domingo, 14 de maio de 2017

Vento.




Quando a escuridão começou a dar os primeiros indícios de ceder à luz que em alguns instantes começaria a surgir no horizonte o silêncio tomou conta de até onde a percepção de Franz podia alcançar.

O sono lhe tinha sido roubado, dá janela de seu quarto a escuridão sequer permitia que enxergasse o outro lado da rua, tudo imerso em total silêncio.

O ar gelado sutilmente começou a adentrar pela janela, pedindo a Franz que se envolvesse com o cobertor jogado na cama, tudo no mais profundo silêncio.

Uma leve brisa fez com que uma folha seca caída ao acaso na calçada rolasse devagarzinho até desaparecer da visão de Franz, sem que em nenhum instante quebrasse o silêncio.

A folha que rolou e desapareceu trouxe para Franz que estava debruçado na janela a imagem de Valkíria que traria junto com si os primeiros raios de luz do dia que logo viria quebrar o silêncio.

Já com uma sutil claridade de vinha de algum ponto no horizonte o silêncio já não resistia a brisa que se transformara em vento e levava para distante as folhas secas caídas, trazendo outras umidecidas por uma leve garoa que lavava a rua.

O vento vinha levar as lembranças de Franz para junto de sua doce Valkíria que junto às Montanhas Azuis ainda dormia profundamente.

sábado, 13 de maio de 2017

Sonho.



Enquanto caminhava com passos lentos para a casa que habitava um sentimento de saudades tomou conta do coração de Franz.

Era um dos poucos lugares do Mundo dos Preocupados que ainda desfrutava de alguma tranqüilidade, nas ruas descuidadas entre as rachaduras das calçadas umas poucas plantas insistiam em brotar, mesmo diante do descaso dos que passavam que insistiam em pisar nelas.

Umas poucas árvores resistiam à falta de cuidados, abrindo rachaduras nas calçadas que as pessoas insistiam em preenche-las com concreto, faziam de conta que não entendiam que as rachaduras eram o resultado do ínfimo espaço que deixavam para que elas pudessem continuar a viver.

A poucos passos restara uma vala, deixada ao abandono de uma grande árvore que tinha sido arrancada da pouca terra que podia dispor, parece que as pessoas estavam cansadas por ela insistir em provocar rachaduras nas calçada, mas curiosamente a vala onde ela habitava fora deixada, aparentemente não tinham interesse sequer em tapar o buraco, do qual pequenos ramos do que restara das raízes da antiga árvore insistiam em brotar.

Desse lugar Franz já conseguia ver a calçada nua, também repleta de rachaduras da casa onde morava.

Ao olhar um pouco mais atentamente Franz teve dificuldades em acreditar em seus olhos, o Bill cão estava lá, esperando por ele.

Ao vê-lo o dócil cão com seu jeito estabanado disparou em direção a Franz, que desejou abraçá-lo e uma vez mais brincar com ele, mas enquanto corria apressado escorregou vindo a cair em um bueiro, muito próximo à vala onde antes havia uma grande árvore, que ele gostava muito.

O coração de Franz disparou e ele correu em direção ao bueiro.

De cima ouvia o choro angustiado de seu dócil companheiro, tinha que descer onde ele estava para ajudá-lo.

Teve que se deitar para passar pelo buraco estreito, o bueiro era maior que imaginava e estava escuro, levaria uns instantes para se acostumar com a pouca luz, mas agora o choro de seu dócil amigo era muito nítido.

Pelo sons de seu choro conseguiu se aproximar, quando tocou em sua cabeça seus olhos já tinham se acostumado com a pouca claridade, o pobre cão estava muito assustado.

Diferente do que imaginara, uma água límpida e cristalina corria pelo chão que estava coberto por uma areia branca muito fina.

Com calma abraçou o cachorro que estava todo molhado e com muita areia no pelo, ao sentir o contato se aninhou nos braços de Franz e parou de chorar.

Franz olhou em volta e percebeu que teria dificuldades em sair do bueiro, olhou pela fresta por onde entrara, mas percebeu que a entrada estava muito alta, se pulasse conseguiria segurar na beirada e subir, mas não sabia ainda como tirar o dócil Bill de lá de dentro.

- Meu amor, chegue mais perto, deixe que eu te ajudo.

Franz ficou incrédulo, mas não tinha dúvidas era a voz de sua doce Valkíria.

Junto à entrada do bueiro primeiro passou o dócil Bill para que ela o pegasse, que feliz começou a correr e pular em volta dela, pedindo carícias.

Valkíria se abaixou e esticou a mão para que Franz se apoiasse, com a ajuda não teve dificuldades em subir.

Ainda escalando se viu em um mundo todo diferente, estava em uma gruta construída com grandes pedras que estavam cobertas por musgo, no chão um gramado de verde intenso.

Já do lado de fora notou que o dia estava se findando, no horizonte um fundo alaranjado escuro mostrava onde o sol havia se posto.

- Meu amor quero um abraço bem gostoso, apertado.

Sussurrou Valkíria em seu ouvido.

- Meu amor, quantas saudades, nosso anjo veio me buscar para ficarmos juntos.

O dócil Bill já tinha se acalmado e agora andava ao lado de Franz que estava de mãos dadas com Valkíria caminhando direção à varanda da Casa do Gramado.

sábado, 15 de abril de 2017

Mundo das Histórias.



É plural mesmo, a história é tão sem sentido, como é totalmente desprovido de sentido, uma reforma que mais se assemelha a uma demolição, que em algum lugar da Idade Média pretendiam fazer ao retirar essa e algumas outras disciplinas do currículo escolar.

Evidentemente essa demolição só iria ocorrer naquelas poucas escolas existentes que eram voltadas à camada mais rica da população pobre, aqueles que precisavam aprender um pouquinho mais, mas só o suficiente para suprir as necessidades daqueles que se julgavam estar em um lugar que representava o poder.

Já aquelas escolas destinadas àqueles que achavam ter algum tipo de poder, não só história como muito outras disciplinas que eram excluídas dos currículos das escolas dos pobres, eram expostas e cobradas à exaustão das crianças que as freqüentavam, que chegavam a permanecer a quase totalidade de seu tempo estudando-as, e por mais que se esforçassem nunca era o bastante.

Mas isso tudo não vem ao caso.

Naquele suposto lugar na Idade Média, Franz no alto de uma construção de pedras estava em sua mesa, olhando pela janela e refletindo.

Observava o mundo à sua volta enquanto pensava na História.

Enquanto a idéia de que ela era desprovida de sentido aflorava em sua mente, mas ao mesmo tempo se via como um reflexo dela, sentia que o seu ser não deixava de ser também a sua História.

E se ele e evidentemente todos os seres, sejam os providos de vida ou os inanimados, são a sua História, então como ela poderia ser desprovida de sentido.

Inda que olhando o mundo que o rodeava muito era desprovido de sentido, mas uma infinidade de outras coisas pareciam obedecer uma lógica, sem dúvida refletiam um sentido de ser.

O que parecia sem nenhum sentido era efetivamente aquilo que algumas criaturas faziam, em especial aquelas que se esforçavam por perpetuar o seu lugar em um suposto poder.

Sentiu que talvez a resposta não estivesse ali em sua mesa, ou no contra-senso das imagens que via Além da Janela, pelo menos ali, naquela cidade mal cheirosa na Idade Média.

Distraidamente começou a folhear um dos livros que estavam em sua mesa, sentiu que naquele momento seria difícil escrever sobre a História.



Enquanto folheava o livro sem ler e alternadamente olhava pela janela compreendeu o motivo de a História ser desprovida de sentido.

Olhando o livro e descrevendo o que via Além da Janela, seria muito diferente do que alguém que vagueava por aquelas ruas mal cheirosas descreveriam.

Assim o que havia não era História, e sim Histórias.

E era justamente essa disciplina que naquele longínquo lugar na Idade Média aqueles que ocupavam o lugar de um suposto poder queriam suprimir dos currículos das poucas escolas voltadas às classes mais pobres.

Nitidamente achavam um grande problema essa população mais pobre ter algum conhecimento de suas Histórias, se isso ocorresse possivelmente aquelas pessoas acabariam por encontrar caminhos para deixarem de ser pobres.

Lembrou-se de um comentário do um historiador de respeito, aliás o único que tinha conhecimento, manuscrito em um periódico anual, daqueles que nunca chegam a essas populações mais pobres.

Aquele historiador dizia que quando os romanos começaram a dominar o mundo então conhecido, há cerca de 1.000 anos, esse episódio tinha sido chamado de expansão do Império Romano, e agora na Idade Média, em pleno feudalismo, quando os povos estavam retomando as terras tomadas pelos romanos, agora nos livros de História isso estava sendo chamado de Invasão dos Povos Bárbaros. (Leando Karnal).

Muito curiosa a semântica, essa diferença na nomenclatura das palavras, mas como afirma um grande inquisidor, isso também não vem ao caso.



Distraidamente Franz continuou folheando o livro que tinha pego em sua mesa.

Não conseguia compreender porque aqueles que julgavam ocupar um lugar de suposto poder tinham tanto medo daqueles livros.

O curioso é mesmo eles não tinham inteligência o suficiente para entendê-los, mas os consideravam perigosos e por isso não queriam que os mais pobres tivessem acesso a eles, por isso os escondiam nessas construções de pedras, fechadas com portas pesadas de madeira.

Só Franz e uns poucos tinham acesso a esses livros, aqueles que se consideravam poderosos queriam que esses os traduzissem, para assim descobrirem segredos de um povo antigo, que tinham se espalhado por todo o mundo conhecido levando o seu conhecimento.

Do pouco que conseguiram entender aqueles livros falavam algo sobre as pessoas, ou algumas pessoas terem direitos iguais, e que eram responsáveis por si próprios.

E no mundo em que viviam isso era inconcebível.

Por outro lado, mesmo sendo poderosos, mas com uma capacidade intelectual bastante limitada, associada a um comodismo que se aproximada da preguiça, não daquele bichinho simpático, mas beirando o lado mais pejorativo possível da preguiça.

Por isso precisavam de Franz e de outros para traduzirem aqueles livros para eles, não com a finalidade de tornarem o mundo melhor, seja para eles próprios ou para os mais pobres que os sustentavam, mas simplesmente para poderem ter mais poder.

A inveja que sentiam daquele povo antigo que havia se espalhado, ampliando os limites do mundo, tinha atingido um nível sem precedentes naqueles que agora queriam se perpetuar no poder.

A idéia de igualdade entre as pessoas era algo que os incomodavam profundamente.

Como eram livros antigos, associaram isso a História, assim a primeira coisa que fizeram foi eliminar essa disciplina e outras que envolviam um pensar, das escolas das populações mais pobres.

Para esses eles impunham um conhecimento limitado a afazeres para confeccionar as coisas que os ricos desejavam.

Era para isso que no pensamento daquela época serviam os mais pobres.

Folheando o livro Franz só desejava que a Idade Média findasse.



Era difícil compreender aquela língua antiga, inda que os símbolos utilizados mantivessem alguma semelhança com a escrita da Idade Média, a dificuldade não residia em entender as palavras e sim no significado delas, palavras como igualdade e responsabilidade não faziam parte do imaginário na Idade Média.

