domingo, 23 de setembro de 2012

Esquecidos - Parte VI.





Valkíria foi a primeira a despertar, assim que acordou e se mexeu um pouco o cachorro de Franz que tinha se aninhado em seu colo levantou a cabeça e ficou fitando-a nos olhos.

No mundo dos Preocupados durante muito tempo eles acharam que os animais eram irracionais, desprovidos de inteligência, mais tarde descartaram essa hipótese pois começaram a notar que não só eram inteligentes, como também tinham sentimentos.

Depois chegaram à conclusão que o que os diferenciava dos animais é que eles não eram providos de consciência.

Curioso é que muito antes de terem chegado a essa conclusão, uns poucos entre os preocupados já sabiam que se o psiquismo humano fosse um oceano, a consciência não seria maior do que uma pequena ilha perdida nesse oceano, talvez até menos perdida do que o nível de consciência que os Preocupados no geral tinham obtido em toda a sua existência.

Qualquer ser dotado de alguma inteligência que pudesse observar Valkíria e o grande cachorro de pelos escuros se fitando nesse momento, saberia que estavam lendo os pensamentos, tocando as suas almas, bem de leve, para não incomodar aqueles que ainda estavam adormecidos.

Valkíria, Franz, e todos que fazem parte da Casa do Gramado, não davam maior importância às classificações que os Preocupados insistiam em fazer, para eles, todos os seres são partes de um todo, um Universo infinito, vivo, pulsante.





Quando Franz acordou Valkíria já não estava mais ao lado dele, tinha ido ver a luz do dia do lado de fora da construção circular, muitos dos Esquecidos caminhavam pelas ruas, sempre atentos ao céu, ao vê-la só acompanhada pelo cachorro que permanecia ao seu lado, um pequeno grupo a rodeou, com gratidão o cão aceitava as carícias e atenção que lhe eram dispensados.

Franz se deteve por alguns instantes frente à parede de pedras que dias atrás Valkíria começara a polir, não demorou a perceber que não se tratava de uma pintura, pequenas pedras coloridas tinham sido incrustadas nas pedras maiores, formando um mosaico, ficou refletindo que as pessoas que tinham se dado a esse trabalho, o fizeram para que durasse muito, tanto quanto uma pedra poderia durar, sem dúvida era uma obra de arte lindíssima.

Os Esquecidos que estavam no interior da construção estavam vivendo uma experiência nova, ao menos para eles, ainda dormiam profundamente. Para não incomodar, Franz com o pequeno cachorro de Valkíria no colo, saíram à procura dela.

Na entrada da construção Franz a encontrou rodeada por um grupo de Esquecidos, que a observavam aparentemente sem compreenderem, com um pequeno pano ela estava retirando como podia a poeira que há muitos anos se acumulara nas pedras polidas da grande construção circular.

Franz se juntou a ela, com o intuito de a ajudar, diante da cena, os Esquecidos com a sua destacada característica de sociabilidade, ainda que sem compreenderem, se juntaram a eles.

Não demorou e as pedras coloridas incrustadas nas maiores começaram a revelar o mosaico.

Por um momento Franz e Valkíria se afastaram um pouco para apreciarem as figuras que surgiam, aos poucos os Esquecidos que estavam no interior da construção, foram acordando e, ainda que igualmente sem compreenderem,  se juntaram ao grupo que limpava as paredes.

Ao olharem-se nos olhos, Valkíria e Franz emitiram uma intensa luz azul, estavam lendo pensamentos, interromperam momentaneamente suas atividades, e junto aos Esquecidos voltaram ao interior da construção para se alimentarem e apreciarem a preciosa água.

Eles tinham assimilado o modo de se comunicar dos Esquecidos, olhavam-se intensamente, seus olhos brilhavam, compreenderam que os mosaicos não eram só uma obra de arte, eles contavam a história de toda uma civilização, tratava-se de um texto, escrito em uma linguagem universal, a ser transmitida a todos os povos.

Uma história mergulhada nas profundezas da mente de um povo que dado à precariedade e fragilidade de seu mundo tinha caído no esquecimento.






Depois de terem se alimentado e apreciado a preciosa água eles voltaram a limpar as paredes, alguns grupos de Esquecidos que caminhavam pelas ruas também se juntaram aos demais, enquanto outros se ocupavam observando o céu e, outros ainda, traziam alimentos e água para aqueles que estavam limpando as paredes da construção.

