domingo, 1 de maio de 2016

Mundo das Plantas.



Na madrugada fria Franz despertou, ao olhar pela janela se deu conta de que ainda faltava algumas horas para o dia amanhecer, depois de se virar na cama se sentiu desencorajado, sabia que dificilmente o sono voltaria.

Do outro lado da janela só pode ver a noite escura e o silêncio que envolvia tudo à sua volta.

O frio não o convidava a se levantar, por isso ficou se perguntando sobre o que o havia despertado, mas não encontrava nenhuma resposta.

Sentiu saudades dos passos do dócil Bill que tantas vezes o acordara nas madrugadas, entretanto nesse momento só havia o silêncio.

Sabia que seu sempre parceiro estava levando magia para outros mundos, outros lugares e, ainda assim pulsavam juntos, eram partes da mesma essência, viveriam sempre um no coração do outro.

Incomodado pelo longo tempo na mesma posição e diante da certeza de que o sono não ia retornar, ignorou o quanto possível o frio e resolveu apreciar a paisagem Além da Janela.

Sabia haver pouco o que lhe agradava, felizmente nessa hora não havia nenhum veículo na rua para estragar ainda mais a paisagem, mas ainda assim o asfalto frio e as infindáveis construções de concreto em nada o atraiam.

Teve a impressão de que a noite estava mais longa do que o habitual.

Ao se debruçar na janela se deparou com o que achava tão bem conhecer e, em um primeiro olhar sentiu não haver qualquer novidade.

Quando estava se decidindo por um café bem forte para tentar despertar de vez se sentiu atraído pelas plantas que às vezes crescem nas calçadas, nas rachaduras do concreto, teve a impressão de que estavam maiores e mais verdes que o habitual.



Depois de apreciar lentamente o seu café não teve qualquer interesse em ver os jornais matinais, ao mesmo tempo que não se inspirava em tentar decifrar as infindáveis manipulações que a mídia tentava impor a todos, também não se sentia disposto a simplesmente ouvir e ver as sandices que habitualmente eram expostas nesses jornais.

Optou por mais um café, pouco tinha dormido à noite, mas ao mesmo tempo não podia se considerar desperto, estava no meio do caminho, em um lugar distante do Mundo dos Sonhos e, ao mesmo tempo nem perto daquele mundo em que as pessoas acham que estão acordadas; achando que com esse pudesse despertar um pouco mais.

Ao chegar à frente de sua casa para ir ao seu trabalho e se dedicar às suas rotinas habituais já não se recordava do que havia chamado a sua atenção na calçada enfrente ao seu quarto na madrugada, só se lembrava que tinha ficado um longo tempo observando, algo estava diferente.

Junto ao portão, antes de sair, ficou olhando em volta sem saber ao certo o que estava procurando.

Com o movimento na rua aumentando em poucos minutos desistiu de tentar lembrar e como todos se voltou às suas rotinas habituais.

No ônibus, em um acento junto à janela, em meio aos solavancos ficou pensando em sua própria estranheza, muitas coisas pareciam não ter sentido, em especial o que estava fazendo naquele exato momento, sentia que havia coisas mais importantes a serem feitas na vida, mas como muitos seguia o seu caminho, ainda que não fizesse qualquer idéia de que caminho era esse.

Sabia que algo importante tinha chamado a sua atenção durante a madrugada, esse pensamento o incomodava, mas agora já não fazia a menor idéia do que é que tinha chamado a sua atenção.



Entre um solavanco e outro Franz tentava se recordar da madrugada que antecedera. Sentia que tinha sido longa enquanto esperava que o dia amanhecesse, mas agora em meio aos solavancos parecia não ter passado de alguns instantes.

O tempo tem suas curiosidades, às vezes uns instantes parecem se prolongar por uma eternidade, enquanto outras vezes pareciam extremamente curtos, vidas inteiras podiam ser resumidas em poucas linhas ou apenas umas poucas palavras e outras vezes entre um segundo e outro marcados pelos ponteiros dos relógios seriam o bastante para se deslocar até o infinito, lá onde o Espaço se encontra com o Tempo, revelando um espaço de tempo igualmente infinito.

Em suas reflexões Franz entendia que o Tempo, ou um intervalo de tempo eram coisas preciosas, que mereciam uma atenção maior, mas agora esse pensamento só o estava desviando de alguma outra coisa, igualmente importante que tinha ocorrido durante a madrugada, na qual estava com dificuldades em se concentrar.

Finalmente os solavancos cessaram, talvez por eles não estivesse conseguindo se concentrar, aquilo que chamavam de transporte público chacoalhava tanto que chegava a misturar os pensamentos, uma idéia acabava por se misturar às outras.

O ônibus estava estacionado, mas o barulho do motor continuava a se misturar com os pensamentos, as pessoas começaram a descer, alguns mais apressados insistiam em tentar ultrapassar os outros no corredor apertado, onde mal cabia uma única pessoa.

Assim que o movimento diminuiu Franz também seguiu pelo mesmo corredor, como muitas outras coisas aquela pressa não representava qualquer sentido.

Os pensamentos muitas vezes adquirem uma característica peculiar, muitas vezes nos perdemos pensando em coisas inúteis, aparentemente sem nenhum significado, mas enquanto refletia sobre isso sentia que nos pensamentos havia um determinismo, não havia coisas inúteis e se aparentemente algo não tivesse qualquer finalidade, era porque esse pensamento provavelmente só estava impedindo que algo importante viesse à tona e, esse algo desencadearia sofrimento àquele que refletisse sobre ele, assim vivíamos criando pensamento e coisas inúteis com a finalidade de atenuar sofrimentos, mas isso só acarretava um sofrimento ainda maior posteriormente.

Já na rua caminhando lentamente e sendo passado por inúmeras pessoas apressadas, Franz parou por um instante e ficou observando uma pequena floreira em uma janela, perdida entre infinitas estruturas de concreto.

Aquilo que o tinha despertado durante a madrugada voltou a povoar a sua mente.



No decorrer do dia não conseguia se concentrar, nada em seus afazeres parecia merecer uma atenção maior, sem motivação desistiu, já não se recordava de o porque ter ido trabalhar naquele dia, assim como a pressa, os solavancos do ônibus, seu trabalho naquele dia também parecia desprovido de representação.

A angústia maior é que a volta para casa também tinha a mesma representação do trabalho, dos solavancos do ônibus, assim como da pressa representada nos passos rápidos das pessoas.

A lembrança que persistia é que algo importante estava acontecendo entre as rachaduras da calçada de sua casa, algo ali estava diferente, algo que aparentemente não fazia parte de um contexto maior.

Voltando para casa se sentiu incomodado com os passos apressados das pessoas, especialmente no pisar pesado das pessoas naquelas pequenas plantas que insistem em brotar nas rachaduras das calçadas.



Enquanto trilhava o caminho de volta à sua casa, Franz se esquecera de o porquê tinha antecipado seu retorno, sentia que não havia nada importante a realizar em seu trabalho, mas isso não seria um motivo maior para retornar mais cedo, nessas ocasiões sempre achava algo para fazer.

Mesmo quando as coisas pareciam sem sentido tinha o hábito de criar outros significados ao que realizava.

Normalmente esse pensamento aparentemente simples era o bastante para tornar algo sem sentido em uma tarefa um pouco mais agradável, mas nesse dia sequer tinha disposição para isso.

Ao chegar à sua casa entrou imediatamente e, como de costume não reparou nas rachaduras da calçada.

Depois de um breve banho, diferente daqueles prolongados que tanto prezava, já há algum tempo era pedido que economizassem água, nos últimos anos as chuvas se tornaram cada vez mais escassas.

Ainda que sentisse que nem a mídia e muito menos os governos merecessem qualquer consideração, Franz prezava muito a vida e por isso deixou de preservar um de seus poucos prazeres simbolizados nos banhos prolongados para poupar água em respeito à vida que essa proporcionava.

Quando estava apreciando um café forte com pão de milho uma notícia televisionada fez com que ele interrompesse seu café e se dirigisse a passos rápidos para a calçada de sua casa.



Na sala vazia o café esfriava, enquanto uma breve manchete passava na televisão, como expectador um pequeno sofá vazio com dois lugares, uma mesinha com duas cadeiras, igualmente vazias, sendo que a cadeira em que Franz estava sentado fora deixada quase no meio da sala, fora de seu lugar habitual.

Em cima da mesa o café e o pão de milho aguardavam pacientemente que Franz voltasse.

Na televisão apenas mais uma reportagem sobre o trânsito, que próximo ao local onde Franz trabalhava estava especialmente complicado.

No meio da avenida, da noite para o dia nas rachaduras do asfalto uma pequena árvore brotara, não tinha sequer um metro de altura, seus galhos frágeis formavam uma pequena circunferência, ocupando metade de uma pista.

No início pessoas apressadas em seus automóveis esbarravam em seus lânguidos galhos, mas em poucos minutos voltavam a crescer, não demorou e nas imediações se formou alguns quilômetros de congestionamentos.

Pouco depois que Franz tinha resolvido voltar para casa, as instituições governamentais tinham sido notificadas do peculiar incidente e, nesse momento algumas dezenas de equipes com seus imensos caminhões tinham se deslocado até o local com a finalidade de liberar o trânsito.

Até então não tinham conseguido entrar em um acordo não sabiam se simplesmente arrancavam a pequena árvore e depois refizessem o asfalto liberando a avenida para os automóveis, ou se deveriam remover a pequena árvore e depois a replantassem em algum lugar onde não atrapalhasse o trânsito.

A população em volta igualmente parecia desorientada, dividiam-se entre os indiferentes, aqueles que achavam que simplesmente deviriam arrancar a pobre árvore de onde estava e uma outra parcela de pessoas que queriam protegê-la, mas desejavam plantá-la em algum outro lugar.

Nesses três grupos ninguém se questionava sobre se ela tinha escolhido aquele lugar para nascer, era lá mesmo que deveria viver.

As pessoas são curiosas, muitas vezes se revoltam ficam insatisfeitas quando algo que acontece não corresponde aos seus desejos, mas por outro lado decidem sobre o destino de outros seres, inclusive as próprias pessoas, sem maiores cuidados, como se suas vontades devessem prevalecer sobre os demais.

Essa notícia foi o elemento que interrompeu o café de Franz, ao ouvir o início do noticiário lembrou-se do que interrompeu seu sono durante a madrugada, lembrou-se de sua calçada e das plantas que estavam crescendo nas rachaduras dela.



Como suspeitara ao interromper o seu café, chegando à frente de sua casa notou que as plantas nas rachaduras de sua calçada tinham crescido significativamente e também estavam mais verdes que o habitual.

Franz ficou observando atentamente, quase entrou em transe, até que sua atenção foi desviada por uma pessoa que passava apressada pela calçada e, indiferente pisou nas pequenas plantas que cresciam em sua calçada.

Indignado retornou para a sua sala, sentiu que o melhor a fazer seria voltar ao seu café e à pequena broa de milho que agora já estariam frios.

Ao se sentar na sala, agora desperto, conseguia entender o desfecho da notícia insólita que há alguns momentos,  antes de se dirigir à entrada de sua casa, estava sendo transmitida.

Aqueles que se intitulam como autoridades tinham chegado a um acordo, decidiram simplesmente arrancar a pequena árvore que tinha nascido da noite para o dia na rua, era um tipo de planta comum e não tinham nenhum motivo para replantá-la em algum outro lugar, mesmo diante da indignação de parte das pessoas, a pequena árvore arrancada de seu lugar foi simplesmente jogada na calçada e deixada para que o serviço de coleta de lixo a levasse embora.

Já com a avenida os cuidados foram diferentes, não demorou e uma empreiteira já tinha chegado com um projeto que envolvia quebrar uma parte significativa do asfalto para depois refazê-lo, ainda que tivessem feito um serviço muito ruim, deixando um degrau na avenida que provocaria solavancos a todos os veículos que ali passassem, principalmente aos ônibus construídos em uma plataforma de caminhões adequadas para transportar carga. 

Aquele que deveria ser um serviço muito simples acabaria por ter um custo muito elevado e de má qualidade, mas aparentemente ninguém se importava, nem aqueles que se consideram responsáveis pelos serviços públicos e nem o público que efetivamente paga por esses serviços, mesmo sendo muito mal feitos, e com propósito pois assim se deterioram em muito pouco tempo e uma vez mais se torna necessário refazê-lo.

Ao anoitecer depois que o movimento na avenida tinha diminuído a pequena árvore já estava com as folhas murchando.

Felizmente logo alguém ficou indignado ao ver a pequena planta morrendo, era pequena, e possível de ser levada por essa pessoa que ainda que não tivesse onde replantá-la, achou que poderia colocá-la em algum vaso e assim ela sobreviveria.



