domingo, 23 de setembro de 2012

Esquecidos - Parte VI.





Valkíria foi a primeira a despertar, assim que acordou e se mexeu um pouco o cachorro de Franz que tinha se aninhado em seu colo levantou a cabeça e ficou fitando-a nos olhos.

No mundo dos Preocupados durante muito tempo eles acharam que os animais eram irracionais, desprovidos de inteligência, mais tarde descartaram essa hipótese pois começaram a notar que não só eram inteligentes, como também tinham sentimentos.

Depois chegaram à conclusão que o que os diferenciava dos animais é que eles não eram providos de consciência.

Curioso é que muito antes de terem chegado a essa conclusão, uns poucos entre os preocupados já sabiam que se o psiquismo humano fosse um oceano, a consciência não seria maior do que uma pequena ilha perdida nesse oceano, talvez até menos perdida do que o nível de consciência que os Preocupados no geral tinham obtido em toda a sua existência.

Qualquer ser dotado de alguma inteligência que pudesse observar Valkíria e o grande cachorro de pelos escuros se fitando nesse momento, saberia que estavam lendo os pensamentos, tocando as suas almas, bem de leve, para não incomodar aqueles que ainda estavam adormecidos.

Valkíria, Franz, e todos que fazem parte da Casa do Gramado, não davam maior importância às classificações que os Preocupados insistiam em fazer, para eles, todos os seres são partes de um todo, um Universo infinito, vivo, pulsante.





Quando Franz acordou Valkíria já não estava mais ao lado dele, tinha ido ver a luz do dia do lado de fora da construção circular, muitos dos Esquecidos caminhavam pelas ruas, sempre atentos ao céu, ao vê-la só acompanhada pelo cachorro que permanecia ao seu lado, um pequeno grupo a rodeou, com gratidão o cão aceitava as carícias e atenção que lhe eram dispensados.

Franz se deteve por alguns instantes frente à parede de pedras que dias atrás Valkíria começara a polir, não demorou a perceber que não se tratava de uma pintura, pequenas pedras coloridas tinham sido incrustadas nas pedras maiores, formando um mosaico, ficou refletindo que as pessoas que tinham se dado a esse trabalho, o fizeram para que durasse muito, tanto quanto uma pedra poderia durar, sem dúvida era uma obra de arte lindíssima.

Os Esquecidos que estavam no interior da construção estavam vivendo uma experiência nova, ao menos para eles, ainda dormiam profundamente. Para não incomodar, Franz com o pequeno cachorro de Valkíria no colo, saíram à procura dela.

Na entrada da construção Franz a encontrou rodeada por um grupo de Esquecidos, que a observavam aparentemente sem compreenderem, com um pequeno pano ela estava retirando como podia a poeira que há muitos anos se acumulara nas pedras polidas da grande construção circular.

Franz se juntou a ela, com o intuito de a ajudar, diante da cena, os Esquecidos com a sua destacada característica de sociabilidade, ainda que sem compreenderem, se juntaram a eles.

Não demorou e as pedras coloridas incrustadas nas maiores começaram a revelar o mosaico.

Por um momento Franz e Valkíria se afastaram um pouco para apreciarem as figuras que surgiam, aos poucos os Esquecidos que estavam no interior da construção, foram acordando e, ainda que igualmente sem compreenderem,  se juntaram ao grupo que limpava as paredes.

Ao olharem-se nos olhos, Valkíria e Franz emitiram uma intensa luz azul, estavam lendo pensamentos, interromperam momentaneamente suas atividades, e junto aos Esquecidos voltaram ao interior da construção para se alimentarem e apreciarem a preciosa água.

Eles tinham assimilado o modo de se comunicar dos Esquecidos, olhavam-se intensamente, seus olhos brilhavam, compreenderam que os mosaicos não eram só uma obra de arte, eles contavam a história de toda uma civilização, tratava-se de um texto, escrito em uma linguagem universal, a ser transmitida a todos os povos.

Uma história mergulhada nas profundezas da mente de um povo que dado à precariedade e fragilidade de seu mundo tinha caído no esquecimento.






Depois de terem se alimentado e apreciado a preciosa água eles voltaram a limpar as paredes, alguns grupos de Esquecidos que caminhavam pelas ruas também se juntaram aos demais, enquanto outros se ocupavam observando o céu e, outros ainda, traziam alimentos e água para aqueles que estavam limpando as paredes da construção.