Sobre igualdade o mais perto que conseguia imaginar era o seu significado em matemática, inda que fossem atrasados em relação àquele povo antigo, mesmo nas ciências exatas, muitas de suas fórmulas continuavam sendo usadas de forma muito semelhante.

Mas naqueles livros eles falavam na igualdade em relação às pessoas, assim caminhando por essa linha de pensamento Franz imaginou que para aquela civilização antiga buscava-se uma igualdade entre as pessoas, e aparentemente eles conseguiam isso mesmo respeitando as diferenças entre elas.

Por outro lado na Idade Média era uma concepção descabida, as pessoas não eram iguais, haviam classes pessoas, os ricos que estavam no mundo para desfrutar do trabalho dos pobres, que existiam com a finalidade de manter os luxos desnecessários dos ricos e os miseráveis que nem pobres conseguiam ser.

Um miserável jamais seria pobre, e a idéia de um pobre se assemelhar a um rico era um pecado digno de o condenarem a ser queimado em uma fogueira em praça pública.

Igualdade era um conceito totalmente descabido quando utilizado com as pessoas, pobres e miseráveis só tinham por função satisfazer a luxuria dos ricos.

Da mesma forma não havia responsabilidade era um outro conceito que não se aplicava àquele mundo, em especial às pessoas, tudo já estava devidamente escrito, em uma língua que não era acessível a todos, justamente para que nunca pudessem ser alteradas.

Todas as normas sociais estavam escritas nesse idioma que as pessoas não conseguiam ler, e assim seria para sempre, as normas não eram para ser discutidas, eram simplesmente para serem obedecidas.

E sempre que alguém desviava dessas regras era queimado em praça pública, para servir de exemplo, ainda que ninguém entendesse sobre o que era o exemplo. Não era para entender, era simplesmente para obedecer.

Quanto mais tentava compreender aquele povo antigo e seus conceitos que não se aplicavam ao mundo, mais os olhos de Franz ficavam pesados, estava adormecendo.



Meu amor não gaste sua energia tentando entender, não é para entender, é para sentir, deixe fluir que tudo fica mais fácil.

Franz que estava quase adormecendo, despertou abruptamente, aquela fala ainda reverberava em seus ouvidos.

Teve a impressão de que tinha sonhado, mas a fala tinha sido clara demais, ficou com medo de estar ouvindo vozes, se fosse isso aqueles que lhe pagavam para tentar decifrar aqueles livros, não tardariam em prendê-lo, e depois com muita convicção o queimariam em praça pública, como faziam com todos os que os contrariavam.

Quem ouvia vozes ou visse coisas diferentes daquelas que os ricos achavam que deviam ser vistas ou ouvidas, significava que a pessoa estava possuída por algum demônio, cuja finalidade era tão somente expropriar as riquezas inúteis que eles acumulavam, assim, o destino para esses era uma fogueira em praça pública.

A única coisa que esses ricos precisavam era a convicção de que a pessoa via ou ouvia coisas.

Não demorou e os olhos de Franz voltaram a ficar pesados.

Meu amor, deixe fluir, você não pertence mais a esse mundo infecto e mau cheiroso, eu te encontrei, vem comigo, vamos de mãos dadas.

Dessa vez os olhos de Franz estavam pesados demais, dormia profundamente, mas a fala soava claramente em seus ouvidos.

Era uma voz doce e suave, não se lembrava de conhecer a dona daquela voz, mas sentia que ela sempre estivera presente, muito pertinho, sentia que o seu coração e o dela sempre pulsavam juntos.

Como se sempre tivessem existido, que caminhavam na linha do infinito, e o infinito não tem começo nem fim.

Franz se via caminhando em corredores que lhe pareciam sem fim, cercado por desenhos muitos altos, que quase tocavam o céu, pintados com tinta preta.

Tudo era tão nítido que não parecia um sonho era como se estivesse mesmo caminhando naqueles corredores.



Pela primeira vez desde que começara a se conhecer Franz sentiu estar sozinho.

Não conseguia compreender aquele corredor sem fim, com as pinturas com tinta negra aparentemente pairando no vazio.

Apesar de sentir-se sozinho era muito diferente de sentir solidão, não se lembrava em toda a sua existência da sensação de estar em algum lugar distante daquelas criaturas nefastas que habitavam a Idade Média, vigiando os pensamentos e sentimentos das pessoas.

Mas o que sentia era também distante da solidão era como se aquela doce voz que ouvira a pouco pulsasse em seu coração, era como se a dona daquela voz vivesse junto ao seu peito.

Onde estava tudo o que cabia fazer era caminhar em frente por aquele corredor sem fim, sentia que no caminho inverso se encontrava a podridão da Idade Média.

Não guardava nenhuma afinidade com aquele lugar, aqueles que cuidaram dele quando criança, para a sorte deles já tinham deixado aquele mundo, havia outras pessoas, conhecidos, que viviam como ele, mas ninguém com quem tivesse um vínculo maior.

Sentia mais pelos miseráveis, sem a menor condição de suprirem a própria existência, tão somente para manter os luxos inúteis dos ricos, os pobres também sofriam, mas esses pelo menos tinham como se alimentar e uma cama fora do relento para dormirem.

Não tinha nada que valesse a pena para ficar naquele mundo de trevas.

Sentia que a cada passo dado naquele corredor estranho, alguma lembrança das trevas nas quais até então sobrevivera  se apagava.

Quando se deparou em um pequeno espaço vazio do corredor aparentemente infinito, primeiro ficou confuso, mas na seqüência foi invadido por um sentimento de incredulidade.

Franz se deparou com um imenso círculo negro e um espaço em branco à sua frente.

Brevemente seu juízo falseou, se tocou várias vezes, na dúvida de estar vivendo um sonho, mas era tudo claro demais, sabia estar acordado, mas duvidava do que estava vendo.

Meu amor, não se demore, estou te esperando.

A voz outra vez soou em seu ouvido, como se estivesse ao seu lado, mas só a ouvia, por mais que olhasse para todos os lados não conseguia ver quem falava ao seu ouvido.

Andou em volta do círculo várias vezes, teve a impressão de ser perfeito, chegou a duvidar do que estava vendo, com algum esforço conseguiria subir em cima dele, era pouca coisa mais alto que Franz.

Em sua superfície Franz não teve dúvida.

Aquele imenso círculo era um ponto.



No alto do círculo Franz conseguia distinguir um pouco melhor o que havia ao seu redor, mas sentiu que o seu juízo estava falseando. 

Aquilo era uma impossibilidade.

O corredor sem fim ladeado pelas pinturas negras que aparentemente pairavam no vazio eram as linhas escritas do livro antigo que estava folheando, tentando traduzir.

Sentiu uma certa vertigem, sabia que era aquilo era impossível, teve que se sentar para não cair.

Ficou em dúvida sobre o tempo que permaneceu na mesma posição, se tocou e bateu várias vezes no rosto, pensando estar sonhando, mas tudo era claro e vivo demais para ser um sonho.

Sentiu que nunca mais poderia retornar ao seu mundo, aqueles que se julgavam donos do poder acabariam por saber o que se passara, e o julgariam como alguém possuído por maus espíritos o que culminaria com torturas e fatalmente seria queimado em praça pública.

Simplesmente pelo temor dos ricos, pois sempre achavam que aqueles que tinham esses tipos de visões estavam possuídos por espíritos que desejavam expropriar seus luxos inúteis.

Do alto do grande círculo olhando o céu, reconheceu o teto da sala onde estava antes de ser tomado por o que julgava ser visões, ainda que seu juízo estivesse abalado, era tudo vivo demais para ser uma visão ou um sonho.

Cansado, mas sem saber o que fazer, sentiu que era hora de descer daquele círculo e continuar caminhando, só tinha a certeza de que não poderia retornar.

Com dificuldade se pendurou na beirada do círculo para poder descer, era alto demais para poder pular, mas ao tentar descer perdeu o equilíbrio e caiu.

Ainda deitado no chão a doce voz de Valkíria soou uma vez mais em seu ouvido.

Meu amor, agora está perto, é só caminhar mais um pouco.

Estou te esperando, não se preocupe, você não pertence mais àquele mundo, lá não é o seu lugar, há um mundo de encantos e magia nos esperando.



Franz levou alguns minutos para se recompor. Agora deitado no chão, não mais conseguia ver o teto da sala onde estivera antes, as pinturas que ladeavam o corredor eram grandes demais e ocultavam a visão do mundo além do livro.

Sem entender o que estava acontecendo continuou sua caminhada, sem pressa.

Tinha se encantado com a voz que falava ao seu ouvido, ficou imaginando quem seria a mulher que o encontrara, que estava guiando os seus passos.

Depois de o que lhe pareceu algo em torno de uma hora de caminhada Franz se viu em um espaço em branco, o corredor que até então parecia sem fim desembocara naquele espaço.

Imaginou ser um espaço entre os capítulos do livro.

Agora sem o corredor para mostrar o caminho se sentiu desorientado, não sabia ao certo para onde ir.

Olhou para o céu na esperança de ver a sala onde antes estivera para tentar se orientar, mas tudo o que pôde ver foi o branco, parecia não haver mais nada.

Sentiu-se cansado e com sede, sem saber o caminho a seguir.

Desejou se sentar, mas não havia um lugar, nada além do branco, olhou para todos os lados, mas também já não conseguia ver o corredor ladeado pelas pinturas.

“Meu amor não se preocupe, é só seguir seu coração, eu te encontrei. Nós vamos ficar juntos, para sempre.”

A doce voz de Valkíria trouxe paz ao seu coração e ânimo para continuar caminhando, ainda que o branco parecesse infinito.

Sentiu que logo se encontraria com a sua amada.



Depois de horas caminhando Franz agora conseguia distinguir tonalidades de branco, o caminho que percorrera era sinuoso e irregular, mas agora se via diante de um tipo de precipício, não sabia como continuar.

Sentiu que estava no limite de duas páginas e não havia um caminho para chegar à página seguinte.

Muito distante no limite de onde a sua visão podia alcançar percebeu alguns traços, algo que talvez fosse um desenho, forçou a memória para se recordar, antes tinha folheado o livro, mesmo entendendo muito pouco aqueles símbolos, mas agora os traços que via em nada se assemelhava com algum tipo de escrita.

Logo lembrou de uma única gravura existente no livro era o desenho, alguns traços rudimentares de uma cidade, ocupava uma página inteira.

Não teve duvidas, estava no limite da página onde havia aquele desenho, mas a altura era imensa, não tinha como chegar à página seguinte.

Uma última vez olhou para traz, mas tudo que pode ver foi o branco, infinito.

Se sentiu desorientado, não sabia como continuar.

Cansado sentou-se no chão e acabou por deitar.

Logo seus olhos começaram a ficar pesados, precisava descansar, mas a sede também deixava a sua boca seca, sentiu que não conseguiria continuar por mais tempo.

“Meu amor, não se preocupe, é só seguir seu coração.”

Despertou com o coração acelerado, a voz soara com muita nitidez em seu ouvido, ignorando o precipício deu mais alguns passos à frente.