Depois de seu café Franz continuava em sua sala sentado simplesmente assistindo o noticiário, mas nada do que era veiculado chamava a sua atenção, apenas ficou retido em sua memória a notícia da pequena árvore sendo arrancada da avenida, no local onde nascera, e deixada a esmo para morrer na calçada.

Um incomodo percorria todas as conexões de seu cérebro, sentia que as coisas simplesmente não podiam ser assim.

Não movia um único músculo de seu corpo depois que seus olhos tinham fechado, sua mente trabalhava intensamente, agora sequer ouvia o noticiário, até seus olhos, agora fechados, estavam imersos na escuridão, não distinguia sequer o brilho emitido pela televisão que tinha deixado ligada.

Sentia falta de estar com alguém, mas uma vez mais nos Mundo dos Preocupados estava só, da mesmo forma que todos os demais que habitavam esse mundo peculiar.

Lentamente sentiu se desprendendo de seu corpo, estava flutuando, no meio da sala, em transe conseguia se ver, sentado no pequeno sofá, imóvel.

Quando se deu conta já não estava mais dentro de sua casa, continuava flutuando cada vez mais alto, em instantes viu a cidade em que vivia se tornar um pequeno ponto minúsculo.

Até que em seu campo de visão coube o planeta inteiro que muito rapidamente também foi diminuindo de tamanho até se parecer com um minúsculo ponto azul, frágil, flutuando no vazio, frio, escuro, infinito.

Agora flutuava muito próximo ao sol, labaredas imensas de chamas escapavam dele e desapareciam no vácuo, sentiu a estrela crescer rapidamente, como se estivesse se expandindo.

Ao olhar para o lado oposto uma vez mais viu seu mundo, muito pequeno e pareceu ainda mais frágil, sentiu ser atraído para o seu corpo, ao virar a face para o Mundo dos Preocupados, deixando o sol às suas costa, uma doce voz soou em seus ouvidos.

Meu amor as plantas precisam crescer.



Quando acordou Franz se viu sentado no sofá, tinha adormecido ali mesmo, sentia um incomodo e dores no corpo.

Aquela frase ainda soava nítida em seus ouvidos: “Meu amor as plantas precisam crescer.”

A voz que ressoava em seu ouvido era familiar, mas não sabia identificá-la, sentiu que aquela era a frase mais importante que já tinha ouvido em sua vida.

Era como se tivesse vindo de algum outro mundo.

Esse pensamento ficou flutuando em sua mente por dias, era a primeira vez que sentiu algo que talvez não pertencesse ao mundo que habitava.

Ficou confuso nos primeiros momentos, algumas vezes também se perguntou se ele próprio pertencia a esse mundo.

Se sentia dividido ao mesmo tempo que desejava estar em algum outro lugar, sentia que para chegar a esse outro lugar ainda precisaria ser convidado.

Agora no Mundo dos Preocupados tudo parecia estar como sempre o fora, como sempre as pessoas viviam constantemente preocupadas.

As plantas crescendo em todos os lugares já tinha se tornado uma notícia corriqueira, sentia ser ele o único que ainda as ouvia, os demais apenas escutavam.

Não estavam ouvindo ou vendo que as plantas cresciam rapidamente, o que escutavam ou enxergavam eram notícias do incomodo que isso estava causando, o trânsito que ficava mais complicado cada vez que tinham que arrancar alguma árvore de avenidas, outras que cresciam grudando nas paredes e penetrando entre os telhados e, ainda, muitas vezes se enrolando nas fiações.

A grama que crescia nas rachaduras das calçadas e invadiam as avenidas, deixando-as escorregadias, o que muitas vezes desencadeava acidentes no trânsito caótico da cidade.

Esses continuamente estavam responsabilizando as plantas por esses acidentes, mas em nenhum momento se perguntavam se havia algo a ser repensado em seus modos de vida.

Em um primeiro momento os donos empresas que prestavam os serviços chamados públicos, parasitas, estavam adorando o que estava acontecendo, parecia ser uma fonte infindável de trabalho sem qualquer controle, no qual podiam cobrar o que desejassem, que sempre era muito mais do que efetivamente valia aquilo que chamavam de trabalho, desde que conseguissem deixar os espaços livres para os automóveis circularem.

Já em relação ao transporte público a preocupação era infinitamente menor.

Mas até essas parasitas já estavam com problemas significativos, estavam recebendo multas pesadas pois não dava tempo de retirarem alguma árvore da avenida e outra já estava crescendo, ainda mais rapidamente.

Os órgãos que se dizem públicos que raramente viam alguma coisa além de seus próprios interesses aplicavam as multas pela reincidência do problema e, muitas vezes pela cobrança das parasitas por trabalhos que sequer tinham sido executados.

Uma sensação começou a povoar a mente dos Preocupados, em algum momento as ruas, avenidas e estradas estariam definitivamente inviabilizas para os veículos circularem.

Franz continuava a refletir, a frase não saia de sua mente: “Meu amor as plantas precisam crescer.” Tão doce, suave. Sentiu que sempre a conhecera, que habitava seu coração e sua alma, fazia parte de sua essência.



Nos dias que se seguiram as plantas tinham ocupado todos os espaços das calçadas e ruas, e cresciam sem parar, já não era possível se locomover com nenhum tipo de veículo, agora só era possível caminhar, e com uma certa dificuldade andar de bicicleta.

Entre as árvores uma infinidade de automóveis estavam abandonados e finalmente estavam servindo para algo útil, exceto pelo óleo em seus motores e do combustível em seus tanques que vazavam, já não representavam mais riscos, e não mais tinham a capacidade de estragar o mundo.

Tão logo a natureza absorvesse essas impurezas eles se tornariam inócuos, deixariam de prejudicar o mundo à sua volta.

Curiosamente pela primeira vez depois que saíram das fábricas estavam servindo para algo útil, muitos pássaros, alguns que já tinham dado como extintos voltaram a habitar as árvores, e essa máquinas inúteis representavam um lugar seguro para construir ninhos e abrigo para que essas aves pudessem crescer em segurança e depois viessem a habitar as árvores.

Inúmeros outros animais também estavam utilizando essas máquinas destrutivas agora para se abrigarem e se protegerem, ao menos até que apodrecessem totalmente e se reintegrassem à natureza.

Finalmente as pessoas também estavam vivendo muito melhor, como se tornara impossível caminhar a lugares muito distantes, estavam limitando suas atividades em um raio no qual podiam fazer o que fosse necessário apenas caminhando.

A multiplicação das árvores e plantas trouxe com elas uma quantidade de alimentos nunca antes imaginada, enfim a natureza produzia em abundância tudo o que era necessário àqueles que nela habitavam.

Os últimos lugares que ainda dispunham de energia elétrica estavam entrando em colapso, uma vez que os fios se rompiam à medida que os galhos das árvores cresciam entre eles, da mesma forma a comunicação entre as pessoas que moravam mais distante a cada dia se tornava mais precária pelo mesmo motivo.

Os dias pareciam mais longos e as pessoas ficavam mais dispostas pois sem eletricidade logo que anoitecia iam dormir e com isso estavam experimentando um bem estar há muito tempo esquecido, o silêncio da noite, a escuridão proporcionavam um bem estar só conhecido há muitas gerações; das quais as pessoas, pássaros e outros seres só tinham lembranças através de histórias contadas por seus antepassados.

Aos poucos o mundo se transformava, evoluía em direção à sua origem, mas um grande perigo estava à espreita.



Desde que os automóveis pararam de circular pelas ruas Franz não teve mais insônia, dormia profundamente todas as noites.

Descobriu que nunca realmente tivera insônia, o que o despertava eram os ruídos inúteis provocado por essas máquinas, aliado ao excesso de luminosidade das ruas que adentravam as janelas e cortinas.

Esse ruídos e luminosidade provocavam nas pessoas um sono de péssima qualidade, que igualmente prejudicava Franz.

Muitas vezes as pessoas perdiam essa percepção tinham seus sonos e sonhos interrompidos pelos ruídos das ruas e como tinham um sono de má qualidade igualmente seus sonhos obedeciam a mesma regra.

E no cotidiano acabavam por repetir a qualidade de seus sonhos.

Há alguns dias as luzes próximas à casa de Franz tinham se apagado, com o escuro e sem energia elétrica restavam pouquíssimas coisas a serem realizadas depois do anoitecer e assim tinha mais tempo para dormir.

Nessa noite peculiar a escuridão tomava conta da casa de Franz que ficava à sombra de imensos ipês, mas antes de ir ao Mundo dos Sonhos quis caminhar um pouco, depois de alguns minutos encontrou uma pequena clareira na copa das árvores.

Ficou por alguns instantes apreciando o vão entre os galhos das árvores, antes imaginava que as pessoas tinham criado a iluminação artificial por causa da escuridão das noites, mas ao olhar para o céu notou que isso era totalmente falso, não havia escuridão nas noites, até então não se lembrava que no céu havia tantas estrelas e, ainda a lua brilhava intensamente.

Se desejasse naquela pequena clareira, mesmo à noite seria possível ler.

Toda a iluminação artificial criada estava servindo para ofuscar o brilho da noite, se as pessoas se permitissem utilizar essa luz, toda a iluminação artificial seria desnecessária.

Olhando para o céu Franz se sentiu fascinado. A Grande Estrela Azul, nesse momento iluminava todo o seu corpo, lentamente entrou em transe e nesse ouviu nitidamente a seguinte fala: 

“Meu amor as árvores precisam crescer mais, tem pessoas desorientadas querendo destruí-las, mas sequer conseguirão dar alguns passos nesse sentido, o perigo está muito acima.”

Quando saiu do transe voltou pensativo para casa, estava com muito sono, sabia que conhecia aquela voz, doce, amável, mas não conseguia se lembrar de onde.



Aqueles que se auto intitulavam como governantes tinham permanecido ocupados nos últimos dias.

Depois que as plantas começaram a crescer eles tinham perdido as suas funções, nada do que tentavam fazer surtia qualquer resultado, e consequentemente acabaram por perder totalmente os seus status.

Agora se desejassem minimamente sobreviver tinham que trabalhar para conseguirem alimentos e cuidar de suas próprias coisas, como habitualmente faz qualquer pessoa honesta.

Eles estavam furiosos e como suas antigas posições nada mais representavam, não tinham mais como abusar daqueles que efetivamente trabalhavam para se manter e que também mantinham os luxos inúteis que antes eles desfrutavam.

No princípio, quando as plantas ainda não tinham ocupado totalmente as ruas estradas e avenidas, eles tentaram intimidar aqueles que efetivamente trabalhavam a terem atitudes que fizessem com que o mundo retornasse à sua condição anterior.

Aplicavam multas diariamente aos moradores das cidades pelas plantas que cresciam incessantemente em frente às suas casas, mas era totalmente inútil, não importava o que fizessem as plantas não paravam de crescer.

E antes que se dessem conta, o dinheiro nesse novo mundo tinha perdido totalmente o seu significado, que efetivamente nunca tivera nenhum, além de manter o status desses que se dizem governantes e similares.

Isso os deixava ainda mais furiosos.

Por outro lado, as pessoas estavam desfrutando de uma qualidade de vida nunca antes experimentada, alguns desses inicialmente achavam que estavam perdendo parte de seu conforto, mas a quase totalidade sequer tinham experimentado o que eles chamavam de conforto, não passava de uma propaganda, algo a ser conquistado com muito trabalho, mas por mais que essa quase totalidade da população trabalhasse, nunca conseguiam desfrutar desse conforto, praticamente tudo que produziam era revertido para proporcionar o luxo inútil desses que acham que governam alguma coisa.

Agora, com um trabalho mínimo todos podiam desfrutar do que necessitavam, a natureza fornecia em abundância tudo que era preciso, a falta de recursos ao qual essa totalidade da população estavam expostos era o resultado de retirarem da natureza muito mais do que era necessário.

O luxo desnecessário dessa pequena minoria produzia a sensação de falta na quase totalidade das pessoas.

Na calada da noite esses pretensos governantes planejavam uma forma de o mundo voltar àquilo que consideravam uma ordem natural das coisas.



A população em geral já não dava qualquer atenção a esses pretensos governantes, no início quando as plantas começaram a se espalhar eles gritavam com violência e às vezes chegavam a amedrontar a população com as suas multas e o risco de expropriação dos poucos bens que detinham.

Com o passar do tempo e as plantas crescendo sem parar, não demorou para que fossem ignorados até que suas ameaças não mais surtiam qualquer efeito, a cada dia ficavam mais desmoralizados.

As pessoas agora desfrutavam de um conforto nunca antes conhecido, com a paralisação dos transportes tinham que achar soluções às suas necessidades nas proximidades de onde moravam.

Não demorou e se deram conta de que necessitavam de muito menos do que até então imaginavam, os produtos industrializados desapareceram desse novo mundo e vieram a dar lugar ao que era possível ser manufaturado.