Em todos os espaços havia alguém polindo as paredes, já não havia mais espaço para que outros se juntassem a eles.

Pouco antes de anoitecer praticamente todas as paredes já revelavam seus mosaicos, tinha chegado o momento de irem descansar.

As imagens que se desvelavam contavam a história de toda uma civilização há muito esquecida.

Cansada Valkíria começou a ler os mosaicos, praticamente eram auto-explicativos, mas todos precisavam se alimentar e dormir.

Quando o dia amanhecesse cada um que tinha participado desse trabalho teria um sonho novo, diferente do cotidiano, brilhando em seus olhos.

Breve o mundo dos Esquecidos teria uma história revelada.

À medida que adormeciam uma luz azul escura encobria, ainda que parcialmente as luzes do céu que mesmo quando deveria ser noite apresentavam um brilho intenso.

Muitos asteróides que refletiam as luzes das estrelas, pareciam ter-se afastado ligeiramente e deixaram uma brecha no céu, revelando a escuridão do Universo e o brilho tênue de estrelas distantes.

A mais distante de todas com luz azulada, iluminava brandamente a construção circular que agora reluzia.

Já dormindo as faces de Franz e Valkíria eram banhadas pela luz azul, que mergulhados em um sonho profundo flutuaram pouco acima do centro da construção na qual trabalharam o dia todo.





Franz e os Esquecidos partilhavam sonhos semelhantes, eles se remetiam às imagens que se desvelaram à medida que a poeira era removida da construção circular, mas Valkíria sonhava com um tempo remoto, na época em que vivia em uma grande casa com uma janela que fazia frente a um jardim.

Sentada em um sofá folheava um livro, enquanto apreciava o jardim além da janela, esse livro só tinha imagens, eram mosaicos feitos com pedras coloridas, incrustadas em grandes paredes de pedras polidas.

No jardim via Franz, mas na época, como os Esquecidos não se recordava de que um dia tinham vindo da mesma estrela, a Grande Estrela Azul.

Atrás de si ouvia a música vinda de um piano, havia uma festa, de alguma forma ela sabia ser o centro dessa festa, mas seu desejo não era participar dela, sua atenção estava voltada à pessoa que no jardim fazia esboços em grandes papéis, da casa e seus arredores.

Em um momento ouviu a chamarem pelo nome, mas sentia o corpo paralisado, não conseguia se mexer, sentia-se em um tipo de transe.

Percebeu quando a festa foi interrompida e a música cessou,  várias pessoas ficaram ao seu redor, ouvia essas tentando falar com ela, Valkíria tentava se comunicar, mas a sua voz ficou sufocada em seu peito.

Não demorou e o médico da família chegou para socorrê-la, levada ao seu quarto, dormiu profundamente, o médico não tinha dúvidas, na época Valkíria era jovem e pelo que a medicina podia revelar seu corpo gozava de plena saúde.

Os Preocupado sempre tiveram uma peculiaridade, o hábito de classificar tudo, o corpo de Valkíria gozava de saúde... Como se o corpo pudesse ser separado de todos os demais elementos que compõe a vida.

Felizmente para Valkíria e para os Preocupados que vieram nas gerações seguintes, o médico tinha uma visão diferente da medicina de sua época, ele sabia que os sonhos, sentimentos, emoções... Também tinham uma função essencial na vida das pessoas.

Depois desse episodio Valkíria se tornou uma confidente desse médico, que confiou a ela conhecimentos que vinham de um continente distante, junto com o médico ela transcreveu esse conhecimento, deixando-o disponível às gerações que seguiriam, contando para isso com a ajuda de Franz, que só teria contato com tudo que ela transcreveu e criou, muitas décadas depois.

Valkíria despertou no meio da noite, lembrou-se nitidamente de seu sonho e da época que vivia na grande casa da janela que dava vista ao jardim.

Naquele tempo se sentia deslocada, como se não fizesse parte daquela época, ela sabia que faltava algo aos Preocupados, algo que eles procuravam incessantemente e que estavam impossibilitados de encontrar, uma vez que o que eles tanto necessitavam não podia ser encontrado fora deles, a falta que sentiam era da própria essência.

Da mesma forma, agora no mundo dos Esquecidos ela sentiu que ainda faltava algo a ser revelado, percorreu todas as paredes do interior e exterior da construção circular, mas não conseguiu identificar o que faltava.