E flutuou, lentamente, precipício adentro.

Sua última lembrança era dos traços que formava a gravura no livro.

Quando se deu conta estava parado, diante de uma fonte em uma praça, pessoas iam e vinham de todos os lados.

Confuso, a primeira coisa que lhe veio à mente foi a boca e a garganta seca, à sua frente a fonte jorrava a água cristalina, gelada, preciosa.



Experimentou um imenso prazer ao sentir a água cristalina e gelada fluir pelos dedos de suas mãos e em seguida as juntou na forma de uma concha e apreciou em grandes goles a água gelada, que ao deslizar pelo interior de sua garganta provocava prazer.

Depois de saciada a sede Franz ficou apreciando a fonte por alguns instantes.

Lentamente uma frase se desenhou em sua mente: “As coisas mais simples são as mais preciosas.”

O barulho de um tipo de carruagem passando pela rua o despertou e logo se deu conta da imensidão de ruídos que havia à sua volta.

O lugar era totalmente diferente da cidade que até então vivera, o que primeiro chamou a sua atenção era a ausência do mau cheiro.

Ficou refletindo porque tudo no mundo que até então habitara cheirava tão mal, não tardou a perceber diferenças significativas, aqui as construções eram espaçadas, havia lugar para as pessoas caminharem, mesmo com grandes construções, maiores que as que até então conhecida e uma infinidade de pessoas, sem dúvida também muito maior, em qualquer lugar que estivesse era possível ver o céu, de um azul esplendoroso, e as construções eram todas revestidas de pedras brancas.

Em seu antigo mundo parece que os espaços eram destinados às construções, e não às pessoas, as ruas eram estreitas e no centro da cidade os prédios impediam que se visse o céu, inda a totalidade das construções eram cinzas e escuras, os dejetos e lixo eram jogados nas ruas e todos tinham que se desviar deles para poderem caminhar. Aquele mundo não era construído para as pessoas, eram as pessoas que serviam àquele mundo.

Os cheiros desse novo lugar tinham uma peculiaridade que Franz ainda desconhecia, ainda estava vislumbrado pelo céu azul e continuou sua caminhada seguindo uma ladeira, onde em seu topo havia uma construção gigantesca, toda revestida com pedras brancas e permeada por estátuas confeccionadas com as mesmas pedras brancas.

Ao chegar ao topo onde estava a grande construção seu vislumbre foi ainda maior, em seu antigo mundo já tinha ouvido falar, mas nunca tinha visto nada semelhante, um lago mais gigantesco que qualquer outro que já tinha imaginado com águas também azuis, só que ligeiramente mais claras que o céu.

De onde estava podia ver onde as águas azuis, entrecortadas por pequenas ondas brancas se encontravam com o azul um pouco mais escuro do céu.

Naquele momento soube estar de frente ao oceano, algo que só conhecia nos livros e através da fala de umas poucas pessoas.

Franz estava se sentindo maravilhado.

Não teve dúvida de que aquele odor agradável que sentira desde o momento que chegara a essa cidade vinha do oceano.



Cansado Franz se sentou nas escadas em frente à grande construção de pedras brancas, estava fascinado com a imensidão do céu e a grandiosidade do oceano, que se encontravam no infinito, onde o tempo se encontra com o espaço.

Enquanto admirava compreendeu porque as cidades da Idade Média oprimiam as pessoas, as construções eram confeccionas de forma que as pessoas não pudessem vislumbrar o Universo que as rodeava e, assim, andavam sempre com a cabeça voltada para baixo, olhando o chão.

Se as pessoas pudessem ver o céu, as florestas, o oceano, começariam a entender que o mundo não tinha os limites que aqueles que achavam ser donos do poder impunham a elas.

Perceberiam que o mundo não poderia ser restrito às palavras daquele único livro, escrito em uma língua que não compreendiam, que era lido a eles por representantes de um pseudopoder, com regras restritas à obediência e subserviência, mantendo um ciclo vicioso, onde sempre os mesmos ocupavam esse lugar de falso poder, e todo o resto da humanidade lhes deviam obediência.

Isso diziam aqueles que liam para eles aquele livro escrito em uma língua incompreensível, que era proibido ser traduzido.

Com os olhos voltados ao chão em um mundo limitado por paredes cinzas que impediam que vissem o céu e as florestas, e com regras impossíveis de serem compreendidas, os pobres e miseráveis existiam tão somente para alimentar aquela parte ínfima da sociedade que detinha mais da metade da riqueza produzida por todos, enquanto a outra metade era utilizada tão somente para manter aquela forma de falso poder.

Agora apreciando o céu e o oceano com a sua magnífica infinitude, Franz compreendeu que o mundo, o Universo não podia ser tão limitado.



Ao cair da tarde Franz se sentia descansado e com a temperatura mais amena começou a andar em volta da grande construção com estátuas confeccionadas com pedras brancas.

Não demorou para notar que aquelas estátuas contavam a história daquela civilização.

Logo percebeu que parte delas representavam Deuses e outras simbolizavam pessoas, homens e mulheres, que tinham escrito a história daquela sociedade e seus Deuses e Deusas.

Mesmo não conseguindo ler a totalidade dos símbolos, como naquele livro que tentava traduzir aos falsos donos do poder de sua época, era muito clara a presença das mulheres e homens daquela sociedade e suas Deusas e Deuses.

Uma preocupação tomou de assalto a mente de Franz, acompanhada de uma leve dor de cabeça.

Se aqueles que achavam que detinham o poder em seu tempo tomassem conhecimento desse local que agora habitava, eles declarariam uma guerra sem precedentes não parariam enquanto houvesse uma única pedra inteira naquele lugar, fariam tudo para que toda aquela civilização se transformasse em pó.

A idéia de que mulheres pudessem viver em uma sociedade com a mesma importância e ocupando lugares com a mesma e até maior importância que os homens era simplesmente inconcebível.

Ainda a presença de Deuses e Deusas no mundo era uma blasfêmia sem precedentes.

Deus era único e masculino, isso explicava a subserviência das mulheres aos homens, isso estava escrito naquele livro que era proibido ser traduzido e não podia ser discutido.

Um pensamento invadiu a mente de Franz, aquela civilização tinha uma lógica, havia Deuses e Deusas, assim era lógico atribuir uma sexualidade a eles, já um Deus único e masculino agora lhe parecia totalmente ilógico se ele era único, porque teria um sexo, já que a sexualidade em seu tempo só era permitida para a reprodução.

Deus sendo único, não poderia ser masculino e nem feminino, se fosse assexuado faria mais sentido.

Assim as bases que justificavam a subserviência das mulheres em relação aos homens era totalmente descabida.



Ao cair a noite Franz se sentia cansado, não tinha um lugar para ir descansar, mas aos poucos seus olhos foram ficando pesados e adormeceu, aos pés de uma enorme estátua toda moldada em uma imensa pedra branca.

Logo começou a sonhar.

Todos que visitaram a grande construção naquele dia já tinham saído.

De suas escadas ainda era possível ver o sol se pondo na linha do horizonte além do oceano, seus últimos raios de luz ainda iluminavam brandamente a cidade que começava a adormecer.

Quando tudo era silêncio umas poucas pessoas começaram a chegar e se aglomeravam nas escadas, onde ainda era possível ver algumas luzes brandas na cidade que lentamente se apagavam.

Uma das pessoas do grupo viu Franz dormindo no chão junto aos pés da estátua que simbolizava uma de suas Deusas e foi despertá-lo, quando Franz abriu os olhos uma pergunta lhe foi dirigida.

Você veio aprender com a gente?

Confuso acenou concordando, mas não tinha compreendido a pergunta, aquela gentileza não fazia parte do contexto que até então conhecera.

Aprender com a gente!

Inicialmente aquela frase lhe pareceu sem nenhum sentido, em seu mundo não se aprendia com as pessoas, todo o conhecimento era um tipo de posse, que pertencia àqueles que se julgavam donos dos poderes.

O necessário era transmitido pelos donos do conhecimento para aqueles que precisavam aprender, e  o que era ensinado se limitava a instruções para confeccionar coisas ou trabalhos para atender os desejos fúteis dos falsos donos do poder.

Não havia mais o que aprender, os falsos donos do poder já conheciam tudo, e os demais que só existiam para atender às futilidades desses falsos poderosos e só aprendiam o necessário para servir a eles.

A pergunta. Você veio aprender com a gente? Instigou a curiosidade de Franz.



Mesmo sem compreender o que estava acontecendo Franz acenou positivamente e se juntou aos demais.

Enquanto conversavam com descontração surgiu um homem já idoso acompanhado de uma moça que usava um vestido longo, mas que deixava o seu braço esquerdo nu.

Era a mulher mais linda que Franz já tinha visto.

Nunca tinha visto uma mulher vestida daquela forma, no mundo em que vivera na Idade Média, as mulheres sempre usavam vestidos longos, que chegavam a arrastar no chão, que mantinham o corpo delas totalmente coberto e na cabeça sempre tinham algum tipo de chapéu, as mais ricas; e as pobres usavam algum tipo de lenço.

Apenas a face delas ficava à vista.

E elas sempre andavam olhando o chão com a cabeça voltada para baixo, como os pobres e miseráveis, só os homens ricos e poderosos andavam com a cabeça levantada.

Essa linda mulher que acompanhava aquele homem diferente delas tinha longos cabelos escuros soltos, que balançavam levemente ao vento.

Como os demais ela andava com a cabeça altiva e olhava a todos em seus olhos com reverência.

Franz se sentiu encantado com ela, ao ouvir a sua voz não teve dúvida de que era a mulher que nos últimos dias falara com ele em seus sonhos.



Quando aquele homem já idoso que chagara por último começou a falar todos se sentaram ao redor dele, formando um círculo, exceto aquela linda mulher que tinha ficado próximo a ele, anotando as falas.

“Todos devíamos olhar constantemente o céu, especialmente à noite, o escuro, as estrelas, a grandiosidade do Universo mostra aquilo que somos.”

“Somos tão somente um ponto minúsculo na escuridão, talvez muito menor que os inúmeros pontos brilhantes que podemos ver.”

“E nosso mundo não é nada mais, nem nada menos que todos esses pontos brilhantes que iluminam a nossa noite.”

“Da mesma forma que nós não somos nada mais, nem nada menos que qualquer outro ser, seja desse mundo ou de qualquer outro, nem dos seres que achamos serem providos de vida; animais ou vegetais, ou até os inanimados como a areia que pisamos ou as pedras que usamos em nossas construções.”

“Somos todos partes desse Universo, que sequer temos conhecimento se finito ou sem fim, um todo, vivo, pulsante, todos estamos interligados: animais, vegetais, águas, pedras, ou estrelas.”

“Somos todos poeira de estrelas.”

“Nem esse mundo, nem qualquer outro nos pertence, somos apenas partes dele.”

“Estamos aqui para viver e aprender e nos tornarmos seres melhores e, igualmente, tornar o mundo melhor para aqueles que nos seguirão.”

“Devemos sempre nos olhar nos olhos, nem acima, nem abaixo, é assim que podemos nos reconhecer nos outros, como parte desse todo que nos rodeia.”