Para isso não era necessário mais que umas poucas horas por dia de trabalho, e agora podiam desfrutar do maior bem que efetivamente podiam ter, que é o próprio tempo dedicado ao bem viver.

Já os pretensos governantes passavam por dificuldades, não mais conseguiam comprar as pessoas para realizar as suas próprias atribuições e aquilo que eles consideravam como seus bens se esvaiam rapidamente, tentavam vender seus objetos de luxo às pessoas em troca de trabalho para manter as suas inutilidades, mas as coisas que achavam ser suas propriedades não tinham mais nenhuma serventia às pessoas.

Sentiam-se furiosos por terem que procurar os alimentos para si próprios e manter suas imensas casas e uma infinidade de objetos de luxo que provavelmente nunca tiveram qualquer serventia.

Em mais uma tentativa estavam enchendo imensos galões com o que restava de óleo e combustíveis e, em um comboio de tratores e caminhões estavam se dirigindo ao oceano.

As pessoas pensavam que eles estavam procurando algum outro lugar para viver a vida como antes de as plantas crescerem, mas seus planos eram outros.



O comboio com as parasitas se distanciava lentamente, mesmo os grandes tratores tinham dificuldades em andar, inicialmente tentaram cavar o chão trilhando um caminho para os caminhões que vinham atrás, mas antes mesmo de terminarem de cavar as plantas voltavam a crescer ainda mais rapidamente.

Assim desistiram de cavar e passavam por cima delas, muitos dos caminhões carregados com combustíveis não conseguiam seguir e quando isso ocorria eram guinchados pelos tratores.

Aqueles que ficaram nos agora vilarejos se sentiam aliviados com a partida das parasitas.

Aparentemente já não representavam mais riscos e estavam completamente desmoralizadas, mas a simples presença delas causava um incomodo, sempre praguejando contra esse novo mundo e tentando ameaçar as pessoas que agora desfrutavam de uma qualidade de vida nunca antes imaginada.

O sentimento das pessoas que trabalhavam, agora com prazer para manter a própria vida, oscilava entre a pena e a repulsa em relação às parasitas.

Ainda se lembravam do tempo que trabalhavam a maior parte de seu tempo e gastavam muitas horas para chegar ao seu trabalho e depois retornarem, quando chegavam às suas casas se sentiam cansados e tudo que restava era comer alguma coisa e dormir, para no outro dia retornarem às suas atividades extenuantes.

Sabiam que produziam muitas riquezas, mas praticamente nada do que era produzido se destinava a eles próprios, a totalidade era revertido em luxos inúteis para suprir a ausência de saciedade das parasitas.

Agora que elas tinham partido todos desfrutavam um sentimento de alívio, porém na mente das parasitas pairava um sentimento de ódio, planejavam destruir as florestas e retomar seu antigo modo de vida.



Quando estavam distante demais para retornarem as parasitas se viram rodeadas por uma imensa floresta, a copa das árvores eram imensas e isso impedia que visualizassem o caminho a ser seguido, tinham perdido a noção de direção, tinham por objetivo chegar ao oceano, onde um imenso navio com aviões de guerra as aguardavam, mas agora as imensas árvores estavam por todos os lados.

Já não tinham sequer noção do caminho que tinham acabado de trilhar, tão logo passavam por cima das plantas, outras já cresciam imediatamente, agora estavam totalmente cercadas.

Sem opção decidiram seguir à frente, mesmo sem saber se esse caminho as levariam para o oceano, teriam que derrubar as imensas árvores, pensavam não ser um esforço maior para os tratores.

Assim retornaram ao comboio com a intenção de deixar que os tratores seguissem à frente derrubando as árvores, mas depois que ligaram os motores de suas possantes máquinas e com suas marchas engatadas, elas não mais se moviam, trepidavam fazendo muito barulho, porém permaneciam imóveis.

Sem compreenderem desceram uma vez mais de seus veículos para tentar entender o que estava acontecendo, ao chegarem no chão as parasitas ficaram perplexas.

Plantas rasteiras tinham se enrolado em volta das rodas de todos os veículos, e rapidamente estavam chegando aos seus motores.

Com foices e machados tentavam cortar as plantas, mas elas cresciam muito mais rapidamente do que podiam cortá-las.

Em poucos instantes essas plantas rasteiras tinham envolvido todo o comboio delas, se desejassem continuar não teriam outra opção além de caminharem.

Mas elas precisavam dos grandes galões com combustíveis que estavam nos caminhões, diferente do que as pessoas que viviam na cidade, agora tomada pelas plantas, a finalidade de todo aquele combustível não era alimentar o comboio para uma longa viagem, a intenção das parasitas, como sempre envolvia requintes de crueldade.

As parasitas sentiam que seria impossível caminharem e transportar aqueles galões, mas mesmo assim insistiram nessa alternativa, com dificuldade retiraram os galões dos caminhões e começaram a rolá-los em direção às grandes árvores, quando chegaram nelas olharam uma última vez para traz, as plantas rasteiras já tinham encoberto totalmente o comboio delas.



Enquanto rolavam os galões com combustíveis as parasitas conversavam, a maioria delas já não estavam compreendendo o que estavam fazendo, como as pessoas que moravam na cidade agora tomada pelas plantas, essas parasitas imaginavam estar indo para algum lugar distante, uma cidade isolada onde ainda prevalecesse seus antigos modos de vida.

Estavam imaginando que uma vez mais iriam explorar as pessoas e o mundo à volta delas retirando tudo o que fosse possível para manter seus luxos inúteis, mas aquelas que comandavam o comboio até então não tinham se dado ao trabalho de expor seus propósitos.

Essa é uma característica peculiar das parasitas, elas sempre se consideram acima de qualquer ser e, assim, não têm qualquer necessidade de expor suas intenções, inclusive para parasitas menores, uma vez que essas também só existem, na concepção delas para atenderem aos seus luxos.

Porém, nesse momento, não havia como fazer com que essas parasitas menores trabalhassem para elas sem que expusessem o que pretendiam.

Enquanto as parasitas menores trabalhavam, as que comandavam explicavam que como tinham feito em um passado não tão distante, com os aviões de guerra na grande embarcação iriam pulverizar a floresta que agora ocupava não só o cidade como também parte significativa do planeta com os combustíveis e, na seqüência, quando a nuvem de combustíveis estivesse na altura das grandes árvores soltariam uma pequena bomba que funcionaria como uma faísca, incendiando tudo que estivesse vivo na superfície.

Na seqüência espalhariam venenos agrícolas que estavam sendo levados por outras parasitas ao grande navio, para garantir que as plantas não voltassem a crescer.

Continuavam explicando enquanto as parasitas menores trabalhavam que no passado tinham feito isso com excelentes resultados em uma pequena ilha no oceano em uma disputa de poderes das parasitas que se diziam comandantes das duas maiores potências bélicas do planeta.

Uma outra peculiaridade das parasitas é sua imaginação limitada, tendem a repetir indefinidamente as mesmas atitudes, só mudando-as quando absolutamente necessário, esse funcionamento delas se deve à sua limitação no sentido de que a única coisa que tem relevância nas suas vidas são seus luxos inúteis.

Enquanto ouviam um pequeno grupo de parasitas menores questionaram, pois com essa atitude também queimariam as pessoas que não se mudaram da cidade.

Em resposta disseram que se estavam incomodas por essas pessoas poderiam tentar retornar para o convívio com elas.

Esse pequeno grupo de pequenas parasitas respondeu que não estavam incomodadas com as pessoas, o que pensavam era que elas compravam as suas inutilidades e se fossem queimadas quem iria consumir para continuar mantendo seus luxos inúteis.

Com desdém as grandes parasitas explicaram que isso representava apenas uma pequena perda imediata em seus lucros desnecessários, mas depois que queimassem as florestas as pessoas voltariam a trabalhar para elas e então gerariam inutilidades como nunca tinham feito, elevando seus luxos desnecessários a um patamar sem precedentes.



As parasitas menores, que por suas peculiaridades, não diferentes das maiores, depois de rolarem os galões com combustíveis por alguns metros já se sentiam completamente esgotadas, elas nunca trabalhavam, só se ocupavam planejando a vida das pessoas, impondo a elas um trabalho extenuante sem fim, com a finalidade exclusiva de manter seus luxos inúteis.

Efetivamente não tinham qualquer disposição para qualquer trabalho de fato, suas intenções sempre se limitavam a subtrair das pessoas e do mundo aquilo que consideravam riquezas.

Exaustas, mesmo sob os protestos das parasitas maiores que se limitavam a dar ordens pararam momentaneamente para descansar.

Nesse pequeno tempo a vegetação rasteira que há pouco tinha paralisado o seu comboio tinha envolvido completamente os galões e já começavam a se enrolar nos pés delas.

Ao sentir os pés presos se desesperam e começaram a correr, deixando para traz os galões com combustíveis.

As parasitas maiores que até então não tinham realizado qualquer esforço ao se darem conta tentaram retornar para reaver os galões com combustíveis, mas esses já estavam totalmente envoltos pela vegetação.

Diante de sua frustração tentaram furar os galões para que o combustível vazasse envenenando as plantas, também tinham a intenção de atear fogo nos combustíveis para queimar o que fosse possível, mas uma vez mais se sentiram frustradas a camada de vegetação era espessa demais para elas cortarem.

Se viram sem outra alternativa além de abandonar os galões.

Continuaram sua caminhada praguejando e responsabilizando as parasitas menores que por sua preguiça tinham parado a caminhada e por isso acabaram por perder o que achavam ser a chance que tinham de reaver seus antigos modos de vida.

Quando alcançaram as parasitas menores estavam furiosas, culpavam as menores pelo ocorrido para compensar tentaram fazer com que as menores as carregassem daquele ponto até o oceano para que pagassem por sua culpa.

Essa sempre foi uma outra peculiaridade das parasitas culpar coisas, pessoas e outros seres pela sua ganância.

Em episódios no antigo mundo, antes de as plantas começarem a crescer era comum culparem o clima por acidentes ocorridos pela negligência que comumente tinham com suas construções, também culpavam frequentemente os trabalhadores que habitualmente cumpriam as suas ordens.

Em outras ocasiões culpavam até outras parasitas quando ocorriam desastres, mas nunca reviam seus próprios processos ou suas gigantescas margens de lucro.

Curiosamente não tinham um destino certo para aquilo que chamavam de riquezas, acumulavam e gastavam com luxos inúteis que sequer desfrutavam.

Outras vezes frente aos desastres, criavam normas e regras, muitas vezes desconexas e impossíveis de serem cumpridas e, quando não cumpridas aplicavam multas, e essas atitudes não tinham praticamente nenhuma eficácias para diminuir os acidentes, mas sempre revertiam em mais lucros ainda, sempre para alimentar sua fome insaciável de luxos inúteis.

Em sua caminhada até o oceano a quase totalidade das parasitas menores e algumas das maiores não suportaram o esforço e pereceram no caminho.

A cada uma que ficava para traz, as demais olhavam com um riso de ironia, seria uma a menos para dividir seus lucros, depois que restabelecessem seus antigos modos de existência.



Só umas poucas parasitas conseguiram chegar ao litoral, a maioria tinha perecido no caminho.

Sem as pessoas e até mesmo outras parasitas para alimentá-las e realizar para elas as atividades mínimas para a sobrevivência aos poucos foram caindo pelo caminho.

Aquelas que sobreviveram ao atingirem o seu destino tiveram que se confrontar com uma decepção ainda maior.

As parasitas que deveriam levar os venenos agrícolas tiveram um destino ainda mais severo que elas, eram ainda mais preguiçosas, e nenhuma delas conseguiu chegar ao oceano, todas pereceram.

Esgotadas ao chegarem ao porto onde esperavam encontrar a grande embarcação com os aviões de guerra, se depararam com o vazio.

Sem as pessoas para fazer os trabalhos nas embarcações que tinham por finalidade defender os interesses das parasitas, essas acabaram por se soltar de suas amarras e estavam à deriva no mar, outras tinham sido jogadas às praias pela maré e se encontravam irremediavelmente encalhadas.

Sob o mar e região costeira, como ocorrera nas cidades, agora envolta pelas florestas, uma espessa camada da algas cobriam tudo.

Se não fossem tão obesas as parasitas que sobreviveram poderiam caminhar por cima das algas para conseguirem chegar às embarcações que estavam à deriva, mas nesse intento a maioria delas acabou afundando no oceano e se afogando.

Só umas poucas que caminharam sobre as algas com excesso de cuidados conseguiram chegar a um dos porta aviões, mas ao embarcarem a visão foi desoladora.

As algas tinham coberto completamente o convés e todos os aviões e, sem qualquer dúvida eles estavam inoperantes.

Ainda tinham a esperança de chegar à sala de controle de embarcação, e de lá disparar os mísseis que fossem possíveis para queimar a vegetação e o que estivesse vivo em sua antiga cidade.