Em todos os espaços havia alguém polindo as paredes, já não havia mais espaço para que outros se juntassem a eles.

Pouco antes de anoitecer praticamente todas as paredes já revelavam seus mosaicos, tinha chegado o momento de irem descansar.

As imagens que se desvelavam contavam a história de toda uma civilização há muito esquecida.

Cansada Valkíria começou a ler os mosaicos, praticamente eram auto-explicativos, mas todos precisavam se alimentar e dormir.

Quando o dia amanhecesse cada um que tinha participado desse trabalho teria um sonho novo, diferente do cotidiano, brilhando em seus olhos.

Breve o mundo dos Esquecidos teria uma história revelada.

À medida que adormeciam uma luz azul escura encobria, ainda que parcialmente as luzes do céu que mesmo quando deveria ser noite apresentavam um brilho intenso.

Muitos asteróides que refletiam as luzes das estrelas, pareciam ter-se afastado ligeiramente e deixaram uma brecha no céu, revelando a escuridão do Universo e o brilho tênue de estrelas distantes.

A mais distante de todas com luz azulada, iluminava brandamente a construção circular que agora reluzia.

Já dormindo as faces de Franz e Valkíria eram banhadas pela luz azul, que mergulhados em um sonho profundo flutuaram pouco acima do centro da construção na qual trabalharam o dia todo.





Franz e os Esquecidos partilhavam sonhos semelhantes, eles se remetiam às imagens que se desvelaram à medida que a poeira era removida da construção circular, mas Valkíria sonhava com um tempo remoto, na época em que vivia em uma grande casa com uma janela que fazia frente a um jardim.

Sentada em um sofá folheava um livro, enquanto apreciava o jardim além da janela, esse livro só tinha imagens, eram mosaicos feitos com pedras coloridas, incrustadas em grandes paredes de pedras polidas.

No jardim via Franz, mas na época, como os Esquecidos não se recordava de que um dia tinham vindo da mesma estrela, a Grande Estrela Azul.

Atrás de si ouvia a música vinda de um piano, havia uma festa, de alguma forma ela sabia ser o centro dessa festa, mas seu desejo não era participar dela, sua atenção estava voltada à pessoa que no jardim fazia esboços em grandes papéis, da casa e seus arredores.

Em um momento ouviu a chamarem pelo nome, mas sentia o corpo paralisado, não conseguia se mexer, sentia-se em um tipo de transe.

Percebeu quando a festa foi interrompida e a música cessou,  várias pessoas ficaram ao seu redor, ouvia essas tentando falar com ela, Valkíria tentava se comunicar, mas a sua voz ficou sufocada em seu peito.

Não demorou e o médico da família chegou para socorrê-la, levada ao seu quarto, dormiu profundamente, o médico não tinha dúvidas, na época Valkíria era jovem e pelo que a medicina podia revelar seu corpo gozava de plena saúde.

Os Preocupado sempre tiveram uma peculiaridade, o hábito de classificar tudo, o corpo de Valkíria gozava de saúde... Como se o corpo pudesse ser separado de todos os demais elementos que compõe a vida.

Felizmente para Valkíria e para os Preocupados que vieram nas gerações seguintes, o médico tinha uma visão diferente da medicina de sua época, ele sabia que os sonhos, sentimentos, emoções... Também tinham uma função essencial na vida das pessoas.

Depois desse episodio Valkíria se tornou uma confidente desse médico, que confiou a ela conhecimentos que vinham de um continente distante, junto com o médico ela transcreveu esse conhecimento, deixando-o disponível às gerações que seguiriam, contando para isso com a ajuda de Franz, que só teria contato com tudo que ela transcreveu e criou, muitas décadas depois.

Valkíria despertou no meio da noite, lembrou-se nitidamente de seu sonho e da época que vivia na grande casa da janela que dava vista ao jardim.

Naquele tempo se sentia deslocada, como se não fizesse parte daquela época, ela sabia que faltava algo aos Preocupados, algo que eles procuravam incessantemente e que estavam impossibilitados de encontrar, uma vez que o que eles tanto necessitavam não podia ser encontrado fora deles, a falta que sentiam era da própria essência.

