia ainda, mas sentia de que aquela caixa tinha sido deixada lá para que eu a abrisse.
 
Senti a impressão de que o conteúdo do envelope ia mudar os caminhos não só de minha vida, mas também da casa, ela teria um destino diferente do até aqui determinado.
 
Não demorei a identificar que se tratava dos documentos da casa, junto a ele algo que acreditava ser uma espécie de testamento, tudo devidamente registrado, ainda um envelope menor, um calafrio percorreu meu corpo ao tocá-lo, acompanhado de uma sensação de bem estar e a impressão de que tudo ia dar certo.
 
A noite se avizinhava, mas inda que não houvesse eletricidade, parecia haver luz o suficiente na sala para ler. Uma imensa lua cheia começava a despontar no horizonte, logo ela ocuparia toda a frente da janela. Algumas estrelas já brilhavam no céu.
 
Dentro do pequeno envelope havia uma pequena carta, com a mesma caligrafia que estava na capa do envelope maior.
 
Iniciava com dizeres:
 
“Tive uma vida solitária, mas nunca vim a saber o que é a solidão.
 
Em meu aniversário de debutante soube que não iria constituir uma família, ao menos uma família que fosse nos moldes da sociedade em que vivi.
 
Sei que teria uma herança mais vultuosa, pelo menos do ponto de vista material, não fosse a forma como meu pai veio a nos deixar e os caminhos que minha vida tomou a partir daí, assim de material o único bem que tenho a deixar é essa casa, na qual vivi feliz a minha vida.
 
Como não constitui família, deixo-a àqueles que dediquei o meu trabalho, as crianças às quais tentei durante minha vida transmitir aquilo que aprendi.
 
É meu desejo, como detalhado em meu testamento, que essa casa seja utilizada tão somente para dar continuidade ao trabalho que aqui iniciei, ou seja, que funcione como uma instituição voltada ao estudo de nossa mente e que também sirva para auxiliar aqueles que não têm acesso ao tipo de tratamento do qual creio ter sido uma das primeira pessoas desse continente a se beneficiar dele.
 
O que tenho de mais precioso está em minhas anotações, nas anotações de meu médico e nas inúmeras traduções que fiz dos artigos enviados a ele.
 
Oficialmente como pode ser visto nos documentos, essa casa foi doada ao município e, quando não estivesse entre aqueles que me procuravam buscando ajuda, fosse utilizada como uma instituição filantrópica ainda, com a anuência do poder público dispensada de todo tributo existente ou que venha a ser criado.
 
Sei que aqueles que aprenderam comigo, saberão como dispensar um bom uso dessa casa e, assim, propagar tão valioso conhecimento.
 
Com muito amor.
 
Valkíria.”
 
 
 
Após uma rápida análise dos documentos me senti perplexo, queria muito ver as demais anotações, mas isso era muito importante, não podia esperar, se eu não iniciasse seria substituído e logo após o feriado tudo por aqui seria demolido.
 
Nunca tinha esperado nenhum tipo de moral por parte das parasitas, mas o que estavam pretendendo aqui era totalmente ilegal, sem dúvida houve corrupção e sumiram com essas documentações nos órgãos que se dizem públicos, para conseguirem dar andamento a esse projeto, isso explicava a pressa que estavam tendo com esse em particular.
 
Curioso que esse normalmente não era o procedimentos desse tipo de parasitas, outras tinham esse tipo de atitude abertamente, mas essas exerciam seu poder junto àqueles que dizem fazer seu trabalho em prol da população, estavam acostumados a mudar regras sociais, para atenderem seus objetivos particulares.
 
A casa tinha sido leiloada, por um valor infinitamente menor ao que realmente tinha e, curiosamente só houve um grupo interessado em adquiri-la. A justificativa para o leilão eram os inúmeros impostos atrasados e, pelos proprietários não terem procurado os órgãos públicos para quitarem as dívidas.
 
Oras, como tinha sido o desejo de Valkíria, o atual proprietário do imóvel era o próprio município e, como tinham entrado em acordo, o local seria utilizado tão somente para estudos da mente e atendimentos à população necessitada assim, nenhum imposto poderia ser cobrado.
 
Acredito que nesse caso particular as parasitas esperaram demais, com a finalidade de aumentarem ainda mais seus lucros, mas chegou a um ponto que não tinham mais tempo para mudar as regras, assim se utilizaram das táticas de parasitas inferiores que praticam a corrupção abertamente.
 
Junto com os documentos havia uma lista com os nomes e endereços das inúmeras crianças, hoje com idades semelhantes às dos meus pais, que construíram o seu conhecimento com o auxílio de Valkíria, poderia procurá-las diretamente, mas preferi voltar à casa de meus pais e expor tudo a eles, muitas das pessoas ali listadas eles conheciam.
 
Pela manhã, no último dia do feriado, uma multidão de pessoas começou a se aglomerar, no quintal da casa, não demorou e com cuidados começaram a entrar em seu interior, querendo mais detalhes sobre o que estava acontecendo.
 