Mas as portas estavam emperradas pelas algas, com muita dificuldade chegaram à sala de controle, entretanto a sua tentativa de movimentar seus motores foi totalmente frustrada, todos estavam emperrados com as algas que cresceram ao redor de suas hélices, nada na embarcação funcionava.

Ficaria à deriva até que afundasse ou fosse jogada na encosta pelo movimento da maré, como já tinha acontecido com outras embarcações.

Desoladas as poucas parasitas que sobreviveram cederam ao cansaço, sentiam necessidade de se alimentarem, mas na ausência de pessoas para as servirem se sentiam impotentes para conseguirem qualquer tipo de alimento.

Em uma última tentativa de sobrevivência atacaram algumas que se encontravam mais enfraquecidas e devoraram o que foi possível dessas.

Passado isso a desconfiança que sempre existiu, essa uma outra peculiaridade das parasitas, não confiavam em ninguém, e elas próprias não se achavam dignas de confiança. Assim se isolaram e se distanciaram umas das outras.

Sabiam que se fraquejassem seriam devoradas por aquelas que ainda tinham alguma força.

Isoladas, tudo o que tinham para se alimentarem eram seus próprios dejetos, à medida que perdiam suas energias procuravam por algum canto onde pudessem se proteger para que as demais não as devorassem, mas mesmo antes de morrerem as algas as encobriram e lentamente todas pereceram.



Passado alguns dias depois que as parasitas partiram aqueles que habitavam a cidade, agora totalmente tomada pelas plantas, já não se lembravam mais da existência delas.

Sem o peso que elas representavam na vida de todos, não só das pessoas, como também das plantas e outros seres que viviam entre elas, tudo transcorria em plena harmonia.

Sem a necessidade de expropriar a natureza para alimentar os luxos inúteis das parasitas as pessoas aprendiam rapidamente a viver em equilíbrio com o mundo que as rodeava.

A vida fornecia a todos: pessoas, plantas e demais seres o que era necessário em abundância, a falta de recursos que assombrava as pessoas era o resultado de extrair da natureza muito mais do que necessitavam, poluindo e degradando tudo o que havia à volta.

Agora as pessoas precisavam de umas poucas horas do dia para coletar os alimentos necessários à sua sobrevivência na floresta que habitavam, ao alcance de suas mãos e, ainda, confeccionar roupas e ferramentas para lapidar as poucas coisas que necessitavam.

Não havia relatos ou lembranças de um momento na história das pessoas em que elas tivessem tido tempo para elas próprias desfrutarem a vida.

Sem eletricidade todos estavam dormindo mais, pois assim que anoitecia pouco podiam fazer, com as horas a mais de sono estavam sonhando mais e, nesses sonhos se organizavam melhor, encontrando equilíbrio consigo próprias e consequentemente com  o mundo que as rodeia.

Entre elas Franz estava pensativo, não tinha com quem conversar além de si próprio, ainda não compreendia a mensagem que achava ter vindo em seu sonho.

Ficou se perguntando o que significava “o perigo vinha de mais acima”.

Uma vez mais estava anoitecendo, já deitado em seu quarto, Além da Janela viu os últimos raios de luz desaparecerem entre as folhas das árvores.

Naquele momento que precede o sono uma frase se desenhou em sua mente: “meu amor preste atenção nos pássaros”.



Franz dormiu profundamente, a leve brisa que adentrava a janela, deixava seu quarto particularmente agradável.

Sem se dar conta se desprendeu de seu corpo, estava flutuando no centro do aposento onde sonhava.

Olhando ao redor viu-se em um mundo totalmente diferente do que conhecia, sentiu estar em um tipo de caverna, era escuro, mas havia um brilho intenso, o chão, as paredes e o teto eram forrados por pequenos cristais, que refletiam qualquer raio de luz que adentrasse aquela caverna escura.

Parecia ser um lugar muito grande, se sentiu flutuando e adentrando locais mais profundos da caverna, várias vezes teve a impressão de ouvir vozes, mas não via ninguém, nada além do reflexo das luzes nos infinitos cristais incrustados nas pedras da caverna.

Depois de flutuar por mais um longo trecho da caverna, agora mergulhada em total silêncio ouviu o choro, talvez o uivo de um cachorro.

Seu coração disparou.

Despertou por um instante, olhando ao redor seu quarto estava mergulhado no escuro, a única luz tênue que percebia vinha da janela aberta.

Sentiu a cortina leve e transparente que impedia a entrada de insetos em seu quarto se mover brandamente.

Uma sensação de paz invadiu seu coração, ainda que não tivesse chegado a ver, sentiu que conhecia aquele cachorro que tinha uivado no interior da caverna, mas em sua vida, até então, inda que gostasse muito deles, não tinha tido a oportunidade de viver com um deles.

Várias vezes pensou em adotar um, mas no antigo mundo conturbado, não tivera tido a oportunidade. Agora, com o mundo envolto por plantas muitas vezes os encontrava, como as pessoas também pareciam felizes, agora eram almas livres, não mais precisavam ficar prisioneiros de pessoas ou casas, mas ainda assim muitos deles não deixavam a companhia das pessoas.

Não tinha mais sentido ter um cachorro, hoje eles partilhavam o mesmo mundo com as pessoas e todos os demais seres que habitam esse mundo, mas ainda assim alguns desses dóceis seres escolhiam alguma pessoa para eles cuidarem.

Olhando o movimento brando da cortina no quarto escuro e refletindo sobre o cachorro que ouviu na caverna e achava conhecer, Franz voltou a dormir.

Uma vez mais a mesma frase se desenhou em seu pensamento, achou conhecer a doce voz de quem a pronunciou, mas não sabia de onde a conhecia.

“Meu amor, preste atenção nos pássaros.”



Quando Franz se levantou o dia estava começando a clarear, uma névoa branca cobria todas as plantas, em volta estava tudo em silêncio.

Se debruçou à janela e ficou apreciando a névoa que tudo envolvia, estava pensativo, ficou imaginando o que significaria as frases que se desenhavam no seu pensamento nos sonhos.

O que os pássaros teriam a dizer? Qual seria o perigo que vinha de cima?

Continuando seu devaneio falou consigo próprio, talvez todos tenham o que dizer: as plantas, os pássaros, os outros seres que habitam esse mundo de magia, inclusive as pedras e os cristais principalmente deveriam ter preciosidades a nos revelar.

Pensou que talvez os cristais fossem um presente das estrelas, neles viviam a essência das coisas, em algum lugar estaria o cristal que guardava a sua essência, imaginou que em algum momento seria presenteado com esse cristal.

Enquanto refletia sobre o cristal o silêncio foi quebrado, algo mexeu com as plantas que viviam logo abaixo da janela.

Ao olhar para baixo se deparou com um pequeno cachorro com aparência de ser desconfiado, ao mesmo tempo que abanava o rabo, fugiu ao perceber que Franz o observava.

Pensativo, Franz sorriu consigo próprio, achou que o cachorrinho tinha algo muito importante a ser feito, possivelmente ele tinha a responsabilidade de acordar o sol nesse dia que se avizinhava.

Agora com o dia um pouco mais claro continuou olhando a névoa que se dissipava.

Lembrava-se vagamente do tempo antes de as plantas crescerem tanto, as águas sempre eram um problema, passavam por longos períodos de seca, com um calor muitas vezes insuportável, às vezes tudo ficava seco e muitas plantas morriam, às vezes se queimavam facilmente por alguma chama que algum descuidado ateava a elas.

Outras vezes as chuvas eram tão intensas que provocavam alagamentos, as enxurradas carregavam e destruíam o que estivesse em seu caminho.

Carregavam consigo a sujeira produzida pelas pessoas, os restos que utilizavam para produzir os luxos inúteis para manter a fome insaciável das parasitas.

Essas águas eram sujas e poluíam ainda mais os rios e oceanos.

Tudo por inutilidades, só para tentar saciar a ganância infinita das parasitas.

Depois que as plantas cresceram sempre havia chuvas brandas e às manhãs a relva e tudo em volta estava muito úmido, mas raramente havia chuvas fortes.

Nunca mais houve escassez de água, em alguns lugares ela brotava do chão, límpida, cristalina.

O sol começava a aparecer entre as árvores, estava com sede e fome, saiu para procurar por algumas frutas, no caminho lembrou-se que tinha algo importante para pensar, mas já não se lembrava o que era.



Franz estava se deliciando com as frutas que encontrara praticamente em seu quintal, gostava especialmente das uvas e morangos.

Ficou refletindo sobre o que a pouco tinha chamado de seu quintal, essa frase agora era totalmente desprovida de sentido, não existia mais um quintal seu, tinha toda uma floresta ao seu redor, na qual o sentido de propriedade era algo que tinha se perdido no passado.

Fazia parte de um todo, da floresta, e o mundo à volta, enfim todo o Universo, como as plantas, os animais, as pedras, cristais e os seres mágicos que habitavam a floresta e que espalhavam sementes, eram parte de um todo, infinito, vivo pulsante.

Não mais se sentia dono de nada e paradoxalmente tinha toda uma floresta ao alcance de suas mãos, com todas as suas preciosidades.

Antes no Mundo dos Preocupados, assolados pelas parasitas, com letra minúscula mesmo, seu quintal não passava de um pequeno corredor apertado, forrado por concreto, tudo que podia desfrutar eram umas poucas plantas, exprimidas em vasos igualmente apertados.

Mesmo esse sentido de propriedade era estranho, tinha um título de propriedade de sua pequena casa, mas mesmo assim praticamente metade das riquezas que produzia eram para pagar tributos, dos quais não tinha sequer a noção de sua finalidade.

Dizia-se em uma mídia comprada, de propriedade das parasitas, que esses tributos eram para manter a estrutura social, mas qualquer um que tivesse um pouco mais de recursos pagavam com a metade que lhes restava para outros particulares para desfrutarem de serviços sociais, dado a precariedade desses serviços que eram denominados de públicos.

Agora no Mundo das Plantas praticamente tudo que necessitava se encontrava ao alcance das mãos.

Terminado seu café matinal, ficou pensativo quanto à caverna com cristais incrustados de seu sonho, não se recordava em sua vida de um momento permeado por tanta paz.

Sentiu muitas saudades do cachorro que achou ouvir uivar em seu interior, sentiu que a presença dele traria imensa harmonia à sua vida.



Nesse dia Franz nada tinha a fazer e, diferente do habitual não desejava ficar onde as outras pessoas ficavam para se divertirem, desejava um tempo para ficar só.

Pensou em uma caminhada por alguma Trilha, no caminho encontrou algumas pessoas que moravam um pouco distante do vilarejo cavando um poço para não mais precisarem transportar água.

Parou para ajudá-las, não foi necessário um esforço maior, depois de cavarem pouco mais de um metro a água cristalina começou a brotar do chão, em volta havia muitas pedras para forrar as paredes do poço, o que tornaria a preciosa água ainda mais pura.

Depois de saciar a sede continuou a sua caminhada, após se embrenhar um pouco mais entre as árvores ainda ouvia as pessoas que tinham cavado o poço comemorarem, mas a cada passo suas vozes ficavam mais baixas.

Passados alguns minutos se viu envolto pelo silêncio, as frases que se desenhavam em sua mente nos sonhos estavam fervilhando.

Habitualmente Franz era uma pessoa solitária e isso não tinha se modificado com as mudanças que ocorreram no mundo.

Ficou se perguntando quem era a pessoa que o chamara de amor, sentiu conhecer aquela voz doce, suave, era como se ela sempre estivesse estado em sua mente, parecia ser parte da mesma essência da qual ele era formado.

Era como se aquela voz sempre tivesse estado ao seu lado.

Talvez por isso apesar de ser solitário, nunca chegou a conhecer a solidão.

Quando se deu conta notou que em mais alguns instantes começaria a anoitecer e em passos lentos voltou à sua casa, não sentia fome, mas estava com a boca seca, no caminho apanhou umas poucas frutas e em uma fonte parou para saciar a sede.

Sentiu que a sua noite seria povoada por sonhos.

Nas proximidades do oceano, onde as parasitas pereceram, grandes mamíferos estavam agitados, sentiam que não mais deveriam ficar nas proximidades do mar.



Enquanto caminhava pela Trilha escureceu totalmente, as grandes árvores projetavam sombras deixando o caminho ainda mais escuro.

Quando passou pelo pequeno vilarejo onde ajudou a cavar o poço estava tudo mergulhado em um profundo silêncio.

Em passos lentos continuou a caminhar até a sua casa, a única coisa que ouvia era o crepitar de pequenos galhos secos se quebrarem ao ser tocado pelos seus pés.

Uma tênue luz azul atravessava os galhos e folhas das grandes árvores, inda que não percebesse essa pouca luz o envolvia e desenhava o caminho que Franz tinha a seguir.