Da mesma forma, agora no mundo dos Esquecidos ela sentiu que ainda faltava algo a ser revelado, percorreu todas as paredes do interior e exterior da construção circular, mas não conseguiu identificar o que faltava.

Franz e os Esquecidos ainda dormiam profundamente, uma tênue luz azul cobria uma grande face do planeta.

Do lado de fora, a noite parecia mais escura do que até então tinha presenciado desde que tinha chegado a esse mundo, no horizonte, muito distante a luz da Grande Estrela Azul refletia na face de Valkíria.

Mais do que pensar, ela sentia a vida que pulsava intensamente ao seu redor.





Ainda que de forma lenta e gradual os Esquecidos estavam experimentando uma forma nova de viver, leves lembranças começavam a refletir faces que até então eles desconheciam.

Já há alguns dias não eram assolados por nenhuma queda de meteoros, ainda não tinham se dado conta, mas as noites começavam a ficar levemente mais escuras.

Não demorou e outras construções começaram a ser limpas e a revelarem seus mosaicos, todas elas contavam a mesma história, se havia diferenças eram demasiadamente tênues.

Ainda que sentisse falta de algo que não sabia explicar Valkíria começou a interpretar os mosaicos, Franz a acompanhava, e os dois cachorros também participavam, eram sempre boas companhias e queriam ajudar em tudo.

Os Esquecidos também auxiliavam já não pareciam mais aqueles que há poucos dias denotavam não compreender o que estava acontecendo.

Em muito pouco tempo todas as construções circulares estariam revelando a história de uma civilização há muito esquecida no tempo.

Franz e Valkíria tinham adquirido o modo de comunicação dos Esquecidos, já não precisavam mais das palavras, até mesmo os dois cachorros já não emitiam sons, mas seus olhares eram cada vez mais profundos, quando se fitavam seus olhos brilhavam intensamente, entre eles o olhar, a presença, traziam em si significados que as palavras já não podiam mais revelar.

Ao anoitecer, os Esquecidos que ocupavam as construções circulares mais distantes também adquiriram o hábito de visitar o mundo dos sonhos, aprendido inicialmente na construção em que Valkíria começou a polir as paredes.

E as noites se tornavam cada vez mais escuras. A Grande Estrela Azul, localizada próxima ao infinito brilhava intensamente, iluminado a face de todos que tinham adquirido o hábito de dormir, mas muito próximo havia uma outra grande Estrela, que a cada noite, na escuridão do Universo parecia crescer mais.

Quando estavam adormecidos a luz azul que emanava das construções circulares se tornavam cada vez mais intensa, envolvendo partes cada vez maiores do planeta.





Os mosaicos presentes nas paredes externas da construção revelavam um mundo repleto de estrelas, Valkíria ficou confusa, mas com a ajuda de Franz concluíram que talvez fossem mapas, revelavam o céu, mas pelo menos os mosaicos próximos à entrada não se assemelhavam ao céu que estavam acostumados a presenciar.

Já os mosaicos no interior nitidamente contavam histórias. Os Esquecidos não se cansavam de apreciá-los.

 Junto à entrada, no interior, um primeiro quadro mostrava pessoas aparentemente se despedindo, eram muitas, enquanto uma parte delas ficavam imóveis, exprimindo uma certa tristeza, os demais se projetavam aos céus, desaparecendo lentamente.

Aqueles que ficavam se juntavam em pequenos grupos, eles juntavam pedras e arquitetavam construções, eram as construções circulares sendo erguidas, à medida que as paredes eram levantadas, utilizando pedras menores, as pessoas as poliam, até que ficassem lisas e outros, usando objetos pontiagudos, faziam pequenos buracos nas pedras polidas, uniformes e com os mesmos tamanhos, seguindo esses, outros encaixavam pequenas pedras coloridas que formavam as figuras que agora Valkíria buscava compreender.

Depois que as pedras coloridas estavam encaixadas outros vinham na seqüência polindo-as, deixando a parede lisa e uniforme, Valkíria, Franz, os dois cachorros e também os Esquecidos observavam maravilhados todo esse trabalho.

Esse primeiro mosaico estava ensinando às pessoas como edificar essas construções, os detalhes impressionavam, Valkíria ficou confusa, pois não se tratava apenas de uma história de como era feita a construção, mas Franz a complementava, nos detalhes constava um tipo de esboço, com medidas precisas, apontando as formas e dimensões da construção toda, o nível de detalhes denotava que deveria haver algum propósito, nessas formas e dimensões, além do aproveitamento de terreno.