As parasitas iam ficar furiosas...
 
 
 
Quando me dei por conta tinha uma repórter apontando uma câmera em minha direção, pedindo explicações sobre o por que de a casa estar sendo demolida e se ela realmente era um bem público destinada à comunidade, e se isso era verdade por que uma empresa particular estava se apossando dela.
 
Alguns instantes depois dessa entrevista meu telefone começou a tocar insistentemente.
 
Ao atendê-lo ouvi uma frase ríspida e uma pergunta seca:
 
- O que você pensa estar fazendo? Você nunca mais irá exercer outro trabalho.
 
Na seqüência o telefone ficou mudo, não tive tempo para expor qualquer resposta.
 
Uma sensação de imenso bem estar tomou conta de todo o meu ser, o mau estar e enjôo que às vezes sentia pareciam sentimentos perdidos em um longínquo passado.
 
Antes que guardasse o telefone, e nesse momento me perguntei por que não o jogava fora definitivamente, uma vez que a sua finalidade era manter contato com aqueles que trabalhavam para as parasitas, surgiu meu pai, com um colega de sua infância, era alguém que segundo ele poderia ajudar muito.
 
Esse colega de meu pai, também tinha sido, quando criança um “aluno” de Valkíria, em sua época tinha sido excluído da escola, que o considerava um caso perdido, diziam que ele nunca conseguiria se alfabetizar, agora era um senhor aposentado, mas no decorrer de sua vida foi um advogado de renome, disse-me sentir muito grato à forma como foi auxiliado por Valkíria e o quanto foi acolhido nessa casa.
 
Completou dizendo achar que agora de alguma forma poderia retribuir um pouco do que a ele foi oferecido.
 
Não demorou para que ele entendesse toda a documentação deixada por Valkíria, enquanto analisava os papéis um leve sorriso despontou de seus lábios, no final do dia a demolição da casa e o embargo da construção do prédio em seu local já estava em andamento.
 
As pessoas que um dia foram “alunos” de Valkíria não paravam de chegar à casa.
 
O advogado, colega de meu pai, após encaminhar e iniciar o processo para que a comunidade pudesse reaver os bens deixados por Valkíria quis conversar, disse-me que tinha sido uma tentativa de má fé, que pessoas de grande poder estavam tentando expropriar um bem que era público e que isso iria tomar grandes proporções, haviam muitas parasitas envolvidas.
 
 
 
Na seqüência meu telefone continuou a tocar insistentemente, as outras empresas às quais prestava serviços, estavam cancelando meus contratos, as parasitas estavam mostrando a sua ira, mas decidi, meu telefone ia efetivamente ser reciclado, após a última ligação a bateria se esgotou, ela nunca mais iria ser recarregada, as parasitas teriam dificuldades maiores se quisessem falar comigo novamente.
 
Em meio às pessoas que estavam revendo a casa um pequeno grupo delas se reuniu e estavam querendo conversar, queriam saber o que era necessário para restaurar a casa, eles estavam querendo ajudar.
 
Expliquei que o primeiro passo já havia sido dado, antes de iniciar algum trabalho era necessário regularizar a documentação da casa.
 
Enquanto isso, longe da casa, algumas parasitas começaram a se degladiar.
 
Não demorou e chegou uma intimação, questionando a documentação que Valkíria tinha deixado, alegando que tudo era falso ou que não tinham valores legais.
 
Curioso esse termo “valores legais”, para esses parece que o movimento que estava ocorrendo não tinha valor, as pessoas, o trabalho social realizado por Valkíria, seus relatos... Segundo essa intimação essas coisas não tinham qualquer valor, parece que o que representava valor a elas era só o valor imobiliário representado no terreno.
 
Já um segundo grupo de parasitas surgiu, questionando as primeiras dizendo querer ajudar, estavam oferecendo o que fosse necessário para restaurar a casa e transformá-la em um local para atendimento à comunidade, mas tinham uma condição, quando vieram já trouxeram uma placa forjada em metal divulgando o nome das parasitas que iam “ajudar” na reconstrução, ainda evidentemente impunham que desde a construção e posteriormente fosse dado continuidade ao apoio aos grupos que essas parasitas constituíam.
 
Aqueles que aprenderam com Valkíria não chegaram sequer a ouvir toda a proposta das parasitas, alegaram que fariam o necessário sem precisar delas.
 
Ficaram furiosas, antes mesmo de se retirarem começaram a inventar uma série de problemas, prometendo pesadas multas, sem dúvida fariam o possível para inviabilizar tudo.
 
Era inútil Valkíria arquitetara tudo muito bem, se a casa tivesse algum comprometimento a responsabilidade era das próprias parasitas, que mantiveram escondido o bem que tinha sido constituído para a comunidade, ainda, se houvesse alguma multa, essa seria de responsabilidade daquilo que chamam de “poder público”.
 
 
 
Ah! Quer saber, chega de falar em parasitas, elas não merecem ocupar espaço nas memórias que Valkíria deixou. A partir desse momento elas estão definitivamente expulsas desse conto.