A voz de Valkíria soava cada vez mais nítida em seus ouvidos à medida que se aproximava de sua casa.

No caminho um automóvel agora totalmente coberto pela vegetação chamou a sua atenção, não essa máquina destituída de finalidade, mas um casal de pássaros que tinha feito o seu ninho embaixo dele.

Não se recordava de ter visto ninhos de passarinhos junto ao chão, mas esses conseguiram prestar alguma utilidade a essa máquina, símbolo de uma sociedade decadente que tinha se extinguindo.

Pensou em olhar o ninho, mas ao se aproximar mudou de idéia, não quis atrapalhar o sono desses pequenos seres que plantavam florestas.

Ao chegar em casa estava sonolento, não se lembrou de colher algumas frutas para comer antes de adormecer, mas também não sentia fome, depois de um banho breve e apreciar um pouco de água cristalina foi se deitar.

Em poucos instantes já tinha adormecido.

A doce voz de Valkíria continuava a ressoar em seus ouvidos, a mesma frase: “Meu amor, preste atenção aos pássaros.”

A luz da Estrela Azul adentrou o quarto e o envolveu. Franz flutuou, sem despertar atravessou a janela, depois de poucos instantes já estava acima das grandes árvores.

Valkíria o esperava, depois de um toque suave em uma de suas mãos se entrelaçaram e flutuaram para além da atmosfera do planeta.

Franz continuava dormindo profundamente, agora estavam de frente para o sol, ele estava imenso, agora irradiava uma luz vermelha intensa, diferente de sua luz branca cálida, e também muito diferente da luz amarelada que chegava ao Mundo das Plantas.

Grandes labaredas avermelhadas escapavam de sua superfície e se perdiam o escuro Universo, infinito, frio, vazio.

Diferente de seu habitual Franz estava tendo um sono agitado, a intensa luz vermelha queimava seus olhos, mesmo estando fechados.

Sentiu a suave mão de Valkíria envolver sua face para que a luz o incomodasse menos, a luz azul envolvia as mãos de sua amada, protegendo seus olhos.

Ainda no escuro despertou transpirando, queria se levantar, mas seu corpo não o obedecia, sentia-se entorpecido, cansado.

Valkíria disse em seu ouvido, baixinho: “Descanse um pouco mais meu amor, ainda vai demorar mais alguns dias.”



Quando o dia amanheceu nas proximidades do oceano grandes mamíferos que conseguiram escapar dos zoológicos,  agora eram seres livres e estavam agitados, pareciam estar nervosos.

Os primeiros a denotarem estranhamento foram os elefantes, juntaram-se em uma grande manada e faziam muito barulho.

Uma chuva pesada parecia estar se formando.

Agitados os elefantes começaram a se afastar do litoral, se dirigiam em direção às montanhas, tinham um grande cuidado com os pequenos, que ainda tinham dificuldades em caminhar, esses seguiam em passos lentos no meio da manada, determinavam os passos dos maiores que estavam agitados.

Atrás de si deixaram uma trilha claramente demarcada, em sua pressa derrubaram algumas árvores.

Quando os rugidos que emitiam começaram a ficar mais baixos, dado a distancia que estavam outros animais menores seguiram a sua trilha, os últimos foram os cachorros e gatos agora seres livres, que antes viviam com as pessoas.

Assim que esses últimos passaram, uma vez mais a vegetação voltou a crescer, apagando os vestígios da trilha deixada pelos elefantes.

As proximidades do litoral agora estavam desertas, ocupadas por uma vegetação exuberante que não deixava mais espaço nem para seres menores como os gatos passarem.

No oceano ainda que mais silencioso o movimento era semelhante, as primeiras a se movimentarem foram as baleias, nadavam velozmente em direção ao que restava dos pólos, ainda congelados, golfinhos e outros peixes maiores as seguiam.

Já os menores que não conseguiam ir para tão longe se juntaram às tartarugas e outros seres marinhos e procuravam se esconder em cavernas no fundo dos oceanos.

As algas que cobriam a superfície do oceano estavam ainda mais espessas, era até possível caminhar em cima delas.

Os rios que chegavam aos oceanos tinham aumentado significativamente seu volume de águas, agora as águas que chegavam ao mar eram límpidas, cristalinas e geladas.



Ainda que tivesse dormido por muito tempo Franz acordou cansado, ao olhar para a janela percebeu que o dia já tinha amanhecido há algumas horas, mas sentia-se indisposto e ficou na cama por mais algumas horas.

Ao sentir a boca seca, quis se levantar, mas demorou alguns instantes para que seus músculos respondessem, as pernas e braços não o obedeciam, estava acordado, porém seu corpo ainda estava adormecido.

Curiosa essa divisão que tinha aprendido quando ainda existia o Mundo dos Preocupados, as pessoas falavam de si próprias como se fossem dois seres distintos, um estava simbolizado principalmente em seus pensamentos e em um grau menor seus sentimentos, e um outro eu que estava simbolizado em seus corpos, se a evolução seguisse esse caminho possivelmente muito em breve as pessoas estariam dividas em três eus: seus pensamentos, seus corpos e seus sentimentos, seguindo essa ordem de prioridade.

Outros seres do mesmo planeta provavelmente por não obedecerem essa dicotomia ou tricotomia viviam em maior harmonia consigo próprios e com o mundo que as rodeava, não representavam partes de si mesmos eram integrados consigo próprios e com o mundo.

Por serem partes e não um todo, igualmente as pessoas não viam o mundo como uma extensão de si próprias e sim como algo para ser espoliado e explorado, mesmo quando essa exploração se mostrava totalmente sem finalidade.

Provavelmente essa divisão nas pessoas nasceu com a finalidade de explicarem a si próprias e ao mundo que as rodeava, sem se darem conta que talvez muito mais importante do que achar explicações seria se sentir como parte desse mundo.

As explicações tinham como finalidade preencher o vazio que sentiam, e simplesmente não havia explicação para esse vazio, uma vez que esse vazio simbolizava sentimentos e evidentemente não tinham palavras para que fossem explicados, e quanto mais se embrenhavam nesse caminho maior se tornava o seu vazio.

Em tentativas frustradas espoliavam o mundo na esperança de preencher o vazio existencial imaginando que consumindo o mundo o vazio pudesse ser preenchido, mas o vazio só ampliava com essa dicotomia entre o homem e o mundo, talvez o caminho fosse exatamente o contrario: ser no mundo, como qualquer outro ser e ai o vazio seria só mais uma parte do mundo, não algo a ser preenchido, mas algo a ser sentido.

A outra dicotomia: pensamentos e corpo também tinha nascido com a fome de se explicar e justificar a espoliação à qual submetiam o mundo e de uns sobre outros, mas igualmente essa divisão nunca existiu efetivamente, ela era uma divisão daquilo que tanto valorizavam e que chamavam de ciência.

Por não haver uma área nessa ciência que desse conta de explicar a si próprios: seus pensamentos, seu corpo e seus sentimentos, e ainda o mundo que habitava fora de si, cindiram a ciência da mesma forma que eram cindidos, como se corpo, pensamentos, sentimentos e o mundo pudessem ser cindidos.

Essa divisão foi criada simplesmente para que aquilo que denominavam de ciência pudesse achar explicações e justificativas para a espoliação inútil que impingiam ao mundo e uns a outros, mas a cisão por fim só ampliava o vazio, a ausência de sentido de suas existências.

Agora no Mundo das Plantas essas coisas tinham perdido o sentido, não mais havia essa divisão nem em relação ao próprio eu e nem em relação ao mundo que rodeava cada ser que o habitava.

Finalmente as pessoas estavam voltando a se sentir como partes desse Universo, infinito, vivo, pulsante.



Enquanto refletia não só a sua boca, mas também a garganta de Franz já começava a secar, porém o que de fato o levou a despertar foi a agitação que estava ocorrendo no vilarejo, agora mergulhado entre as plantas, em que só depois que elas se espalharam, conseguia desfrutar a vida.

Depois de apreciar uma grande porção de água, uma dádiva, fresca e gelada, sentiu grande prazer, e agora já conseguia reconhecer a voz de algumas pessoas acompanhadas de alguns ruídos ininteligíveis.

Curioso saiu de sua casa para ver o que estava acontecendo, algumas pessoas falavam alto e junto com suas vozes vinha expressões de espanto e felicidade.

Franz estava confuso, não compreendia o que estava acontecendo, mas sentia a felicidade das pessoas e também muita curiosidade, conhecia aqueles ruídos sabia que eram proferidos por algum animal, mas não conseguia identificar qual era.

Ao se aproximar de onde as pessoas estavam também começou ouvir os galhos das árvores se mexendo e passos pesados, sem dúvida daqueles que emitiam aquele curioso barulho.

Os cachorros que também viviam nas proximidades  estavam especialmente felizes, corriam e brincavam, pareciam estar festejando a chegada de visitantes muito importantes.

Ao se aproximar de uma pequena clareira Franz olhou incrédulo, uma família de elefantes desfilava pelas trilhas e encantavam a todos que viviam no vilarejo.

Os filhotes eram especialmente encantadores, brincavam descontraídos sob o olhar atento dos maiores, faziam festa, especialmente com os cachorros que corriam alucinados em volta deles, mas também se encantavam com as pessoas.

Franz se sentiu fascinado a visita deles parecia uma dádiva, tinham vindo partilhar a presença com todos no vilarejo.

No finalzinho da tarde, os cachorros já tinham se acalmado e agora descansavam junto com seus novos grandes amigos, as pessoas também já estavam menos espantadas, mas continuavam encantadas com esse novo presente que a vida estava lhes trazendo.

Franz também não deixou de se aproximar, eles eram muito dóceis, não demorou e já tinha feito amizade com vários deles.

Já estava anoitecendo quando os grandes paquidermes se juntaram em círculo com os pequenos no centro, estavam cansados, tinham caminhado muito e depois festejaram por um longo tempo no vilarejo, lentamente começaram a se deitar no chão, o maior deles que estava com Franz só se aproximou da manada quando todos já estavam deitados, foi o último a se deitar.

Logo as pessoas compreenderam, eles queriam descansar, alguns dos cachorros nesse dia iam dormir junto com seus novos amigos.

Franz se sentiu muito feliz com a cena, agora sentia um pouco de fome e decidiu voltar para casa, um pequeno cachorro se aproximou dele, quando começou a se distanciar, não tardou a reconhecê-lo, era o mesmo ser desconfiado que há alguns dias tinha surgido abaixo de sua janela e depois tinha desaparecido entre as plantas.

Quando se aproximou para acarinhá-lo o pequeno se deitou no chão com as pernas voltadas para cima, ao voltar a caminhar para sua casa ele saiu correndo atrás, abanando o rabo.

Depois de ter pego algumas frutas no caminho, já muito próximo de sua casa, o pequeno Desconfiado continuava a acompanhá-lo e uma vez mais a doce voz de Valkíria soou em seu ouvido.

Meu amor, as plantas e todos os seres encantados que habitam o Universo sempre conversam com a gente.



Franz caminhava lentamente de volta para a sua casa, a doce voz de sua amada Valkíria continuava a ressoar em sua mente: “Os seres que habitam esse Universo sempre conversam com a gente.”

Ficou pensativo o que será que a sua amada estava querendo lhe dizer.

Sem se dar conta parou no meio do caminho, o pequeno Desconfiado correu até ele e se deitou junto aos pés de Franz.

Quando despertou de seu transe, faltava pouco tempo para anoitecer, o cachorrinho que o acompanhava já estava impaciente, em pé abanava o rabo que resvalava nas pernas de Franz.

Percebendo a impaciência de seu novo amigo voltou a caminhar para a sua casa, agora acompanhado.

Nesses minutos que ficou parado o tempo tinha mudado, lembrava que quando viu os elefantes, cachorros e os habitantes do vilarejo que celebravam a vida, o dia era claro e dava para sentir o sol que atravessava a densa folhagem das árvores.

Agora quase anoitecendo, já não havia nenhum vestígio do sol e nuvens pesadas pairavam acima das grandes árvores.

Conseguia sentir a umidade do ar na pele.

Quando abriu a porta o pequeno Desconfiado entrou na frente dele, sem dúvida ele também sentiu a umidade e preferiu o conforto do chão seco do interior da casa.

O pequenino tinha um brilho nos olhos ao observar Franz enquanto abanava o rabo, parecia que ele também estava interessado nas frutas que ele trouxera.

Enquanto apreciava as frutas com a preciosa água, as quais dividia com o pequeno Desconfiado, Franz sentia a brisa úmida que entrava pela porta e janelas, achou que iria chover durante a noite, daquelas chuvas brandas, mansinhas.

Antes de ir se deitar se debruçou na janela de seu quarto, o pequeno cachorro o acompanhava para todos os lugares que ele ia, enquanto olhava através da vegetação, o pequeno uivou como gente grande.