“Nossa espécie só sobreviveu pela nossa capacidade de nos socializar e construir um mundo que nos abrigasse.”

“Tudo que construímos foi devido a essa capacidade de vivemos juntos.”

“Essa construção de pedras brancas que tanto veneramos é fruto do trabalho de milhares de pessoas e séculos de tecnologia, o mesmo vale para nossas casas, nossas roupas, os alimentos e a água que tanto necessitamos.”

“Não fosse nossa capacidade de vivermos juntos, teríamos nos extinguido, antes mesmo de termos saído das cavernas.”

“É a vida em sociedade que possibilita a nossa existência.”

“Ainda que sejamos únicos, não há dois seres iguais, sejam vivos ou inanimados, guardamos semelhanças, nossa essência é a mesma, somos todos poeira de estrelas.”



Assim que aquele homem sábio parou de falar, aqueles que o ouviam começaram a conversar entre si e eventualmente dirigiam perguntas a ele.

A mulher de cabelos longos, sempre atenta, anotava como podia as falas, fossem das pessoas ou do homem que discursara.

Quando uma branda luz do sol começou a iluminar o horizonte a maioria das pessoas já tinham ido embora e aquele homem com sua bela acompanhante também estavam se despedindo daqueles que ainda observavam o céu.

Em passos lentos ela se aproximou.

- Como você se chama? Gostaria de continuar a participar de nossas conversas. Meu nome é Valkíria.

- Eu sou Franz, sim, respondi gaguejando.

- Você não é daqui, não me recordo de tê-lo visto em nossa cidade, veio de longe?

- Cheguei aqui pela manhã, ainda estou conhecendo tudo por aqui.

- Deve estar cansado, tem onde ficar?

- Não, mais uma vez respondi gaguejando.

Não conseguiria explicar como tinha chegado, se falasse que tinha caminhado pelas páginas de um livro até chegar a uma gravura, creio que achariam que tinha enlouquecido.

- Gostaria de vir descansar em nossa casa?

- Sim, uma vez mais respondi gaguejando.

Caminhamos juntos em silêncio, Valkíria eu e aquele homem sábio; em pouco mais de uma hora o dia iria amanhecer.

Passados alguns minutos chegamos a uma pequena casa, aparentemente a mais humilde entre outras que a rodeavam e, como todas as construções da cidade, forrada com pedras brancas, desgastadas e levemente amareladas pelo tempo.

Franz se sentia com a mente perturbada, tudo aquilo era muito diferente do que até então conhecia, em seu antigo mundo uma mulher jamais poderia dirigir a palavra a um outro homem daquela forma em igualdade, isso era inconcebível no mundo como o conhecia.

E aquele homem, sem dúvida o mais sábio que já conhecera, não havia ninguém com clareza da idéias como a dele no mundo do qual viera.

Franz ficou atônito quando entrou naquela casa humilde.

As pessoas que se sentiam donas do poder em seu antigo mundo sequer dirigiam suas palavras aos pobres e miseráveis, que eram a totalidade da população, nunca davam qualquer explicação, quando algo tinha que ser dito, era através daqueles que prestavam serviços àqueles poderosos.

Viviam em casas enormes, da qual pobres e miseráveis sequer podiam se aproximar, os pobres que entravam nessas casas eram aqueles que trabalhavam para mantê-las para esses que se julgavam poderosos.

E agora esse homem dotado de uma sabedoria que jamais presenciara parece que vivia nessa casa humilde, desprovida de qualquer luxo.



Valkíria se aproximou de Franz e lhe ofereceu um lençol e o que aparentemente era um pequeno colchão de palha que estava em um canto da casa.

- Na mesa há água e algumas frutas, se desejar.

Depois de colocar o lençol sobre o colchão Franz se dirigiu à mesa e bebeu um copo de água.

Quando olhou para o lado viu o homem sábio se deitando em um outro canto casa e Valkíria se dirigindo a um pequeno aposento, também estava indo se deitar, ficou encantado com os cabelos dela que balançavam levemente enquanto caminhava.

Ao se deitar a luz do sol começava a entrar pelas janelas da casa.

Ficou pensativo a voz de Valkíria lhe parecia conhecida, quando já estava deitado não teve dúvidas, era a voz que algumas vezes soara em seus ouvidos quando estava a caminho desse mundo que a cada momento mais o encantava.

Tinha medo de dormir e ao acordar descobrir que tudo era um sonho e, uma vez mais despertar em seu enfadonho mundo.

Não demorou, e mesmo com a luz do sol adentrando a casa, seus olhos começaram a ficar pesados.

Seu pensamento em relação àquela casa humilde o incomodava, não era compatível com nada que até então conhecera, aquele homem sem nenhuma dúvida era um grande sábio, e Valkíria aparentava um conhecimento superior à todas as pessoas que tivera contato em seu antigo mundo.

Lá as pessoas pobres nunca tinham nenhum contato com outros que tinham conhecimento, não chegavam a aprender a ler e muito menos a escrever, eram dotadas de vocabulário paupérrimo e mal conseguiam articular frases simples.

Já os ricos e poderosos dispunham de vários professores que viviam para servi-los e para ensinar tudo o que conheciam, e esses professores quando envelheciam e começassem a ter dificuldades em ensinar aos filhos dos ricos, eram banidos de suas casas e tinham o destino dos miseráveis.

Enquanto tudo o que os pobres aprendiam eram trabalhos manuais para atender a necessidade dos poderosos e limpar as casas dos ricos e cozinhar para eles.

Igualmente quando envelheciam e as dificuldades surgiam, seus destinos era o mesmo dos miseráveis.

Curiosamente nem os ricos, poderosos, pobres ou miseráveis eram dotados de qualquer grau de felicidade, o sofrimento era generoso com todos.

Esse homem sábio no mundo como até então Franz conhecia deveria ocupar o lugar dos ricos e, igualmente Valkíria, mas ambos viviam nessa casa humilde, e em ambos havia uma felicidade que Franz não conseguia descrever.



Franz teve um sono agitado, sentia-se desconfortável consigo mesmo, não sabia mais identificar qual era o seu lugar no mundo.

Desejava permanecer nesse novo lugar, diferente de tudo que já imaginara, mas sua antiga vida ainda estava impregnada em sua pele.

Enquanto sonhava se agitava no pequeno colchão.

Uma vez mais se viu naquela torre escura cheirando a mofo, sentado em uma mesa de madeira muito mau cuidada, tentando decifrar aquele livro, sentia-se pressionado pelos que se intitulavam donos do poder, se demorasse mais para apresentar os resultados que eles desejavam em breve seu destino seria o mesmo dos miseráveis.

Mas por mais que procurasse não encontrava nada que pudesse aumentar ainda mais o poder daqueles que nada faziam além de tentar controlar o mundo à volta deles.

Ao contrário, tudo o que encontrava naquele livro eram formas de trazer conforto às pessoas e, naquele mundo estranho descrito naquele livro o conceito que mais estava presente era o de liberdade.

Lá dizia que a liberdade só seria uma possibilidade no momento em que todos pudessem desfrutar esse sentimento, não existiria liberdade enquanto houvesse escravidão.

Percebeu que aquela cidade só foi construída por aquele povo dado o seu poder por ter conseguido dominar e escravizar outros, mas seguindo essa lógica os senhores daquela cidade se tornaram dependentes desses escravos.

A liberdade para eles estava relacionada ao poder, fosse ele físico através da capacidade de dominação, ou emocional pela capacidade de persuasão de que aqueles escravos não tinham a potencialidade de governarem a si próprios.

Se um escravo ou grupo deles, seja pela força física ou pela persuasão dominasse o seu senhor, ele se tornaria senhor desse, seria livre e seu antigo senhor seria seu escravo.

Havia um princípio de igualdade nessa sociedade.

Conceito inexistente em seu antigo mundo, os ricos e poderosos sempre seriam ricos e poderosos, tinham herdado isso de um suposto deus, isso estava detalhado naquele livro escrito em uma língua que ninguém entendia e que era proibido ser traduzido.

Já os pobres e miseráveis, sempre seriam pobres e miseráveis, a única mudança social possível era um pobre se tornar miserável.

Isso também estava detalhado naquele livro que ninguém compreendia e que não podia ser questionado.

Nas palavras daquele homem sábio na noite anterior e daquele grupo que se reunia junto a ele e Valkíria, buscavam formas de uma evolução em seu mundo, de forma que não houvessem mais escravos, nem senhores.

Assim não haveria mais povos dominados e nem senhores dependentes de escravos, ambos igualmente escravizados.

Analisando o que vira até aqui, ainda que achasse o nome que atribuíram a esses povos dominados aversivo “escravos”, Franz não teve dúvidas, mesmo esses tinham uma vida com maior dignidade que os pobres e miseráveis de seu antigo mundo.

Acordou confuso e cansado, ainda não conseguia entender o que eles chamavam de igualdade entre as pessoas.



Quando conseguiu abrir os olhos a primeira coisa que pôde ver foi Valkíria e aquele homem sábio se alimentando na mesa daquela humilde casa, era o único móvel que havia nela.

Assim que Valkíria percebeu que Franz havia despertado o chamou para partilhar a alimentação e a preciosa água de que dispunham.

A porta e as janelas da casa estavam todas abertas e por elas entrava a luz do dia e o cheiro característico que já estava se acostumando do oceano, que podia ser alcançado caminhando em apenas alguns minutos.

Quando terminaram o dia já estava em sua metade, o calor tomava conta de todo o ambiente.

Valkíria dirigiu a palavra a Franz.

- Deseja me acompanhar, precisamos de algumas coisas.

- Sim claro, vou adorar.

Ao deixarem a casa aquele homem sábio permaneceu junto à mesa, agora ele estava escrevendo algo em uma grande folha de papel.

Andaram sem pressa pelas ruas que estavam bastante movimentadas.

Logo Franz percebeu que Valkíria conhecia praticamente todas as pessoas daquele lugar e, aparentemente todos se conheciam.

- Você gostaria de ficar com a gente enquanto ficar em nossa cidade.

- Sim, respondi, sem pensar.

Mas fiquei pensativo, o que desejava mesmo era ficar ali para sempre.

Sentiu como se sempre tivesse estado ao lado de Valkíria, era como se a conhecesse intimamente, mas não sabia como dizer isso a ela.

- Você é bem vindo para ficar, creio que também tem muito a ensinar sobre a vida do lugar de onde vem.

Franz sentiu um nó na garganta, não sabia como explicar a forma como chegou, nem explicar o quão enfadonho era seu mundo.

Desejou, como Valkíria, ter nascido naquele lugar, e nunca ter vivido em seu antigo mundo.

Ao chegarem onde parecia ser o centro daquela cidade, em um tipo de praça, as pessoas comercializavam coisas. Valkíria escolheu algumas frutas e legumes e, em troca entregava uns objetos circulares metálicos.

Franz imaginou que aquilo fosse dinheiro, já tinha ouvido falar, mas em seu mundo só os ricos tinham a posse dele, os pobres nunca tinham acesso, as coisas que conseguiam eram sempre através de trocas.