Franz pensou que seria interessante ver outras construções circulares para verificar se seguiam o mesmo padrão, enquanto Valkíria continuava tentando interpretar os mosaicos.



sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Esquecidos - Parte V.





Após alimentar-se e desfrutar a preciosa água Valkíria sentia-se recomposta, não estava mais cansada, mas ainda se sentia sonolenta, desejava dormir, por outro lado queria achar uma forma de ir ao mundo dos sonhos sem provocar estranhamento aos Esquecidos.

De alguma forma estava adentrando no mundo deles e raras vezes se lembrava de outros lugares em que já vivera, e da própria Casa do Gramado.

Às vezes o mundo dos Esquecidos refletia a impressão de ser monótono, denotando poucas ou até nenhuma mudança e até mesmo uma escassez de rotinas, mas quando se estava imerso em seu cotidiano refletia uma riqueza sem fim.

Nos momentos em que estavam à mesa Valkíria notou o quão intensa era a comunicação entre eles, ainda que não verbalizassem qualquer palavra.

Olhavam intensamente nos olhos daqueles que os acompanhavam, Valkíria pensava: no mundo dos Preocupados, ainda que esses raramente falassem a respeito, sentia neles uma profunda solidão, aqui entre os Esquecidos parecia que esse sentimento não tinha nenhum significado.

Ainda que não se fixassem em nenhum grupo específico, as pessoas sempre estavam mudando nesses, todos denotavam uma profunda compreensão do que viviam e dos sentimentos presentes neles.

Entre os Esquecidos aparentemente não haviam conflitos, o que era uma constante no mundo dos Preocupados. Valkíria sentiu que uma das coisas que geravam os conflitos era manutenção das pessoas em um mesmo grupo, uma das formas que usavam para aliviar esses conflitos era conquistar coisas, os Preocupados tentavam contornar a angústia dos conflitos produzindo e consumindo cada vez mais, mas isso acabava unicamente por gerar ainda mais angústia e conflitos.

Já os Esquecidos por não se fixarem nem às pessoas nem às coisas não conheciam sequer o significado dos sentimentos gerados pelo conflito.

Por não se fixarem a lugares, também não tinham nenhuma necessidade de ter coisas, nada além do essencial para a existência. Há muito a vida lhes tinha ensinado que ela poderia provê-los com tudo o que era necessário.

Até então os Preocupados não tinham notado que as necessidades pelas quais passavam justamente eram provocadas pelo seu hábito de subtrair da natureza muito mais do que precisavam, essa ânsia é que provocava em seu mundo muitas vezes um estado de miséria para uma grande maioria, em detrimento à ostentação de uma pequena minoria.

Valkíria enquanto refletia entrou em uma espécie de transe, não estava nem acordada nem dormindo, seus olhos permaneciam fixos, olhando o vazio. Os Esquecidos que estavam à mesa voltaram seus olhares a ela, não conseguiam compreender os sentimentos que a envolviam nesse momento.

Lembrou-se de uma época longínqua, quando morava em uma casa provida de uma grande janela defronte a um jardim, em um tempo que tinha o hábito de sentar-se em um sofá em frente a essa janela e ficar lendo, a imagem de Franz nesse jardim fazendo desenhos, esboços da casa do terreno invadiu a sua mente.

Naquele episódio ela e Franz estavam separados por um lapso de tempo, mas a Grande Estrela Azul forneceu energia o suficiente para que no ambiente que permeava a casa, esse lapso pudesse ser rompido.

Uma tênue lua azul começou a envolver Valkíria.





Inicialmente Valkíria e na seqüência Franz, entraram em transe e começaram a flutuar, aqueles que os acompanhavam ainda que em lugares diferentes, ficaram atônitos e momentaneamente se desviaram de suas atividades e se centraram nos dois.

Lentamente Valkíria flutuou para fora da casa onde tinha se alimentado, chegando à rua, quem estivesse um pouco distante poderia ver ambos flutuando pouco acima da calçada onde habitualmente os Esquecidos caminhavam sempre olhando para o céu, mas dessa vez seus olhares estavam fixos neles.

A luz azul que os envolvia se tornava mais forte à medida que se aproximavam, ambos continuavam em transe, um estado intermediário entre o dormir e o estar acordados.