Depois de olhar seu companheiro o oferecer uma carícia nas orelhas voltou a olhar pela janela, lá fora já estava totalmente escuro, enquanto refletia sentiu a mão de sua amada Valkíria o abraçar pela cintura, estava envolvido por aqueles braços invisíveis.

Quando se cansou e se voltou para ir deitar a voz de sua amada voltou a soar em seu ouvido: “Meu amor é melhor fechar a janela.”

Franz olhou para os lados procurando pela voz, mas tudo que viu foi o pequeno cachorro olhando dentro de seus olhos.

Quando já estava quase no Mundo dos Sonhos uma vez mais ouviu a doce voz de Valkíria: “Meu amor, agora falta pouco tempo, cuide do nosso pequeno anjo.”



Antes de adormecer Franz ouviu a chuva mansa que caia no telhado de sua casa, uma leve brisa também balançava os galhos das árvores.

O som da chuva soava como uma música branda e embalava o sono de Franz e do pequeno Desconfiado.

Logo os sonhos vieram povoar a mente de Franz, no princípio era um sono agitado, sentia calor, transpirava pelo corpo todo, chegou a despertar achando estar com febre.

Em seu sonho labaredas de fogo vindas do céu chegavam à copa das árvores quando se apagavam pela umidade presente nas folhas e troncos das árvores, e pela densa chuva que não cessava.

No meio da noite o Desconfiado acordou sentindo a agitação no sono de Franz e ficou sentado com os olhos arregalados olhando para ele, sentiu o desejo de confortá-lo, mas hesitou em pular em cima da cama e o despertar com o movimento.

Uma tênue luz azul atravessou pelas pequenas frestas da janela e iluminou brandamente a face de Franz, observando o pequeno cachorro uivou baixinho para não despertá-lo.

A luz azul desenhou a silhueta de Valkíria que em movimentos suaves passou a acariciar a face de Franz bem de leve para não acordá-lo, vez por outra o pequenino uivava baixinho, até que Valkíria com a mão que estava livre apontou para o cachorrinho e como ocorria com Franz, o envolveu com a luz azul.

Se sentindo confortado ele adormeceu.

Franz também já não transpirava, e agora dormia profundamente.

Valkíria falou baixinho próximo ao ouvido de Franz, mas atento o pequeno Desconfiado também empinou as orelhas para ouvir, só não conseguia manter as pontinhas empinadas, essas ficaram levemente dobradas.

Meu amor, durma em paz, descanse bastante, amanhã tudo começara a mudar, mas fique tranqüilo, tudo ficará bem, quando sair pela manhã traga muitas frutas e água em abundância, você deverá permanecer alguns dias dentro de casa, preste atenção nos pássaros, eles têm uma mensagem muito importante para todos, os elefantes também, eles vieram avisar vocês.

Cuide de nosso pequeno anjo, ele poderá ficar assustado.

Lentamente a luz azul foi se dissipando, agora Franz e o Desconfiado dormiam profundamente.



Quando Franz despertou a escuridão da madrugada estava cedendo lugar à luz do dia que em alguns momentos iria começar a raiar.

Sentado na cama ficou olhando o pequeno Desconfiado com as orelhas quase que totalmente empinadas, abanando o rabo para ele, ficou imaginando que tinha sido o cachorrinho que  acordara o sol para iluminar o dia.

A chuva da noite anterior ainda não tinha parado, uma densa garoa estava lavando todo o vilarejo.

Ficou por um longo tempo refletindo sobre o sonho que tivera, ainda sentia a sua amada Valkíria bem pertinho, resolveu ficar um pouco sentado no banco da varanda de sua casa, assim que se acomodou o Desconfiado também procurou por um espaço no banco.

A garoa não cedia, sem dúvida ela perduraria por todo o dia.

Os passarinhos chamaram a sua atenção, habitualmente nesses dias de chuva eles ficariam recolhidos em seus ninhos, mas nesse dia em particular eles pareciam estar de mudança, tinham descido das árvores e procuravam por lugares escondidos junto ao chão, próximos às pedras, enfim em qualquer lugar que eles pudessem se abrigar, muitos usavam os espaços embaixo dos automóveis que nunca tiveram qualquer finalidade além de enriquecer parasitas e estragar o mundo, mas agora finalmente estavam tendo alguma utilidade, camuflados pelas plantas que cresceram ao redor deles, deixavam um espaço junto ao chão onde era possível aos pássaros esconderem os seus ninhos.

Esse movimento dos pássaros chamou a atenção de Franz, sem dúvida eles estavam se protegendo de algo que estaria por ocorrer.

Como a chuva não cedia, Franz saiu mesmo se molhando para apanhar frutas e água, achou que o pequeno Desconfiado estivesse com fome e sede também.

Caminhou lentamente até o vilarejo, onde no dia anterior todos tinham sido presenteados pela companhia dos elefantes, mas ao se aproximar notou que eles estavam agitados, tinham procurado pelas maiores árvores e se abrigado embaixo delas, envoltos pelas folhagens dos galhos, os menores ficavam protegidos no centro da manada, diferente do dia anterior pareciam agressivos com as pessoas e não as deixavam se aproximar.

Só os inúmeros cachorros e outros anjos da redondeza dividiam o espaço no centro da manada com os filhotes de elefantes.

As pessoas também estavam apreensivas, nesse dia só saíram de casa para apanhar frutas e água, sentiam que algo estava por acontecer, ainda não conseguiam compreender o que os elefantes vieram avisar.

Depois de apanhar algumas frutas Franz também achou melhor voltar para casa, logo iria anoitecer, sempre ao seu lado o pequeno Desconfiado o acompanhava.

Quando estava próximo de casa a doce voz de Valkíria soou em seu ouvido, meu amor, leve mais algumas frutas e água, amanhã você e o nosso pequeno anjo não poderão sair de casa.

Franz olhou em volta procurando por sua amada, mas tudo que teve foi a sua voz, que tinha soado muito claro, ao subir em uma árvore para apanhar mais frutas, entre as folhagens conseguiu visualizar um pequeno trecho do horizonte, estava todo avermelhado, avermelhado demais para anunciar o por do sol.

Quando desceu com as frutas sentiu que o pequeno Desconfiado estava ansioso, ele olhava para a mesma direção em que vira o horizonte avermelhado e uivou bem alto, como gente grande.

O pequenino disparou na frente de Franz em direção à casa, mas a cada pouco parava e olhava para traz, para ver Franz, que não conseguia acompanhar os seus passos.



Enquanto partilhava as frutas e a preciosa água com o pequeno Desconfiado Franz teve a impressão de que a chuva estava mais forte, curioso foi olhar à janela, notou que não estava mais forte, mas a precipitação de água era maior, não era propriamente uma chuva, mas uma garoa, muito densa, sentia como se estivesse no meio de uma grande nuvem.

A garoa porém não estava deixando a noite mais fresca, estava muito quente, sentiu que seria difícil dormir com o calor e a umidade.

Não tardou em perceber que estava enganado, o Desconfiado tinha acabado de se deliciar com uma porção significativa de água e agora se escondia embaixo da mesa, estava bocejando e se espreguiçando, depois de alguns minutos se aninhou e começou a dormir profundamente.

Franz sentiu-se contagiado pelo sono de seu parceiro, saiu à porta e da varanda ficou apreciando a escuridão, estava pensativo, a mancha avermelhada que vira horizonte quando apanhou as frutas dominava seus pensamentos.

Ao voltar para se recolher viu que o pequenino estava com sono agitado, com siricutico, de leve acarinhou as orelhinhas dele, bem devagar para que não despertasse, em instantes ele passou a dormir tranquilamente.

Depois de se deitar não tardou e já não conseguia manter os olhos abertos, a tênue luz azul adentrou o quarto e o envolveu totalmente, bem devagarzinho flutuou, sem se dar conta estava poucos centímetros acima de sua cama, o Desconfiado acordou e uivou baixinho, não queria despertar Franz, mas quando ele começou a ser levado para o exterior da casa o pequenino saltou em cima dele, quando estava por tocar Franz a luz também o envolveu e o colocou aninhado nos braços de Franz.

Logo o pequenino voltou a adormecer.

Com o movimento Franz não chegou a acordar, mas também já não estava adormecido, sentiu estar sonhando acordado.

Já no lado exterior à casa estava flutuando acima das árvores, e agora confirmava a sua impressão o vilarejo todo e a floresta estavam envoltas por uma espessa nuvem.

Estava muito escuro e devido a nuvem não mais conseguia ver nem a floresta, o vilarejo ou as estrelas.

Lentamente continuou flutuando em direção ao espaço depois de alguns minutos estava acima da nuvem, percebeu que ela ia muito além do vilarejo, à medida que flutuava mais alto sentiu que ela estava envolvendo todo o planeta.

Agora muito alto conseguia ver claramente a mancha vermelha que tinha visto quando foi apanhar as frutas, teve a impressão de que o céu estava pegando fogo, do sol imensas labaredas eram lançadas ao espaço.

Estava começando a compreender o que as plantas, a nuvem, os pássaros, os elefantes, enfim a vida que fervilhava à sua volta tinham a dizer.

Acordou assustado, transpirava pelo corpo todo, a garoa não amenizava o calor, ficou pensativo, o sonho tinha sido nítido demais, estava em dúvida se tinha mesmo sido um sonho.

Sentiu um peso em sua barriga, o pequeno Desconfiado dormia agora tranquilamente em seu colo.

Quando quis voltar a dormir a doce voz de Valkíria soou em seu ouvido. “Meu amor, feche a porta, nosso pequeno anjo pode ficar assustado e é melhor que ele não saia de casa amanhã cedinho para acordar o sol.”



Faltando pouco mais de uma hora para amanhecer o Desconfiado se levantou e junto à porta começou a arranhá-la, queria sair, estava na hora de ir acordar o sol.

Ainda na cama Franz despertou, acordou com a doce voz de Valkíria em seu ouvido, pedindo para que cuidasse do pequeno anjo.

Ruídos começaram a vir do céu, Franz não conseguia identificar do que se tratava, não conhecia aqueles sons e em nada se pareciam com chuvas, parecia que os galhos das árvores estavam estalando, aquilo não fazia sentido a ele.

Assustado o pequeno Desconfiado correu para debaixo da mesa, desejava se esconder.

Franz saiu à varanda, mas teve o cuidado de fechar a porta, temia que o pequenino, assustado corresse em direção à floresta.

No céu pôde apreciar um espetáculo até então desconhecido, a nuvem estava ainda mais espessa, em poucos instantes ele já estava encharcado.

Acima das folhagens das árvores, as poucas brechas em que era possível ver o céu, ele estava totalmente avermelhado, sentiu que era a mesma mancha vermelha que vira no horizonte ao entardecer do dia anterior quando subiu em uma árvore para apanhar frutas.

Estava muito calor, não se recordava de uma manhã tão quente quanto aquela, logo a claridade começou a arder em seus olhos.

Não tinha o que fazer, além de voltar ao interior de sua casa e acolher o pequeno cachorrinho.

Logo a claridade que entrava pelas janelas também passaram a queimar os olhos, achou melhor ficar com o Desconfiado no quarto, onde podia fechar a janela e impedir que a luz incomodasse tanto.

Mesmo com tudo fechado por pequenas frestas a luz adentrava iluminando todo o quarto.

Amedrontado o pequeno Desconfiado se escondeu embaixo da cama.

O céu estava em chamas.

Assim transcorreu o dia, por volta do meio dia a tempestade solar tornou-se mais intensa, assim como a chuva, que nesse momento se transformara em uma tempestade, não havia ventos, mas a água caía em abundância do céu.

Pouco antes de o dia acabar os ruídos vindo do céu diminuíram sua intensidade.

Franz saiu à varanda e o Desconfiado disparou atrás dele, a chuva tinha cessado, o ar estava seco e quente.

Pela trilha caminhou até o vilarejo, pôde ver muitos passarinhos escondidos embaixo do que restara dos automóveis, agora envoltos por plantas.

Um dos córregos que havia no caminho que um pouco além do vilarejo formava uma cachoeira, agora mostrava apenas um pequeno filete de água.

Próximo ao vilarejo se deparou com os elefantes, estavam agressivos, inicialmente não permitiram que Franz se aproximasse, mas o Desconfiado disparou em direção a eles, no centro da manada, os filhotes, os cachorros e muitos outros anjos que habitavam a floresta se aninhavam assustados embaixo dos elefantes maiores.

Lentamente Franz se aproximou e tocou de leve um dos grandes, mais calmos caminharam até onde havia o córrego, estavam com sede e precisavam se alimentar.

No céu a nuvem já não era tão espessa, tinha a impressão de que ela já não tocava o horizonte onde agora como no dia anterior podia ver uma vez mais a mancha vermelha que vira no dia anterior.