Não compreendia como uma mulher, isso nunca aconteceria em seu mundo, ter dinheiro, se alguma delas fosse descoberta com isso seria presa e considerada como uma ladra, só os homens ricos tinham esse poder.

Chamava muito a sua atenção mulheres e homens terem os mesmos tratamentos.

Achou que havia alguma relação com o termo “igualdade” que aquele homem sábio utilizara no fim da noite anterior.



Enquanto caminhavam de volta para casa Franz indagou Valkíria.

- Como podem as pessoas serem iguais.

- Mas não somos iguais.

- Ontem à noite quando estávamos naquele grupo falou-se sobre igualdade.

- Igualdade não significa sermos iguais.

A questão é como aqueles que administram a cidade podem tratar as pessoas com igualdade.

Enquanto houver administradores não haverá igualdade.

Era sobre isso que falávamos.

Enquanto houver poder na mão dos administradores, haverá um povo oprimido pelo poder desses.

Nossa questão é como podemos destituir esse poder e ao mesmo tempo continuar vivendo em uma sociedade organizada.

Aqueles que administram um dia em gerações passadas fizeram parte da população, conheciam as pessoas, os lugares, suas qualidades e seus problemas.

Com o crescimento de nossa cidade eles foram se afastando da população e ao invés de administrarem, passaram a subtrair as riquezas produzidas por todos, para alimentarem seus luxos inúteis.

Assim enquanto a cidade enriquecia e a cada dia se construía mais inutilidades, mais a nossa população que gerava as riquezas empobrecia tanto no sentido material como no psíquico.

Há muito tempo já não deveria haver escravos em nosso mundo, o que a natureza nos dá aliado à nossa capacidade de transformação seria o suficiente para que trabalhássemos apenas algumas horas na semana, e sobraria para que todos tivessem suas necessidades atendidas com muito conforto.

E assim poderíamos nos dedicar àquilo que realmente importa: o viver bem, as artes, o equilíbrio entre a nossa existência e a natureza, uma vez que precisamos transformá-la para que nossa existência seja possível.

Sabemos que não podemos simplesmente transformar esse mundo para atender nossas necessidades, hoje cada vez temos que ir mais longe para conseguir nossos alimentos, em muitos lugares estamos estragando o bem que é mais precioso para a vida de todos: a água.

Os administradores não pensam mais como partes desse mundo, para eles a população e toda a riqueza que o mundo nos oferece nada mais são do que artifícios para sustentar seus luxos inúteis.

E, ironicamente também vivem muito mal, a cada dia são mais odiados, precisam de exércitos para protegê-los, acham que estão cuidando de suas riquezas, mas estão enganados, nada é deles, esses que hoje ocupam seus lugares nada produziram, todo o luxo inútil que acham ser donos foi subtraído daqueles que efetivamente trabalham, principalmente os escravos.

À medida que Franz ouvia Valkíria explicando um mau estar foi tomando conta de seu ser, sua cabeça começou a doer, nas palavras de sua amada estava projetada a podridão e miséria que vivenciara até chegar a esse mundo que tanto admirava.



- Por favor, vamos parar um pouco, gostaria de me sentar.

- O que aconteceu?

- Estou com dor de cabeça, só preciso descansar um pouco.

Após sentarem-se em um banco à sombra, Valkíria se afastou brevemente, entrou em uma casa que estava há alguns passos, quando retornou trazia um jarro nas mãos.

- O que isso?

- É água meu amor, beba um pouco e depois molhe as mãos e a cabeça, deve ter sido o calor, talvez não esteja acostumado.

Depois Valkíria se afastou uma vez mais, tinha ido entregar o jarro que pegara emprestado.

O lugar realmente era muita quente, diferente do que Franz estava acostumado, mas não tinha sido isso que o deixara com dor de cabeça.

Aquela conversa, os administradores que subtraiam as riquezas produzidas pelas pessoas, o funcionamento da cidade.

Em um lampejo de idéias conseguiu compreender o seu mundo, que era um reflexo aumentado do mau que estava iniciando naquele lugar.

Algo tinha dado errado com as idéias daquele professor, de Valkíria e de todos os seus seguidores que em um futuro que não conseguia precisar tinha levado a quase totalidade da população à miséria. 

Não conseguia compreender como aquele lugar maravilhoso tinha dado origem ao desastre que se tornara o seu antigo tempo, mais que qualquer outro, agora Franz sentia que era necessário interromper esse ciclo nesse momento da história para que o mundo que até então conhecia não se tornasse um caos.

Não tinha idéia de por onde começar, não sabia sequer como explicar tudo a Valkíria que tão bem o tratava.



Quando retornou Vakíria continuou explicando.

Nós sabemos que tão breve não haverá mudanças significativas em nossa sociedade.

Por isso nos reunimos todas as noites para pensarmos como constituir um novo mundo, onde as pessoas possam desfrutar de igualdade em seus direitos, ainda que não haja pessoas iguais.

Levará ainda gerações para que as pessoas sintam esse princípio de igualdade.

Nossa finalidade é registrar nosso conhecimento e os erros que cometemos para que as gerações que nos sucederem possam desfrutar um mundo melhor.

Isso não será possível enquanto esses que se julgam administradores terem poder em nossa sociedade.

Em algumas cidades já houveram rebeliões e nessas destituíram os administradores, mas tudo o que conseguiram foi substituir eles por outros que continuaram a exercer seu poder para espoliar aqueles que efetivamente trabalham.

Efetivamente esse não é o caminho, é preciso constituir um mundo em que não haja administradores.

Quando eles adquirem poder agem como parasitas e tudo o que fazem é subtrair as riquezas dos que trabalham, essas parasitas são dotadas de uma fome insaciável.

Hoje as pessoas realmente sábias já não aceitam mais partilhar seu conhecimento com as parasitas, pois elas se apropriam dele para oprimir os demais.

Sem os novos conhecimentos eles irão sucumbir e daí surgirá um novo mundo destituído de parasitas.

Sabemos que não viveremos para conhecer esse mundo, mas aqueles que nos sucederem poderão desfrutar dele.

Franz voltou a sentir enjoado, mas se esforçou para que Valkíria não percebesse, sabia que algo tinha dado errado com o pensamento de Valkíria e dos seguidores daquele homem sábio.

Tinha que conhecer um pouco mais e achar uma forma de adverti-los sobre os horrores que se seguiriam.



Quando estavam há algumas quadras de casa Franz e Valkíria se depararam com um louco no caminho.

Pouco antes de se aproximarem ele falava muito alto, na realidade estava aos berros, mas não havia ninguém por perto.

Franz estranhou muito a atitude de Valkíria que em passos lentos se aproximou dele, em voz baixa lhe ofereceu uma fruta, depois desse ato ele abaixou o tom de sua voz, ainda que não interrompesse a sua fala.

Era um homem idoso, aparentava ser mais velho que o sábio que vivia com Valkíria, tinha longas barbas e cabelos brancos.

Para Franz era a primeira vez que ficava tão perto de um homem louco, o olhar dele o impressionou, ainda que olhasse para ele e para Valkíria era como se não estivessem lá, nitidamente seu olhar os atravessava, como se ele estivesse vendo um outro mundo.

Do mundo que viera todos temiam os loucos, falava-se que quem olhasse em seus olhos igualmente ficaria louco.

Por uns instantes Franz ficou amedrontado, mas ao sentir a serenidade de Valkíria se acalmou.

Nos olhos daquele homem Franz não viu a loucura, embora as suas palavras fossem desconexas.

O que viu foi a serenidade, talvez o vazio, ou ainda um outro mundo.



A idéia de ter estado tão perto de um louco continuava a ocupar os pensamentos de Franz, naquele momento nada mais ocupava a sua mente, estava experimentando uma mescla de medos e dúvidas.

O medo sempre é proporcional às dúvidas, incertezas, ignorância.

Quanto maior a ignorância maior o medo, mas na ignorância patológica há uma recusa em sanar as dúvidas e assim diminuir a ignorância.

Assim era o antigo mundo em que Franz vivia, não havia espaço para dúvidas, era o mundo das certezas absolutas, e consequentemente da ignorância absoluta, no sentido mais amplo de seu significado.

O louco era um paradoxo em seu antigo mundo, ele desafiava todas as certezas, eram pessoas que não se submetiam ao falso conhecimento dos falsos donos do poder.

Aqueles falsos donos do poder disseminavam sua ignorância e suas certezas, impedindo que qualquer conhecimento que não servisse para manter seus luxos inúteis fossem disseminados.

As certezas absolutas aliadas à ignorância também absoluta fizera com que o mundo todo ficasse estagnado, não havia espaços para qualquer tipo de mudança.

Mas os loucos estavam além do alcance dos falsos poderosos, suas certezas não tinham lugar com eles, assim a alternativa que acharam foi isolar essas pessoas do convívio com os demais, qualquer dúvida era um risco para esses falsos poderosos, cuja única e exclusiva finalidade era espoliar os pobres e miseráveis para ampliar seus luxos inúteis.

Ainda não se contentaram em isolar essas pessoas, diziam que naquele livro que era proibido ser traduzido que a loucura era uma doença contagiosa e quem em algum momento olhasse nos olhos de um louco ficaria igual a ele, e teriam como destino os porões escuros para morrerem no esquecimento.

Qualquer um que contestasse a forma de o mundo ser tinha como diagnóstico a loucura e consequentemente os porões como destino.

Naquele dia, o que Valkíria fizera foi dar um pouco de atenção àquele louco e com isso ele se acalmara, ela tinha conversado com ele da mesma forma que falava com qualquer outra pessoa.

Franz estava com os pensamentos confusos.



Nos poucos passos que restaram até chegar em casa Valkíria e Franz permaneceram em silêncio.

Observando, Franz não percebeu nenhuma mudança na conduta de Valkíria ao ter contato com o louco, ela estava tranqüila, serena.

Se a loucura fosse como um vírus que se propaga a todos que se aproximam do louco, diferente de como diziam na Idade das Trevas, não se revelava imediatamente.

Valkíria continuava com seus afazeres como se nada houvesse acontecido.

Ao chegar em casa sequer mencionou o ocorrido ao velho sábio, que talvez conhecesse algum remédio para o possível contágio.

Depois de comerem algumas frutas Valkíria o convidou para o encontro que haveria mais tarde, mas Franz respondeu que estava cansado e preferia ir na próxima noite.

Assim foi descansar.

Na realidade não estava cansado, o que tinha era medo, ainda se sentia confuso, com o contato que tivera com o louco há pouco, e o medo também se espalhava em sua mente, talvez ele próprio igualmente houvesse sido contaminado.

Confuso começou a se questionar, tinha medo de acordar em seu antigo mundo e ao revelar o que ocorrera fosse considerado também um louco.

Lutava contra si próprio e o seu sono, temia dormir e se confrontar com a própria loucura e, ao mesmo tempo sentia que o sono era prodigioso, muitas vezes no fim do dia quando estava confuso, depois de uma boa noite de sono sequer se lembrava de o porquê anteriormente se sentir daquela forma.