Não tardou e eles ficaram entrelaçados, flutuavam na altura da copa das árvores, o pequeno cachorro de Valkíria e o maior de Franz se aninharam embaixo deles, ambos estavam sonolentos, um pequeno raio de luz azul os envolveu como se estivesse protegendo os sonhos deles.

Os Esquecidos não tinham dificuldades em absorver os acontecimentos que os envolviam, exceto pelos meteoros e meteoritos que constantemente caiam dos céus, desconheciam qualquer outra coisa que representasse algum risco a eles.

Passado o estranhamento inicial voltavam às sua atividades.

Franz e Valkíria permaneceram por dias no mesmo local entrelaçados, tinham muitos sentimentos a partilhar.

Sempre algum dos Esquecidos levavam água e frutas a eles, mas onde estavam não tinham como alcançá-los, deixavam por perto, mas esse alimento e água acabavam por suprir os dois cachorros que não saiam de perto deles.

Logo alguns dos Esquecidos também vieram a se alimentar na proximidade deles, parece que se sentiam melhor em não deixar os dois e os cachorros sozinhos.

Em uma noite alguns pequenos meteoritos começaram a se aproximar, vindo na direção onde Franz e Valkíria agora viviam.

Os Esquecidos denotaram aflição a maioria deles já haviam se mudado de vila para um local distante, mas alguns grupos deles se juntaram ao redor deles, desejavam intensamente chamar a atenção de Franz e Valkíria, precisavam sair daquele lugar, mas por mais que se esforçassem não conseguiam fazer com que eles saíssem do estado de transe.

Parece que pela primeira vez os Esquecidos viviam um dilema, mas aqueles que tinham se agrupado ao redor de Valkíria e Franz não os deixavam, até então os Esquecidos não conheciam o sentimento de risco, ainda que isso os afligisse, a idéia de deixar alguém do grupo para traz não fazia parte daquilo que conheciam.

À medida que os meteoritos se aproximavam a luz azul se tornava cada vez mais intensa e além de envolver Franz, Valkíria, os dois cachorros, também envolveu todos os Esquecidos que tinham ficado junto a eles.

Quando os meteoritos começaram a rasgar a atmosfera a luz que os envolvia se expandiu também, até os limites dessa, lançando de volta aqueles pequenos corpos celestes à escuridão do Universo.

Os Esquecidos que se distanciaram do local que seria atingido, mesmo de longe conseguiram ver a intensa luz azul que brilhou, quando retornaram só notaram uma tênue luz envolvendo Valkíria e Franz que continuavam em transe, e os dois cachorros, que sonolentos não se afastavam deles.

Aqueles que ficaram todos estavam bem, sequer lembravam do ocorrido, parece que quando a luz os envolveu, também entraram em transe.

Não tardou e trouxeram água e frutas para eles, mas o transe não cedia, o pequeno cão de Valkíria e o maior de Franz se deliciaram.





Os poucos Esquecidos que ficaram ao redor de Franz, Valkíria e seus cachorros, formaram um pequeno grupo, que agora pouco se mesclavam com os demais, seus sentimentos e atividades já não mais se  assemelhavam aos dos outros.


Aparentemente já não sentiam tanto a necessidade de ficar olhando para o céu.

Ocuparam a casa mais próxima de onde Franz e Valkíria, ainda em transe flutuavam. Saiam juntos da casa em busca de alimentos e água e também começaram a passar parte significativa de seu tempo junto aos cachorros, e sempre levavam frutas e água para eles.

Essa mudança de atitude estava chamando a atenção dos demais, que quando os encontravam, momentaneamente desviam o olhar do céu e observavam o curioso grupo que estava se distinguindo dos demais.

Aos poucos outros também começaram a se aglomerar junto a eles.

A parte da cidade que alguns dias atrás tinha sido destruída,  antes de Franz e Valkíria se reencontrarem agora estava quase que totalmente reparada, praticamente não havia mais vestígios do pequeno meteoro que tinha atingido aquela região.

À noite a tênue luz azul que agora envolvia aquela pequena parte da cidade aparentemente ficava mais intensa, uma sensação de prazer e tranqüilidade tomava conta daqueles que ficavam envoltos por ela.