Junto com o anoitecer a garoa voltou a precipitar, quando decidiu voltar o pequeno Desconfiado veio correndo em direção a ele, fazia questão de caminhar à frente em direção à casa, mas a cada pouco parava para se certificar que Franz o acompanhava.

Junto ao córrego encheu seus cantis com água e também apanhou mais frutas.

A garoa agora já era mais intensa, pensativo ao chegar à varanda sentiu que a tempestade solar ainda iria perdurar.



A garoa que caíra no início do anoitecer agora tinha se transformado em uma densa chuva.

Franz e o Desconfiado estavam exaustos e não demoraram para adormecer.

O sono deles era agitado.

Franz sonhava com um mundo seco, com muitas pedras brilhantes, estava em um tipo de caverna era escuro, mas suas paredes, teto e chão brilhavam muito.

Via pessoas com roupas e feições muito diferentes, não se lembrava de nenhuma delas, pareciam ser desconhecidos, enquanto caminhava pela caverna tinha a impressão de que não o viam.

No fim de um grande corredor havia uma iluminação maior e notou que ninguém se aproximava desse lugar, ainda que distante quis se aproximar, o brilho chamava a sua atenção.

Depois de caminhar por alguns instantes entendeu por que ninguém se aproximava do lugar que achava ser a entrada da caverna, a iluminação era tão intensa que começava a queimar seus olhos.

Assustado sentou-se na cama, se deparou com o pequeno Desconfiado olhando dentro de seus olhos, tinham passado apenas alguns minutos do momento em que tinham ido dormir, não demorou para compreender o sonho.

Quando tinha retornado ao interior da caverna ainda com seus olhos queimando lembrou-se de ter estado com um cachorro muito dócil que parecia conhecê-lo, não era o Desconfiado era maior e mais magro.

Curiosamente acordou com um sentimento de saudades, não se lembrava de ter estado com aquele ser dócil, mas sentia um aperto no peito, um intenso sentimento de saudades.

Enquanto refletia lembrou-se dos elefantes e dos cachorros e da agressividade deles quando chegou ao vilarejo, logo percebeu que não era agressividade, a intensa luminosidade provocada pela tempestade solar os deixara temporariamente cegos e seus olhos ardiam.

Apressado se levantou e procurou por todos os panos que tinha em casa, precisava fazer algum tipo de máscara para proteger os olhos dos elefantes e dos demais anjos que tinham procurado por proteção junto a eles.

Quando saiu de casa o Desconfiado disparou à frente dele, ele já tinha entendido o que Franz pretendia, próximo ao vilarejo se encontrou com outras pessoas que tiveram a mesma idéia, passado pouco mais de uma hora todos já estavam com os olhos protegidos, agora podiam descansar em paz, a chuva já não era tão intensa e a temperatura estava mais amena.

Franz e o Desconfiado voltaram com passos lentos para casa, sabiam que teriam o dia todo para descansarem, a tempestade solar não permitiria que saíssem de casa durante o dia, sentiu que os elefantes e os outros anjos ficariam bem, as árvores, a nuvem os protegeriam e agora seus olhos também estavam protegidos.

Porém o sentimento de saudades continuava apertando seu coração.

Quando estava quase adormecendo sentiu a doce voz de Valkíria soar em seus ouvidos: “Meu amor nosso anjo está bem, ele também sente saudades e está esperando por você.”



Depois de algumas horas Franz e o Desconfiado acordaram com os ruídos vindos do céu, o dia já tinha amanhecido, a luz que passava por pequenas frestas da casa era o suficiente para que ficasse mais claro que os dias ensolarados, mesmo com as portas, janelas e todas as cortinas fechadas.

Assustado o pequeno Desconfiado se escondeu embaixo da cama.

Franz teve a impressão de que a tempestade solar era ainda mais intensa.

Junto com a tempestade solar uma chuva intensa caia do céu ao mesmo tempo que as águas presentes nos rios e oceanos evaporavam, formando uma imensa nuvem em volta de todo o planeta.

Franz teve a impressão de que a rede de córregos que serpenteava o vilarejo e a superfície do solo até o final do dia estariam secos.

Sentia-se impotente, nada podia fazer, em seu quarto, sentado à cama ficou olhando para o vazio.

Entre os ruídos uma vez mais ouviu a doce voz de sua amada.

“Meu amor, não se preocupe, tudo vai dar certo. Cuide de nosso pequeno anjo, ele está muito assustado.”

Ao olhar para baixo da cama se defrontou com os olhos arregalados do pequeno Desconfiado, com cuidado o puxou e o pegou no colo, dessa vez ele não resistiu e se aninhou junto a Franz.

Acarinhando as orelhas dele foi à cozinha, estava com sede e imaginou que o cachorrinho também estivesse, depois de servir uma dose generosa ao Desconfiado também quis se saciar e aproveitou para dividir algumas frutas com o pequeno.

Já estava entardecendo, a tempestade solar diminuía sua intensidade.

Próximo ao anoitecer já era possível sair à varanda, já não havia ruídos vindo do céu e, como imaginara a chuva tinha cessado e o chão estava todo seco.

Ao caminhar até o vilarejo notou que toda a rede de pequenos córregos estava seca, desceu até um deles e pegou um punhado de areia branca que em instantes escorreu por entre os seus dedos.

No vilarejo as pessoas estavam juntando água dos poços em vasilhas para guardarem para o próximo dia e para os elefantes e demais anjos que já não tinham mais os córregos para desfrutar a preciosa água.

Franz caminhou até o limite do vilarejo onde havia um rio mais caudaloso, nesse agora corria apenas um pequeno filete de água límpida, cristalina, no meio da areia branca.

O Desconfiado que o acompanhava parou para beber, mas o filete era tão tênue que ficava difícil conseguir a preciosa água, assim cavou um pequeno buraco, e quando esse se encheu bebeu em abundância.

Franz resolveu voltar para casa, não havia mais o que fazer, no caminho parou junto aos elefantes, achou que talvez precisasse ajustar as máscaras que todos fizeram para que eles não queimassem os olhos com a claridade do próximo dia.

Não demorou para que o Desconfiado encontrasse um anjo para brincar, ao vê-los descontraídos sentiu que não havia com o que se preocupar.

Já tinha anoitecido quando resolveu voltar para casa, assim que começou a caminhar o cachorrinho disparou em sua direção e o anjo que até então brincara com ele voltou ao centro da manada dos elefantes, todos já estavam se preparando para dormir, sentiam que os sonhos os protegeriam do que ainda estava por vir.

No caminho uma tênue luz azul da Grande Estrela atravessava a folhagem das árvores e envolveu Franz e seu pequeno anjo.

Parou para pegar mais frutas antes de entrar em casa, e agora de um poço puxou um pouco de água para encher o seu cantil.

Tentava não pensar, mas temia pelo que viria ao amanhecer, a preciosa água que vertia do chão tinha secado.



Faltando pouco mais de uma hora para o dia amanhecer, e com ele trazer uma vez mais a tempestade solar, uma tênue garoa começou a precipitar, uma pequena camada de nuvens, muito altas, agora cobria o céu.

Muito distante do vilarejo, nos extremos do planeta, onde os dias e noites duravam seis meses, as baleias e outros grandes mamíferos e peixes começavam a abandonar as cavernas de gelo, agora derretidas.

Lá era o momento da mudança do dia para a noite em um dos extremos e da noite para o dia no outro, mas nesse e por mais muitos anos não se poderia apreciar a aurora boreal, todo o gelo da superfície e abaixo dela tinham derretido.

Uma imensa onda de água gelada se espalhava pela superfície em direção às águas mais quentes.

As baleias nadavam junto com essa onda de água fria à procura das águas quentes.

Toda a superfície antes coberta por algas tinham se queimado com as águas que ferveram devido a tempestade solar, toda a superfície marítima estava coberta por águas límpidas, cristalinas, mesmo em regiões muito profundas era possível ver as areias brancas no fundo.

À medida que a onda de água gelada se encontrava com as águas quentes, iam se formando imensas nuvens provenientes do encontro das águas frias com as quentes.

No céu, o encontro do ar quente com as nuvens frias que subiam cada vez mais alto provocavam pesadas chuvas acompanhadas de ventos em direção às montanhas, onde se encontravam os vilarejos habitados pelas pessoas, anjos e seres mágicos das florestas.

No oceano a tempestade apagava os últimos vestígios deixados pelas parasitas em seu trajeto desprovido de sentido e destrutivo, enquanto elas se sentiam detentoras de um falso poder e controle sobre o mundo que habitava fora delas.

O mundo interior dessas era tão pernicioso que elas despendiam toda a energia que tinham no sentido de controlar e dominar o mundo exterior.

No vilarejo o dia estava amanhecendo com uma tênue garoa, e com esse amanhecer uma vez mais a tempestade solar começava a assolar os vilarejos e todos os seres mágicos que habitavam as montanhas.

Franz estava apreciando seu café matinal, o intenso calor e agora com o ar mais seco deixava as frutas e a preciosa água quentes, o que fazia com que perdessem parte de seu gosto.

Os barulhos vindo do céu assustaram o pequeno Desconfiado que correu para debaixo da mesa, Franz partilhou com o seu anjo a água e as frutas, depois guardou o que restou em um canto no chão no centro da casa, o mais longe possível das luzes que entravam pelas frestas, era o espaço mais fresco da casa.

O pequeno Desconfiado com uma de suas mãos tocava as pernas de Franz pedindo colo, estava muito assustado com os barulhos.

Infelizmente a imensa nuvem formada o oceano pelo encontro da onda gelada com as águas mais quentes não chegaria às montanhas antes que a tempestade solar se tornasse mais intensa.



Antes de Franz terminar o seu café matinal os ruídos provenientes do céu se tornaram ainda mais intensos.

O pequeno Desconfiado estava muito assustado, se encolhia junto aos pés de Franz, embaixo da mesa.

De leve Franz acarinhou as suas orelhas e segurou um pouco a cabeça do pequeno em suas mãos.

Depois de pouco mais de uma hora a garoa tinha parado e o ar estava quase que totalmente seco, a respiração se tornara muito difícil, todos tinham a sensação de estarem se sufocando.

No vilarejo os elefantes e os anjos no centro da manada estavam muito assustados, sem saberem o que fazer, não havia para onde fugirem.

As pessoas começaram a abrir as portas de suas casas, não demorou e os anjos menores entenderam a intenção e correram para se abrigar, alguns dos filhotes dos elefantes também conseguiram entrar nas casas, mas os adultos eram grandes demais, não conseguiam passar pelas portas.

As grandes árvores continuavam sugando as águas das entranhas da terra e por suas folhas despejavam uma tênue nuvem úmida na atmosfera, mas assim que essa nuvem entrava em contato com o ar seco e quente, evaporava rapidamente.

A copa das árvores ficaram em chamas junto com o entardecer.

Os elefantes estavam muito assustados parecia que tudo acima deles estava em chamas, mas não tinham para onde fugir.

Aos poucos a tempestade solar foi diminuindo a sua intensidade, mas as árvores continuavam queimando, abaixo delas os arbustos e árvores menores continuavam sugando as águas do solo e dispersando uma nuvem úmida.

Lentamente os ruídos vindos do céu foram ficando mais e mais distantes, a tempestade solar, pelo menos naquele dia tinha cessado.

Desde que esse episódio começara era a primeira vez que as pessoas podiam sair de suas casas antes de anoitecer.

Franz chegou ao vilarejo junto com o Desconfiado e um pequeno elefante que conseguira chegar à casa dele buscando abrigo.

O chão no caminho estava coberto por cinzas das folhas e galhos das árvores que se queimaram.

Logo os filhotes de elefantes procuraram por seus lugares no centro da manada, estavam todos muito assustados.

O ar estava totalmente seco e muito quente.

Nesse dia nada mais podiam fazer, a noite chegara e o céu estava coberto por uma espessa nuvem escura proveniente das copas das árvores que se queimaram.

Tudo o que restava era procurar por frutas que não tivessem se queimado, mas ao procurarem por água, a decepção foi maior, as fontes já tinham secado no primeiro dia da tempestade, e agora todos os poços também estavam secos.

A única fonte de água que restara estava nas folhas dos arbustos e nas poucas frutas que conseguiam encontrar.



A noite não tardou a chegar, a copa de algumas árvores ainda estavam queimando.

Felizmente os elefantes estavam mais calmos, mas não tinham mais água e a pouca vegetação que conseguiam estavam muito secas.

Todos tinham muitas dificuldades, a quase totalidade das frutas tinham se estragado com o calor intenso, o chão estava coberto de cinzas das folhas das árvores que se queimaram e, ainda, todos os poços estavam completamente secos.

Já estava escuro, e o céu coberto por uma espessa nuvem de fumaça não permitia que a luz das estrelas chegassem ao vilarejo.

Sem o que fazer naquele momento as pessoas começaram a voltar para as suas casas, os seres encantados que habitavam as florestas nesse dia acompanhavam as pessoas às suas casas, era tudo muito triste, sentiam dificuldades em ficar junto à floresta agora queimada e com cinzas ainda caindo do alto das árvores.