Buscou se centrar em seus pensamentos anteriores e antes que adormecesse uma frase se desenhou em sua mente: o medo é proporcional à ignorância.

Percebendo a angústia de Franz, Valkíria preferiu ficar em casa à noite.



Franz teve um sono pesado e agitado, a ele parecia ter transcorrido muito tempo, mas para Valkíria que sentia a sua agitação foram apenas alguns instantes.

A idéia de loucura assolava a mente de Franz.

Os acontecimentos do que lhe parecia ter ocorrido nos últimos dias ia de encontro àquilo que chamavam de conhecimento na Idade das Trevas.

Quem até então já tinha caminhado pelas linhas e páginas de um livro.

Ainda que civilização era essa que habitava uma gravura impressa em uma página desse.

Imaginou que sua loucura talvez tivesse iniciado com isso que só poderia ser um sonho, sabia que ao acordar os inquisidores o sentiriam estranho, acabariam por interrogá-lo, e seu destino seria ser afastado da cidade para passar o resto de seus na clausura para que sua loucura não se espalhasse, contaminando a todos.

Por outro lado, o mundo de Valkíria lhe parecia muito real e era provido de coerência, muito diferente do lugar de onde viera.

Não se recordava de em toda a sua vida anterior um cuidado por menor que fosse às pessoas, ou ao mundo que as rodeava, tudo não passava de meras engrenagens para sustentar os luxos inúteis daqueles que julgavam estar em um posição de poder.

Depois de alguns instantes Franz despertou de seu sono agitado, seu coração estava acelerado e transpirava pelo corpo todo.

Ao perceber Valkíria lhe trouxe um pouco da preciosa água gelada.

Teve a impressão de que dormira por muito tempo, mas ao olhar pela janela notou que a noite ainda não havia chegado, achou que tinha dormido a noite toda e todo o dia seguinte, mas enquanto apreciava a água, conversando com Valkíria soube que tinha passado apenas alguns instantes.



À medida que seu coração desacelerava, enquanto apreciava a preciosa água gelada, Franz conseguia pensar com mais clareza.

Se tudo o que estava vivendo nos últimos dias fosse um sonho, preferiria não mais despertar dele.

Adorava passear pela cidade, com suas calçadas e casas construídas com pedras brancas, o calor e a proximidade do oceano também lhe traziam prazer.

A presença de Valkíria lhe trazia serenidade e um amor jamais experimentado, era a primeira vez na vida que não se sentia solidão.

O velho sábio e seus discípulos falavam com coerência e lógica, ainda admitiam o não saber como algo natural, algo a ser compreendido, se de alguma forma trouxesse o bem.

Não precisavam de um livro escrito em uma língua que não podia ser traduzido que tinha todas as respostas em um mundo que não admitia perguntas.

Definitivamente seria melhor não mais acordar.

Ainda se despertar fosse inevitável o lugar que os loucos ocupavam não podia ser pior do que mundo das trevas, ainda que pelo que sabia os loucos quando em clausura tinham uma vida muito breve.

Pensava ser melhor uma vida breve, do que a negação da vida que era o significado de sobreviver em um mundo cuja finalidade da quase totalidade da população se limitava a manter os luxos inúteis daqueles que se julgam donos do poder.

A partir desse momento o mundo dos loucos deixou de assombrar a mente de Franz.

Agora o que restava era encontrar as palavras mais adequadas para expor ao sábio, seus discípulos e à Valkíria o que era o mundo de onde viera.



Franz começa a falar com Valkíria sobre a sua história.

- Não sei ao certo se o que tive foi um sonho, ou se o sonho é isso que estou vivendo.

- Que diferença isso faz? Alguns pensam que o mundo ao redor é a realidade, e que os sonhos são fantasias, mas quando se sonha é real.

- É o que estou tentando dizer, não sei mais diferenciar os sonhos disso que chamam realidade.

- Não creio que isso seja importante, “o que importa de fato são os sonhos, sejam eles quando estamos acordados, ou quando adormecemos.”

- Eu vim de um outro lugar.

- Sim, sabemos disso. Aqui conhecemos todos, ainda que muito superficialmente, afinal antes de conhecermos alguém precisamos conhecer a nós mesmos. Essa é uma grande questão.

- Acho que não estou conseguindo me explicar, não se trata de uma outra cidade, quero dizer que vim de um outro mundo, ou para ser mais preciso, creio que de um outro tempo.

- Me conta, de que mundo, ou de que tempo acha que veio.

- Tenho a impressão de que é de algum lugar em um futuro distante, mas não sei explicar ao certo. O curioso é que apesar de achar que vim de um tempo distante, parece ter havido um enorme retrocesso, esse mundo de onde vim é primitivo, permeado pela ignorância, avareza, diria que a humanidade regrediu.

- Mas também desconhecemos muitas coisas, nesse sentido também somos ignorantes, aliás o que desconhecemos é imensamente maior do que aquilo que conhecemos.

- Essa talvez seja a diferença entre nossos mundos, lá não admitem esse desconhecimento, que nos leva a aprender cada vez mais. Tudo que é necessário saber está escrito em um livro com uma linguagem que a totalidade das pessoas desconhecem, e a tradução desse livro para as pessoas é proibida.

- Estranho.

- Só aqueles que se julgam poderosos têm esse livro e eles escolhem o que dizer e como dizer às pessoas em nome desse livro, e nada mais é permitido conhecer, aqueles que eventualmente tentam um caminho diferente ficam loucos e acabam por ser excluídos da vida em nossa sociedade.

Ao ouvir essa última fala de Franz, Valkíria empalideceu, sentiu uma leve tontura.

Franz percebendo a acolheu e dessa vez ele ofereceu a ela a preciosa água.

- Precisamos falar com o professor, isso é muito importante.



Após passar seu leve mau estar Valkíria ficou pensativa.

Entendia que o que Franz descrevera, parecia estar começando a acontecer em sua cidade, em seu tempo.

Há tempos aqueles que se diziam administradores da cidade, que nada faziam além de expropriar os bens socialmente construídos em benefício próprio, vinham adquirindo, melhor dizendo subtraindo os conhecimentos que eram elaborados por todos.

Vendiam a idéia de que a intenção era construir bibliotecas, nas quais todo o conhecimento elaborado nas cidades seriam catalogados e organizados, para posteriormente os tornarem públicos e assim todos teriam acesso, mas tudo o que faziam era coletar esse conhecimento, e essas bibliotecas que deveriam ser públicas nunca saiam de seus projetos, ainda que o custo desses que era pago com os esforços daqueles que trabalhavam, já tinha sido mais que suficiente para a construção de bibliotecas em todos os quarteirões da cidade.

Indignados com o que ocorria, vários sábios como o professor, começaram a constituir grupos de pessoas, trabalhadores, em várias cidades, para que juntos pudessem difundir os conhecimentos adquiridos, sem a interferência dos que se diziam administradores, que nada faziam além de enriquecer com o que os trabalhadores produziam.



Depois de uma breve pausa Valkíria se dirige a Franz.

- É cedo ainda, e a noite está agradável, vamos nos encontrar com o professor e o nosso grupo.

- Gostaria muito, nosso último encontro foi gratificante.

No caminho ficaram em silêncio, Valkíria estava pensativa, enquanto Franz apreciava as nuances da cidade.

Teve a impressão de que à noite a cidade era ainda mais bonita, com a temperatura mais agradável caminhar pelas ruas calçadas com as pedras brancas era ainda mais prazeroso.

Em algumas construções, com as pedras mais polidas era possível apreciar o reflexo da lua e das estrelas nela.

O ar úmido proveniente da evaporação das águas do oceano devido o dia quente deixava a caminhada particularmente agradável.

Franz pensava como essa civilização que construíra tantas belezas podia estar sendo explorada por esses que se diziam administradores, todos com quem conversara, diferente do que ocorria no mundo das trevas, pareciam pessoas sábias, conscientes de sua importância em sua cultura.

O que teria acontecido, que desencadeou a tragédia que era o mundo de onde viera.

Quando começaram a subir a ladeira que dava acesso à grande construção de pedras brancas, símbolo de sabedoria da cidade, Valkíria se aproximou e ficou bem pertinho de Franz, que gentilmente estendeu a mão para caminharem de mãos dadas.



Ao sentir o toque suave da mão de Valkíria, interrompeu a caminhada, sua amada também parou, e por um longo tempo ficaram se olhando nos olhos.

Os olhos de Valkíria tinha uma tonalidade azul escuro, a mesma tonalidade da Grande Estrela Azul que não cansava de apreciar todas as noites.

Era a primeira vez que notara a semelhança dos olhos de Valkíria com a Estrela que tanto apreciava.

Franz e Valkíria sentiram ser feitos da mesma essência. A Grande Estrela brilhava bem encima deles, à medida que a tênue luz azul os envolvia flutuaram, de onde estavam podiam ver toda a encosta do morro, onde ficava a construção de pedras brancas, na qual tiveram o primeiro encontro, mas ambos estavam em transe, tudo o que viam era o interior de suas almas, através dos olhos.

O movimento de pessoas descendo a encosta os despertou do transe e lentamente desceram à rua que dava acesso à construção onde o professor conversava com aquelas pessoas.

Não demorou e em passos lentos o viram descendo a ladeira, voltariam juntos para casa.



Passado alguns instantes entre os últimos que desciam a ladeira surgiu o professor, sorridente, conversando em voz alta, como era seu hábito, com aqueles que sempre o ouviam atentamente suas palavras.

Na companhia de Franz e Valkíria diminuiu ainda mais o ritmo dos passos.

Franz e Valkíria desejavam conversar com ele, mas não sabiam ao certo quais palavras utilizar.

Já há alguns dias a aproximação de ambos era evidente para o professor, mas sentia que não era esse o motivo da conversa.

Assim que entraram em casa, quebrando o silêncio ele disse.

- Será que antes de iniciar essa conversa misteriosa podemos beber um pouco daquela água gelada, estou com sede.

Franz e Valkíria responderam juntos.

- Claro, também estamos com sede.

Entre as qualidades do professor se destacava sua facilidade em facilitar as conversas, ele sentia haver algo diferente, mas ainda não sabia do que se tratava.

Saciada a sede, ele os convidou para se aproximarem de sua pequena mesa, próxima ao canto da casa onde costumava dormir.

Franz pegou duas cadeiras e sentaram-se em frente a ele, mas ainda não sabia quais palavras escolher.

Quebrando o silêncio o professor disse que há alguns dias desejava falar com eles também, e de sua gaveta pegou um grande livro, com a intenção de mostrar a eles.

Imediatamente Franz sentiu uma forte dor de cabeça e empalideceu.

Não teve nenhuma dúvida conhecia muito bem aquele livro, inda que quando estivera em suas mãos estava envelhecido e com as folhas amareladas pelo tempo.

Era o livro que estava tentando traduzir quando ainda vivia no Mundo das Trevas.



Passado o choque inicial Franz iniciou o diálogo, lentamente começou a dissertar sobre o que conhecia do livro que o professor queria mostrar a eles.

Isso poupou a Franz um longo discurso tentando explicar o que até ele não tinha explicações, não sabia dizer nem como tinha vindo de um outro tempo, de um lugar no futuro, inda que considerasse seu outro mundo muito mais no passado do que a época em que agora vivia.