Como esses poucos Esquecidos não mais se afastavam de si próprios e do local que agora ocupavam, começaram a experimentar um sentimento novo, aos poucos estavam sendo tomados pelo sono, não compreendiam o que estava acontecendo, lutavam contra essa sensação, alguns chegaram a pensar que estavam adoecendo, por outro lado a sensação de bem estar que sentiam quando envoltos pela luz azul os levavam a rejeitar totalmente a impressão de poderem estar doentes.

A linguagem entre eles era substancialmente escassa uma vez que desconheciam as palavras, a comunicação se dava quase que totalmente na troca de olhares, e nesses predominavam os sentimentos, por isso para os Esquecidos praticamente não tinham  necessidade de maiores explicações.

Os Esquecidos sempre foram movidos pelos sentimentos e dado o jeito de eles serem, praticamente não conheciam dilemas, o que os levavam a não ter qualquer dificuldade em assimilar novas formas de ser.

Para eles um simples olhar, a presença, já traziam em si todos os conteúdos que se fizessem necessários.

Até então não tinham o costume de ficarem parados nas ruas, quando se cansavam ou tinham necessidade de se alimentarem se abrigavam em alguma casa, saciada a fome e a sede, voltavam às ruas, ou em busca de mais alimentos, ou para observar o céu para se precaverem por uma possível queda de algum outro meteorito.

Como Valkíria, Franz e seus cachorros, entraram em um estado de transe e os dois estavam fora do alcance deles, pelos seus costumes eles não podiam ficar excluídos de grupos, assim os Esquecidos também começaram a se agrupar ao redor deles, mesmo que fosse na rua.

Na concepção deles ninguém poderia ser excluído de algum grupo, estavam sempre cuidando uns dos outros.

Os dois cachorros que não se afastavam do local onde eles flutuavam, e aceitavam com gratidão a companhia e carícias daqueles que vinham fazer companhia a eles.

No momento em que mais uma noite se aproximava o transe entre Valkíria e Franz amenizou brandamente e, aos poucos os dois desceram de onde flutuavam o que despertou os dois cachorros. Os Esquecidos que estavam sentados aos redor se aglomeraram em volta deles formando um círculo, se fosse possível vê-los de longe transmitiriam a impressão de que estavam se abraçando.





Valkíria e Franz desceram até quase tocarem o chão, mas seus pés não chegavam nele, a tênue luz azul os envolvia, ficaram de mãos dadas, com os dedos entrelaçados, o pequeno cachorro de Valkíria denotou querer ficar em um de seus braços já o maior se envolveu com eles, bem pertinho, com os quatro juntos a luz em volta deles ficou mais intensa.

Lentamente começaram a caminhar em direção à construção circular presente no centro vila, a mesma que Valkíria começou a limpar as paredes, pouco antes da queda do meteoro que se dera naquelas proximidades.

Um leve calor ainda emanava da terra, proveniente do calor dissipado quando o meteoro caíra.

Os Esquecidos que tinham ficado ao redor deles os acompanharam, o grupo agora formado era muito maior que qualquer outro antes existente, esses já não mais olhavam para o céu.

Ao chegarem à construção circular, os Esquecidos que lá estavam estranharam a dimensão do grupo, em um primeiro momento fizeram menção de saírem, para ceder lugar àqueles que chegaram, mas antes disso a sensação de acolhimento os envolveu, o que os levou a mudar a sua intenção.

Os que estavam à mesa, já tinham se alimentado, assim cederam o lugar aos que tinham acabado de chegar, mas Valkíria, acompanhada de outros subiram às partes altas da construção, seu pequeno cachorro agora estava envolto em seus braços.

Franz junto com outros, ficaram observando o que se assemelhava a uma pintura, na parte da parede que tinha sido polida, não teve dúvidas de que elas ocupavam todas as paredes da construção, acreditou que de alguma forma tinha relação com a história dos Esquecidos.

Na parte superior da construção os Esquecidos que fitavam o céu viram alguns meteoros que vinham rapidamente na direção deles, provavelmente cairiam em um lugar distante de onde estavam, mas começaram a se movimentar, para abandonar o local onde estavam, nitidamente a intenção era determinar a posição que seria atingida, e já se preparavam para fazerem o que fosse necessário.

Valkíria flutuou no centro da construção alguns metros acima dela, os meteoritos já estavam rasgando a atmosfera do planeta, deixando um rastro de fogo por onde passavam, mas isso abria um espaço no céu através do qual uma intensa luz azul atravessava.