Franz e o Desconfiado também começaram a caminhar em direção à casa deles, enquanto estavam se afastando o pequeno elefante que os presenteara com sua companhia quando as árvores começaram a queimar os acompanhou.

No meio do caminho a luz da Estrela Azul conseguiu atravessar a densa fumaça no céu e iluminou brandamente o caminho para eles.

Franz estava pensativo, não tinham mais água e a floresta estava muito queimada, imaginou que se a tempestade solar continuasse tudo iria se queimar, inclusive as casas, e não tinham para onde ir.

Ainda que muito cansado sabia que não conseguiria dormir, já em casa partilhou a pouca água que ainda tinha e as frutas agora quentes, com o Desconfiado e o pequeno elefante.

Ao se deparar com o olhar triste do elefantinho deu a maior parte da água e das frutas para ele, mas sabia que ainda assim era muito pouco.

O pequeno o abraçou ternamente com a sua trompa, docilmente a enrolava em torno do pescoço de Franz.

Como não estava conseguindo se alimentar deu o que restava das frutas e de sua água e ao pequeno elefante, o Desconfiado ainda estava bebendo a dele, que estava um pouco quente.

Cansado, mas sem conseguir dormir preferiu ficar na varanda, não demorou o Desconfiado correu atrás dele e o pequeno elefante também veio na seqüência.

O cheiro das árvores queimadas ainda era muito forte.

Exausto entrou em transe, naquele mundo intermediário entre o estar acordado e dormindo.

Claramente a doce voz de Valkíria soou em seu ouvido: “Não se preocupe meu amor, hoje os anjos vão cuidar de você.”



Muito distante do vilarejo, próximo ao oceano as encostas estavam mudando de formato.

Todo o gelo existente nos extremos do planeta e no alto das grandes montanhas tinham derretido, os oceanos aumentariam a sua extensão, enquanto as regiões costeiras seriam inundadas.

As montanhas protegeriam os lugares habitados semelhantes ao vilarejo.

Nas extremidades do planeta as baleias e grandes mamíferos aquáticos já não tinham onde se esconder e nadavam junto com a corrente de águas geladas que se dirigiam em direção às quentes próximas ao continente.

Felizmente grandes ursos brancos que não podiam nadar até lugares muito distantes conseguiram se agrupar junto a imensas pedras agora não mais cobertas pela neve, mas ainda assim era um lugar frio o bastante para eles e outros que não podiam nadar para lugares distantes sobreviverem, até que o planeta encontrasse um outro ponto de equilíbrio.

À medida que a água fria se encontrava com as quentes grandes tempestades se formavam e varriam de seu caminho todos os vestígios deixados pelas parasitas nos oceanos.

No vilarejo, já passado do meio da noite, Franz, o Desconfiado e o elefantinho agora dormiam profundamente.

A densa nuvem de fumaça proveniente das copas das árvores que tinham se queimado havia se dissipado levemente, e revelavam um céu estrelado, como há muito não era possível ver, desde que as grandes árvores tinham fechado quase que totalmente a visão do céu, mas todos estavam muito cansados e dormiam profundamente, enquanto esse céu estrelado brilhava intensamente nos sonhos.

Pouco antes de o dia amanhecer uma brisa, um vento leve começou a soprar vindo do mar, com ele a temperatura abrandava um pouco, permitindo a todos um sono mais confortável nesse finzinho de noite.

Pouco antes de o dia amanhecer Franz despertou, parte do céu ainda estava totalmente escuro e, no horizonte uma tênue luminosidade branca começava a surgir.

Era a primeira vez nos últimos três dias que Franz não despertava com os barulhos vindos do céu, além da leve brisa, tudo estava em silêncio.

Ao perceber que o sono não retornaria Franz se levantou, devagarzinho, para não despertar os anjos, mas foi frustrado, antes mesmo de estar de pé, o pequeno Desconfiado empinou o quanto pôde as suas orelhas, mas as pontinhas não se levantavam, como sempre ficaram levemente dobradas.

O brisa aos poucos foi se tornando mais intensa e com ela o elefantinho também despertou.

Lentamente o vento conseguia limpar os arbustos e as árvores menores das cinzas que tinham caído das copas das grandes árvores.

Não demorou e muitas folhas verdes e frutas dos arbustos e das árvores menores começaram a se revelar à medida que as cinzas eram sopradas, eram poucas, todos teriam que economizar, mas não faltariam folhas nem frutas a todos que habitavam a floresta.

Franz nunca tinha visto um céu como nesse dia, no lado oposto ao qual o sol nascia, agora trazendo uma luz amarelada, uma imensa nuvem amarela e avermelhada se afastava no espaço vazio, frio, infinito, pulsante.

A tempestade solar tinha acabado.



Era a primeira vez desde que as árvores começaram a crescer que Franz não tinha nenhuma fruta em casa, depois que ele entrara o Desconfiado e o elefantinho o seguiram, em especial o pequeno cachorrinho ficou desapontado, desejava um agrado e Franz nada tinha a oferecer.

A água também estava no final, havia muito pouco no fundo de um cantil guardado no canto mais fresco da casa.

Ainda que estivesse com sede Franz se contentou com um pequeno gole, também deu um pouquinho ao Desconfiado e a maior parte ao elefantinho, mas era muito pouco para ele.

Sem o que fazer em casa resolveu ir ao vilarejo com a intenção de ajudar em alguma coisa.

No caminho os arbustos revelavam suas folhas verdes e algumas pequenas frutas, ainda tinham o gosto das cinzas que caíram da copa das árvores que se queimaram, mas ajudavam a amenizar a sede.

Ao chegar ao vilarejo os elefantes estavam agitados, deviam estar com sede e fome, quando Franz estava chegando os maiores vieram em direção a ele, sem qualquer dúvida estavam esperando pelo pequenino que tinha passado a noite em sua casa.

Não demorou e eles se reuniram no centro do vilarejo, estavam se despedindo de todos que tão bem os receberam.

Os grandes paquidermes sentiam que no vilarejo não haveria água e alimentação o suficiente para eles, as pessoas e os seres encantados que viviam próximos ao vilarejo.

Quando começaram a se afastar o elefantinho voltou correndo e com sua trompa envolveu Franz e o pequeno Desconfiado, ele estava se despedindo.

Na floresta agora parcialmente queimada teriam dificuldades, mas não demorariam em encontrar água e alimentação o suficiente, ainda que tivessem de partilhar sua companhia com as pessoas e os anjos do vilarejo sentiam que o lugar deles não era ali, mas talvez eventualmente eles voltassem para presentear a todos.

Depois que os elefantes partiram o vilarejo ficou em silêncio, estava tudo parado, parecia não haver o que fazer além de esperar.

Depois de algum tempo o silêncio foi interrompido por uma leve brisa úmida.

Franz se levantou quis caminhar até onde havia o maior córrego, nas proximidades do vilarejo, mas tudo que encontrou foi a areia branca onde antes corria água em abundância, junto a ele o Desconfiado se divertia com a areia fina.

Em passos lentos voltou a caminhar em direção ao vilarejo e à sua casa, no caminho encontrou passarinhos, eles estavam mudando os seus ninhos que antes da tempestade solar tinham arranjado junto a pequenos cantos e embaixo de máquinas inúteis criadas pelas parasitas com a única finalidade de explorar as pessoas que trabalhavam, para as pequenas árvores que não tinham se queimado com a tempestade.

Antes de chegar ao vilarejo, o céu que ao amanhecer estava limpo, agora estava coberto de nuvens, uma tênue garoa estava se formando.

A tempestade que se formara no oceano logo iria precipitar em forma de chuva nas montanhas.



À medida que os elefantes desciam a montanha o ar se tornava mais úmido, não tardou e uma garoa fina já tinha se formado, descendo um pouco mais a garoa começou a se transformar em uma densa chuva.

Olhando para cima os grandes paquidermes se sentiam agradecidos e começaram a deitar e rolar nas poças de água que se formavam, lentamente as águas da chuva acharam os caminhos dos córregos e rios que estavam com seus fundos secos.

A chuva lavava os arbustos e as pequenas árvores que não tinham se queimado retirando delas o gosto deixado pelas cinzas.

Em muito pouco tempo a chuva vinda dos oceanos também chegou às montanhas e aos vilarejos e perdurou por muitos dias.

Primeiro os poços, seguidos dos córregos e depois rios voltariam a ter a preciosa água em abundância.

As fontes de onde antes jorrava as águas mais puras vindas de áreas profundas do solo e purificadas pelas pedras demorariam um pouco mais para presentear a todos.

O pequeno Desconfiado e muitos outros anjos estavam adorando brincar e celebrar a vida rolando nas poças de água que se formavam.

Todos estavam agradecidos à vida pela preciosa água que se precipitava em abundância, como nas regiões mais abaixo nas montanhas, as folhas e frutas existentes nos arbustos e nas pequenas árvores, já não tinham mais o gosto de cinzas deixados pelas grandes árvores que tiveram as suas copas queimadas.

Quando a chuva cessou depois de vários dias Franz, o pequeno Desconfiado, as demais pessoas e os anjos voltaram a caminhar pelas trilhas, já se sentiam cansados de ficarem fechados em suas casas.

Os poços que tinham secado uma vez mais tinham água, os inúmeros pequenos córregos da região também já tinham um filete de água correndo em seu centro.

O rio maior nos limites do vilarejo ainda não tinha a preciosa água com a mesma abundância de antes da tempestade solar, mas parte significativa das areias existentes em seu fundo já estavam cobertas pelas águas.

Na copa das grandes árvores queimadas folhas e flores miúdas voltavam a brotar.

Todos estavam festejando a vida.

Ao anoitecer Franz se sentia cansado e quando voltava caminhando lentamente para a sua casa na companhia do Desconfiado ao colher algumas frutas e folhas dos arbustos percebeu que as árvores estavam voltando a presentear a todos, algumas flores que começavam a cair, deixavam atrás de si uma pequena fruta que muito em breve poderia ser colhida.

Ao chegar em casa sentou-se junto à varanda com o Desconfiado que estava muito interessado nas frutas que ele trouxera.

No céu, agora limpo a luz da Estrela Azul iluminou toda a varanda.

Franz entrou em transe, o pequeno Desconfiado tocava as pernas dele com sua pequena mão e emitia um pequeno uivo, mas não era o bastante para que ele despertasse.

A doce voz de Valkíria soou levemente em seu ouvido e, dessa vez o Desconfiado também pôde ouvi-la: “Meu amor, está chegando a hora, para você também meu pequeno anjo, se desejar vir com a gente.”



Franz permaneceu em transe na varanda de sua casa, quando o pequeno Desconfiado sentiu o sono chegando deitou a sua cabeça no colo de Franz, que permanecia imóvel, olhando o vazio.

Nessa noite o cachorrinho de Franz poderia dormir sem se preocupar com a hora de acordar, no dia que se seguiria ele não ia precisar acordar o sol, logo estaria flutuando em direção a outros mundos de magia.

Na direção que Franz olhava, aparentemente para o vazio, os espaços começavam a ser ocupados, as copas das grandes árvores estavam voltando a brotar.

Muito em breve aqueles que habitavam o Mundo das Plantas teriam dificuldades em observar as estrelas, mas a luz delas e da Lua, mesmo nas noites mais escuras sempre achariam alguma brecha para iluminar a vida dos seres mágicos que habitavam esse mundo.

Na varanda a face de Franz estava totalmente iluminada por uma tênue luz azul.

Lentamente começou a flutuar em direção ao portal que se formara há alguns metros da entrada de sua casa.

Nesse momento o Desconfiado despertou levemente e uivou brandamente, mas não foi o bastante para despertar Franz.

Antes que Franz começasse a se afastar o cachorrinho pulou em seu colo e se aninhou, com os olhos arregalados e as orelhas empinadas ficou olhando a entrada do portal.

Franz também olhava na mesma direção, mas mantinha seu olhar em direção ao vazio, com a face iluminada pela luz azul.

Ao chegar muito próximo ao portal o Desconfiado arregalou ainda mais os olhos, ele estava repleto de estrelas.

Seus corpos ficaram iluminados por diferentes cores que refletiam delas.

O cachorrinho uivou uma vez mais, mas o sono deixava seus olhos pesados e estava frio, assim se aninhou ainda mais junto a Franz.

Olhando a entrada do portal repleto estrelas, a voz de Valkiria se desenhou no sonho de Franz: “Meu amor, eu te encontrei. É para a gente celebrar a vida juntos.”

“O seu anjo está aqui comigo, ele me disse que sente muitas saudades e que deseja uma planta bem bonita com flores amarelas ai do Mundo das Plantas, sei que ele irá adorar brincar com o Desconfiado em nossa casa.”