Enquanto pensava uma frase se desenhou em sua mente. “Lá na Casa do Gramado muitas vezes o antes pode estar acontecendo agora, e às vezes o depois já aconteceu.”, mas sentia que isso era algo a ser dito à sua amada Valkíria, achou que no contexto em que estava seria difícil expor essas palavras ao professor.

Igualmente Franz se sentiu aliviado por não precisar dizer sobre o caminho que percorrera entre as linhas e páginas do livro até chegar a essa magnífica cidade onde Valkíria e o professor viviam.

Em sua fala, Franz comentava intercaladamente o conteúdo do livro, enquanto explicava detalhadamente o que acontecia em seu tempo, e como as parasitas se apropriavam dos conhecimentos submetendo a quase totalidade da população à miséria, pobreza e ignorância.

O curioso é que igualmente as parasitas, no intuito de deter todo o poder e conhecimento do mundo conhecido igualmente, ainda que em outro sentido também condenaram a si próprias à miséria, ignorância e pobreza.

Depois de um discurso de Franz que durou horas, já era madrugada, o professor o interrompeu, Valkíria continuava atenta ouvindo cada palavra.

- Sinto que há muito que ainda não foi dito, parece haver partes em sua história, meu caro Franz, que não se encaixam.

- Sei que logo não mais estarei entre vocês, mas diante do que me disse há algo muito importante a se fazer.

Ao ouvir essa última fala do professor uma lágrima escorreu dos olhos de Valkíria.



O professor faz um breve discurso a Franz e Valkíria.

“Já faz alguns anos que os administradores vêm se apossando dos conhecimentos que produzimos, no princípio quando eles eram pouco necessários até que as coisas funcionaram relativamente bem.

Eles tinham um conhecimento geral de como constituir cidades, e sabiam planejá-las, assim conseguiam organizar e coordenar as construções.

Enquanto nossos sábios projetavam e os trabalhadores realizavam as construções, os administradores se apropriavam não só das nossas criações como também de tudo que os trabalhadores produziam.

Assim, gradualmente os administradores passaram de pouco necessários, para totalmente inúteis e, posteriormente se transformaram em um peso para as nossas cidades, sugando tudo que é produzido, simplesmente para alimentar seus vastos luxos inúteis.

Ao invés de administrar as cidades para aqueles que nelas vivem, passaram a administrar tão somente para si próprios.

Tinha a esperança que em um tempo breve os trabalhadores tomassem consciência do que vinha ocorrendo e achassem mecanismos para destituírem os administradores do lugar que eles usurparam, mas meu caro Franz, pelo seu relato, desse meu último trabalho transcrito nesse livro, que não compreendo como você chegou a conhecê-lo, fica claro que você sabe mais sobre ele do que eu próprio que o redigi.

Devemos fazer o possível para que o que produzimos que ainda não tenha sido subtraído pelos administradores seja guardado para quem sabe um dia ao pessoas tenham maturidade para se beneficiar dos conhecimentos que produzimos.

Na mão dos administradores todo esse conhecimento parece evoluir ou melhor, regredir para tão somente servir para explorar aqueles que deveriam se beneficiar com o conhecimento.”

“Caro Franz, Valkíria, por favor peçam a todos que conhecemos que avisem os grupos de professores e estudantes das outras cidades para que nos encontremos e juntos encontremos uma forma segura de guardar tudo o que ainda não foi subtraído pelos administradores para que um dia tudo isso possa ser utilizado com dignidade, uma palavra que é desconhecida pelos administradores.

Não devemos mais nos encontrarmos no grande prédio de pedras brancas que com muito esforço construímos no alto de nossa cidade, ele deveria ser o símbolo de tudo que conhecemos, mas infelizmente se tornou tão somente o símbolo da ganância das parasitas.”



Depois que se alimentaram e descansaram, o Professor, Franz e Valkíria saíram para mais um encontro com todos os conhecidos, mas dessa vez era um encontro diferente.

Pela primeira o Professor saiu com um livro nas mãos, era o mesmo que Franz viera a ter contato muitos séculos depois em um mundo que pelo seu desejo nunca deveria ter existido.

Era também a primeira vez que não se encontrariam naquela grande construção de pedras brancas, ao invés de seguirem a ladeira que dava acesso a ela, caminharam por uma trilha nos limites da cidade, floresta adentro.

Depois de algumas horas de caminhada subiram uma montanha, ao chegarem a uma plataforma se depararam com inúmeras cavernas, lá muitos já os aguardavam. Franz nunca tinha se deparado com um grupo tão grande de pessoas.

Logo descobriu que era um encontro de diversos sábios como o Professor e seus seguidores.

Gentilmente o professor pediu aos demais que aguardassem e solicitou a Valkíria e Franz que os acompanhassem ao interior de uma das cavernas.

Assim que entrou Franz ficou deslumbrado suas paredes eram cobertas por mosaicos feitas com minúsculas pedras coloridas.

Valkíria explicou que os mosaicos contavam a história de como tinha iniciado a construção das cidades.

No centro da caverna havia uma grande mesa talhada com a mesma pedra branca da qual as cidades eram construídas, em volta dela havia vários senhores da mesma idade do Professor.

O discurso foi breve.

“Como há tempos sabemos chegou o dia de reunirmos todos os conhecimentos que produzimos e guardá-los em lugares seguros para que os administradores não tenham mais acesso a eles.”

Ao terminar a fala os Professores depositaram sobre a mesa livros semelhantes ao que ele trouxera.

“Não é seguro que fiquem aqui, os administradores sabem o que fazemos e conhecem esse lugar.

Devemos trocar o que fizemos e deixar em poder de nossos jovens seguidores para que eles levem todo esse conhecimento para algum lugar distante para que um dia possam ser utilizados por pessoas bem intencionadas.

Os aprendizes não devem retornar, pois o conhecimento mais precioso é aquele que eles mesmos constituíram, nossos livros nada mais são um reflexo do que na realidade aprendemos com eles.

Por isso eles devem seguir para outros lugares, distante de nossas cidades que se tornaram um antro de parasitas.

É importante que eles se mesclem, levando tudo que criamos que ainda não foi subtraído pelos administradores, pois assim ampliarão ainda mais tudo o que aprenderam.

Devemos voltar sozinhos, sem nossos livros às nossas cidades.”

Quando terminou sua fala lágrimas escorriam dos olhos de Valkíria.



Quando quase todos já tinham ido embora o Professor dirige sua fala a Valkíria que estava junto de Franz.

- Valkíria, é chegada a hora de nos despedirmos, segue adiante com Franz, leve nosso livro para algum lugar distante, seguro.

- Não professor, não vou embora, voltarei com você à nossa cidade.

- Creio que não mais podemos chamá-la de nossa cidade, há muito ela nos foi subtraída, ainda que tenha sido construída com o trabalho de todos, exceto por aqueles que hoje a detém. Creio também que não adianta insistir com você.

- E você Franz, aceita levar o nosso livro para quem possa usar nosso conhecimento com dignidade.

- Professor, seus seguidores já o conhecem muito antes de eu chegar a essa cidade, já começava a me sentir parte dela, ainda que pouco a conheça, mas infelizmente parece que estava enganado, acho mais correto que esses que o acompanham há tanto tempo fiquem com essa preciosidade, eu ficarei junto à minha doce Valkíria, sempre.

- Parece que de nada adiantará argumentar com vocês, mas de qualquer forma muito em breve teremos de nos separar, acredito que não chegarei a entrar mais em minha casa.

Depois que o Professor deixou o livro com seus seguidores, em passos lentos e em silêncio, Valkíria, Franz e o Professor seguiram pela Trilha em passos lentos, em direção à sua casa.



Já nos limites da cidade Franz notou que ela estava diferente, era a primeira vez que a via desse jeito, mas Valkíria e principalmente o Professor não se mostraram surpresos.

Nessa parte da tarde quando o sol já não estava tão forte era comum as pessoas estarem caminhando pelas ruas, apreciando as companhias, mas aparentemente todos tinham se recolhido às suas casas mais cedo nesse dia, por outro lado havia muitos soldados, nitidamente procuravam por alguém.

Não demorou para que Franz percebesse que eles procuravam pelo Professor, não teve como evitar de pensar no tempo de antes de vir a esse mundo, quando ainda vivia nas trevas.

Vendo tantos soldados pela primeira vez, ficou claro que eles existiam tão somente para proteger e defender os interesses das parasitas, e pessoas como o Professor e seus discípulos eram sempre um risco para elas.

No antigo mundo de Franz não havia lugar para pessoas como o Professor, quando alguém tinha idéias semelhantes às deles, não tardavam por desaparecer e, em outras situações os diagnosticavam como loucos, e eram internados para supostamente serem tratados, mas eles nunca voltavam dessas casas destinadas ao tratamento deles, que ficavam distante de todos, e o contato com eles era proibido.

Ao se defrontar com o número crescente de soldados Valkíria se dirigiu ao professor na tentativa de o convencer a retornar para a Trilha e ir junto com seus seguidores para algum lugar distante, ainda havia tempo para isso.

- Não minha cara Valkíria, aqui é o meu lugar, eu estive aqui durante a construção de todas as casas, praças, locais públicos, esse é o meu lugar, quando nasci tudo à nossa volta era uma floresta até as margens do oceano, inclusive os navios que levam e trazem coisas para a nossa cidade eu os vi sendo construídos, mas gostaria muito que você e Franz fossem embora junto com nossos amigos.

- Não Professor ficaremos juntos.

- Temo que o que venha acontecer a mim também queiram o mesmo a vocês, mas de qualquer forma creio que muito em breve nos separaremos.

- Não vamos te deixar, é para ficarmos juntos.

- Minha Valkíria, sempre foi muito difícil argumentar com você. Caro Franz peço encarecidamente que cuide de Valkíria.

- Professor, sinto que eu e Valkíria somos feitos da mesma essência, foi ela que me encontrou, parece que ela sempre me encontra, mesmo quando vivemos em tempos diferentes, ficaremos juntos, sempre.



Quando estavam a algumas quadras de casa foram cercados pelos soldados, mas eles não tinham interesse em Franz e Valkíria.

O professor deixou-se levar sem nenhuma resistência, nem mesmo uma tentativa de argumentar, Valkíria ficou transtornada, mas quando tentou forçar o Professor lhe dirigiu a palavra.

- Minha cara Valkíria, agora não há o que fazer, os soldados não estão me levando por vontade própria, é improvável que eles a tenham, tudo o que fazem é cumprir as ordens dos administradores, se eles estão me levando é tão somente para atender os caprichos deles.

- Agora procurem descansar, amanhã procurem por um dos administradores que conhecemos, talvez ainda lhes reste alguma dignidade.

Quando chegaram em casa Valkíria estava em prantos e Franz já não sabia como consolá-la, só depois de tomar uma dose generosa de água suas lágrimas cessaram.

Ela e Franz sabiam que o Professor tinha razão, não havia o que fazer nesse momento, tudo o que podiam era esperar o dia amanhecer e buscar pelos conhecidos entre os administradores, mesmo com a repulsa que essas criaturas representavam.