Essa ofuscou a luz de todas as demais estrelas, vindo a envolver toda aquela face do planeta, lentamente os meteoros que se aproximavam desviaram o seu curso e se afastaram do planeta, sendo lançados na escuridão do Universo.

Lentamente a brecha deixada por eles foi-se fechando dando lugar ao intenso brilho das muitas estrelas existentes naquela parte da galáxia, mais uma vez ofuscando a luz da Grande Estrela Azul.

Franz que tinha subido para fazer companhia a Valkíria, viu aos poucos o brilho de sua estrela se ofuscar, sentiram uma intensa saudade do local que um dia eles se desprenderam.

Os dois desceram lentamente, como a escada estava vazia, puderam fazer isso um ao lado do outro, de mãos dadas, olhando nos olhos, lendo pensamentos.

Ao chegar no piso inferior ficaram por um longo tempo observando a pintura na parede, era lindíssima, mas estavam sonolentos, os dois cachorros já estavam dormindo, o menor de Valkíria estava envolvido, junto ao que sempre acompanhava Franz.

Valkíria se aninhou nos braços de Franz, logo estariam sonhando. Os Esquecidos que os acompanhavam já não mais estranhavam esse hábito, ficaram em silêncio em volta deles, de alguma forma também estavam experimentando um estado de transe, ainda que não fosse propriamente um sonho.





Franz e Valkíria já não se importavam mais com a privacidade, de certa forma estavam absorvendo pelo menos em parte a forma de ser dos Esquecidos, evidentemente a recíproca também era verdadeira.

Habitualmente no Mundo dos Preocupados havia dificuldades em lidar com diferenças, mesmo quando essas eram em relação a eles mesmos, talvez por isso vivessem em grupos tão fechados, sempre que havia discrepância de idéias as discussões ficavam acaloradas, algumas vezes até chegavam a desencadear guerras.

E mesmo nos grupos pequenos os desentendimentos eram freqüentes, o que os levavam a formar grupos cada vez menores, muitas vezes chegavam ao completo isolamento, mesmo quando viviam rodeados de muitos.

Essa era uma dificuldade que parecia inexistir entre os Esquecidos, todos viviam uma condição que lhes era comum, o risco de os meteoros os atingirem, aprenderam a viver em grupos para se protegerem, mas não tinham qualquer dificuldade em aceitar formas diferentes de ser, no principio trazia-lhes uma certa curiosidade, mas a empatia entre eles estava entre os sentimentos que predominavam.

Valkíria e Franz estavam sonhando, sentiam saudades da Casa do Gramado e de toda a magia que a envolvia, desejavam estar entre os menores, de alguma forma no sonho sentiram que tinham sido eles que os trouxeram a esse estranho mundo.

Desejaram estar na varanda, balançando em sua cadeira, com os cachorros, ou outros bichos, os menores e os demais seres encantados que faziam parte daquele mundo.

Sentiam-se aconchegados com as árvores que os envolviam à noite, sempre com o cuidado de deixarem uma pequena brecha para que a luz azulada da Grande Estrela iluminasse a varanda e a face de todos eles.

Percebendo o sono deles; os cachorros dormiam profundamente, descansavam as suas cabeças nos colos de Franz e Valkíria, nessa noite tinham trocado as posições o maior tinha se aconchegado junto a ela; os Esquecidos que estavam na construção circular ficaram em silêncio, ao notarem que a luz que os envolviam se tornava mais intensa também se deitaram ao redor deles.

Era a primeira vez que estavam experimentando o sono, seus sonhos seriam breves, apenas resquícios do que tinha sido os momentos anteriores, mas quando acordassem lembrariam de uma forma diferente de viver, ainda iria demorar para conseguirem atribuir significados a essa vida que permeia os sonhos.

Enquanto dormiam a luz azul que os envolvia ampliou-se até os limites da atmosfera, atingindo parte significativa da face do planeta.

Naquela noite os Esquecidos que caminhavam pelas ruas e ocupavam outros prédios circulares presenciaram uma noite com o céu especialmente agitado, puderam ver muitos meteoros se movimentando, alguns deles vindo em direção ao seu mundo, mas sempre que se aproximavam um pouco mais eram desviados e lançados nas profundezas do Universo.