Valkíria não conseguiria dormir naquela noite, já Franz tinha uma fisiologia diferente, diante de um stress significativo sua energia vital ficava muito reduzida e era muito difícil manter os olhos abertos.

Não demorou para que Franz se sentisse demasiadamente cansado, não tinha relação com as horas de caminhada que ocorreu durante o dia, mas sim na tentativa de resolver algo que naquele momento era insolúvel.

Exausto acabou por adormecer no colo de Valkíria que nem conseguia piscar os olhos.

Não demorou e já não se ouvia mais os soldados caminhando pelas ruas, já tinham cumprido as suas ordens, como não tinham nenhum compromisso para com os habitantes da cidade retornaram aos seus lugares para cumprirem seus únicos objetivos, proteger as parasitas.



Quando os primeiros raios de sol entraram pela janela Franz despertou, ainda estava no colo de Valkíria, que adormecera sentada.

Assim que Franz começou a se mexer ela acordou assustada.

Valkíria olhou demoradamente cada espaço da casa, o vazio era imenso, sempre quando se levantava e preparava algumas frutas e a preciosa água para iniciarem o dia ela via o Professor em sua mesa, que a cumprimentava com os olhos e às vezes a apreciava demoradamente, mas nesse dia, além dela e Franz a casa estava vazia.

Naquele momento a pequena casa se tornara demasiadamente grande, o vazio parecia atingir o infinito.

Um relance de tristeza atingiu a sua mente, olhava em direção à mesa do Professor, mas tudo o que podia ver era o vazio.

Acompanhou Franz que comeu uma pequena porção de frutas acompanhadas de um copo de água, mas diferente dos outros dias, naquele Valkíria apreciou apenas um pouco de água.

Assim que terminaram se levantaram em silêncio, sabiam o que os esperava no dia que seria longo, mas ainda assim fariam o que estava ao alcance, mesmo sabendo da impossibilidade de conseguirem qualquer resultado.

Já no pequeno quintal Valkíria uma vez mais olhou para a casa na qual passara toda a sua vida, sentia que não mais voltaria a ela.



Quando saíram as ruas ainda estavam desertas, só um pequeno cachorro com carinha de gente desconfiada estava nas proximidades, que ao ver Valkíria e Franz os acompanhou, mas quando chegaram no lugar que era o domínio das parasitas, não permitiram que o pequenino entrasse, parece que aquele lugar não admite seres que não têm potencial para a maldade.

Valkíria e Franz também tiveram dificuldades para entrar, o primeiro segurança com que se depararam antes mesmo de ouvir o que tinham a dizer falou que eles não poderiam passar, só depois de muita insistência esse segurança os encaminhou a um outro segurança com uma patente maior.

Curiosa essa peculiaridade das parasitas em todos os seus domínios têm necessidade de patentes, sempre tem um superior, alguém que pode mais e que invariavelmente é o que sabe menos, o princípio da igualdade parece ser uma impossibilidade aos parasitas.

Depois de terem deixado Valkíria e Franz esperando no maior desconforto possível, sem qualquer informação plausível, no fim do corredor eu que aguardaram, surgiu uma parasita que Valkíria conhecia de vista, algumas vezes vira essa dialogando com o Professor.

Essa era uma daquelas parasitas que não usam uniformes, mas que andam sempre com túnicas impecáveis, confeccionadas com os melhores panos.

Quando se aproximou e viu o desespero no olhar de Valkíria, imediatamente chamou a atenção daquela parasita que tinha uma patente superior, que com uma voz tremula tudo o que respondeu foi “sim senhor”.

Polidamente pediu a Valkíria que o acompanhasse, sem nem ao menos dirigir um olhar a Franz, ao chegarem a uma sala suntuosa toda recoberta com mármores brancos polidos e repleta de adornos, educadamente pediu que aguardassem só mais uns instantes.



Valkíria continuava apreensiva e Franz não conseguia acalmá-la, a angústia dominava a sua mente, sentia uma grande necessidade de estar com o Professor, temia pelo que fariam a ele.

Quando a parasita conhecida retornou informou que embora não fosse permitido havia conseguido uma forma para que ela pudesse ver brevemente o Professor, mas infelizmente haveria um pequeno custo para isso.

Curiosa a forma como as parasitas sempre conseguem fazer algo que não é permitido, e sempre é uma questão de o quanto se pode pagar.

Valkíria e Franz pouco tinham de material nada que fosse além das roupas que vestiam, mas ao ouvir o pouco que a parasita se referia simbolizava o valor da casa em que viviam.

O desespero tomou conta de Valkíria era o lugar que tinham para viver.

Nesse momento Franz intercedeu.

- Minha doce Valkíria, esse encontro é muito importante para você, talvez a coisa mais importante que haja no momento além de nossas vidas. Dê a casa a ele, pouco importa. Pelo que vínhamos conversando com o Professor quando estávamos retornando não mais poderemos ficar aqui, teremos que achar um outro lugar, só espero que possamos levar junto o Professor.



Valkíria e Franz foram até uma sala que estava com a porta fechada, acompanhados pela parasita.

A porta estava somente encostada e não tinha ninguém vigiando, a parasita não quis entrar, mas os alertou que poderiam ficar por apenas alguns instantes.

Sentado em um canto da sala em um pequeno sofá estava o Professor que ao vê-los esboçou o seu sorriso costumeiro. Sua primeira fala foi:

- Mas porque vocês vieram aqui, não sabem que estão colocando suas vidas em risco.

Valkíria respondeu.

- Sim, sabemos, mas não podíamos deixá-lo, por favor, vem com a gente, não será difícil escaparmos daqui.

- Minha querida Valkíria, Franz, não posso. Não percebe que é exatamente isso que as parasitas desejam que eu faça.

- Não entendo, então porque não vem.

- Eles querem continuar subtraindo todos os conhecimentos que produzimos, para unicamente usarem em benefício próprio, se eu fugir com vocês, eles continuarão a me perseguir e a todos que conhecemos.

- Mas podemos ir para algum lugar distante, onde não nos conheçam e aos poucos constituiremos um novo lugar para viver, longe das parasitas, com o que conhecemos hoje podemos evitar a presença delas.

- Não minha querida, esse é um outro lado do desejo das parasitas, se fizer isso farão com que eu me pareça com um covarde e assim tudo aquilo que constituímos será perdido, tudo cairá no esquecimento.

- Mas Professor, se ficar eles o matarão.

- Minha doce Valkíria, é isso que espero, já sou um homem velho, de qualquer forma tenho pouco tempo de vida nesse mundo, nesse momento eu nada sei que possa interessar às parasitas, tomamos os cuidados para que eu não soubesse as Trilhas que os nossos seguidores caminhariam difundindo aquilo que aprendemos, assim nada há que eles possam subtrair de mim.

- Mas professor.

- Sem mas, morrendo aqui do jeito que as parasitas farão por não poderem subtrair de mim aquilo que desejam, todas as idéias que criamos se imortalizarão para aqueles que ainda virão. Não vê que Franz é a prova de que tudo o que construímos em nossa época sobreviveu.

- Professor...

- Minha querida, não há o que fazer aqui, por favor vão embora, levem consigo tudo o que sabem, isso talvez seja o que há de mais importante nessa vida. Vão antes que a vida de vocês também seja subtraída. Às parasitas nada mais ficará além daquilo que elas já nos subtraíram, como não têm dignidade para usar as coisas com sabedoria em muito pouco tempo tudo aqui cairá no esquecimento, mas as coisas importantes seguirão com vocês e todos os nossos conhecidos.

Valkíria e Franz saíram em silêncio e com passos lentos da sala que o Professor passou seus últimos momentos, ao saírem da casa da parasita lágrimas ainda escorriam dos olhos de Valkíria.



Quando chegaram à rua o cachorrinho que os acompanhara estava aguardando, assim que os viu tentou empinar as orelhas, mas as pontinhas delas continuaram dobradas, eram grandes para que conseguisse empiná-las totalmente.

Valkíria estava se sentindo desorientada, não sabia para onde ir, agora já não tinha uma casa onde ficar e, mesmo que tivesse seria triste demais ocupá-la sem aquele que de fato era o dono dela estivesse lá.

Ainda todos os amigos que tinham foram embora para não serem perseguidos pelas parasitas.

Sentiu como se estivesse vagando pelas ruas, sem um lugar para ir.

Em pouco mais de uma hora o dia iria findar, e com ele uma parte da história de Valkíria e Franz.

O cachorrinho com carinha de desconfiado continuava sempre há alguns passos à frente deles, quando se distanciava um pouco, parava e ficava esperando por eles com a rabo abanando.

Quando se aproximavam Franz acariciava de leve a cabeça do pequenino e ele parava de abanar o rabo.

Em seguida em passos rápidos disparava à frente deles.

Franz ficou com a impressão de que ele desejava levá-los a algum lugar.



Quando o sol estava próximo à linha do horizonte os três estavam no limite da cidade, à frente além da floresta apenas uma Trilha se desenhava à frente deles.

Sem um rumo certo e sem um lugar para ir Franz e Valkíria continuaram seguindo o pequeno Desconfiado.

Ao chegarem no topo de um pequeno morro se viram acima da cidade que até então os abrigara, mas que já não era o lugar deles.

O sol já não podia ser visto, estava abaixo da linha do horizonte, deixando como sua marca um céu avermelhado em cima do oceano, da cidade se destacava a grande construção de pedras brancas, onde o Professor e seus discípulos sempre se encontravam todas as noites para conversarem sobre seus conhecimentos.

Uma lágrima escorreu dos olhos de Valkíria, ela sentia que o Professor já não estava mais entre eles.

Por outro lado suas idéias se imortalizariam com o seu gesto ao se entregar sem resistência às parasitas, com letra minúscula mesmo.

Sem mais o que fazer Valkíria, Franz e o pequeno Desconfiado seguiram pela Trilha que além do pequeno morro se escondia por baixo de uma densa floresta.

A Trilha se escondia além dos limites da cidade para que nenhuma parasita tomasse conhecimento de sua existência, não era um lugar para elas.

Com a ausência do Professor e dos inúmeros sábios como ele, acompanhado de seus seguidores muito em breve a cidade de pedras brancas perderia o seu brilho, deixando em seu lugar construções que mais se assemelhavam a ruínas, uma cidade que as parasitas mereciam.

Triste aos pobres e miseráveis que com a ausência dos sábios a cada dia se tornariam mais pobres, mas caberia a eles achar caminhos para se desvincularem das parasitas e constituírem um mundo digno para eles mesmos.

Assim que Valkíria e Franz desceram o morro a floresta os envolveu e, cada passo que davam floresta adentro, a Trilha por traz deles era fechada, inicialmente por arbustos, mas era só se afastarem um pouco mais que imensas árvores cresciam entre os arbustos, fechando totalmente a passagem que dava acesso à cidade.

Ainda que o céu estivesse limpo, sem nuvens, a Trilha estava imersa na escuridão, apenas uma tênue luz azulada da Grande Estrela Azul conseguia passar por entre as folhas das grandes árvores que envolviam a Trilha.