Franz e os Esquecidos ainda dormiam profundamente, uma tênue luz azul cobria uma grande face do planeta.

Do lado de fora, a noite parecia mais escura do que até então tinha presenciado desde que tinha chegado a esse mundo, no horizonte, muito distante a luz da Grande Estrela Azul refletia na face de Valkíria.

Mais do que pensar, ela sentia a vida que pulsava intensamente ao seu redor.





Ainda que de forma lenta e gradual os Esquecidos estavam experimentando uma forma nova de viver, leves lembranças começavam a refletir faces que até então eles desconheciam.

Já há alguns dias não eram assolados por nenhuma queda de meteoros, ainda não tinham se dado conta, mas as noites começavam a ficar levemente mais escuras.

Não demorou e outras construções começaram a ser limpas e a revelarem seus mosaicos, todas elas contavam a mesma história, se havia diferenças eram demasiadamente tênues.

Ainda que sentisse falta de algo que não sabia explicar Valkíria começou a interpretar os mosaicos, Franz a acompanhava, e os dois cachorros também participavam, eram sempre boas companhias e queriam ajudar em tudo.

Os Esquecidos também auxiliavam já não pareciam mais aqueles que há poucos dias denotavam não compreender o que estava acontecendo.

Em muito pouco tempo todas as construções circulares estariam revelando a história de uma civilização há muito esquecida no tempo.

Franz e Valkíria tinham adquirido o modo de comunicação dos Esquecidos, já não precisavam mais das palavras, até mesmo os dois cachorros já não emitiam sons, mas seus olhares eram cada vez mais profundos, quando se fitavam seus olhos brilhavam intensamente, entre eles o olhar, a presença, traziam em si significados que as palavras já não podiam mais revelar.

Ao anoitecer, os Esquecidos que ocupavam as construções circulares mais distantes também adquiriram o hábito de visitar o mundo dos sonhos, aprendido inicialmente na construção em que Valkíria começou a polir as paredes.

E as noites se tornavam cada vez mais escuras. A Grande Estrela Azul, localizada próxima ao infinito brilhava intensamente, iluminado a face de todos que tinham adquirido o hábito de dormir, mas muito próximo havia uma outra grande Estrela, que a cada noite, na escuridão do Universo parecia crescer mais.

Quando estavam adormecidos a luz azul que emanava das construções circulares se tornavam cada vez mais intensa, envolvendo partes cada vez maiores do planeta.





Os mosaicos presentes nas paredes externas da construção revelavam um mundo repleto de estrelas, Valkíria ficou confusa, mas com a ajuda de Franz concluíram que talvez fossem mapas, revelavam o céu, mas pelo menos os mosaicos próximos à entrada não se assemelhavam ao céu que estavam acostumados a presenciar.

Já os mosaicos no interior nitidamente contavam histórias. Os Esquecidos não se cansavam de apreciá-los.

 Junto à entrada, no interior, um primeiro quadro mostrava pessoas aparentemente se despedindo, eram muitas, enquanto uma parte delas ficavam imóveis, exprimindo uma certa tristeza, os demais se projetavam aos céus, desaparecendo lentamente.

Aqueles que ficavam se juntavam em pequenos grupos, eles juntavam pedras e arquitetavam construções, eram as construções circulares sendo erguidas, à medida que as paredes eram levantadas, utilizando pedras menores, as pessoas as poliam, até que ficassem lisas e outros, usando objetos pontiagudos, faziam pequenos buracos nas pedras polidas, uniformes e com os mesmos tamanhos, seguindo esses, outros encaixavam pequenas pedras coloridas que formavam as figuras que agora Valkíria buscava compreender.

Depois que as pedras coloridas estavam encaixadas outros vinham na seqüência polindo-as, deixando a parede lisa e uniforme, Valkíria, Franz, os dois cachorros e também os Esquecidos observavam maravilhados todo esse trabalho.

Esse primeiro mosaico estava ensinando às pessoas como edificar essas construções, os detalhes impressionavam, Valkíria ficou confusa, pois não se tratava apenas de uma história de como era feita a construção, mas Franz a complementava, nos detalhes constava um tipo de esboço, com medidas precisas, apontando as formas e dimensões da construção toda, o nível de detalhes denotava que deveria haver algum propósito, nessas formas e dimensões, além do aproveitamento de terreno.

Franz pensou que seria interessante ver outras construções circulares para verificar se seguiam o mesmo padrão, enquanto Valkíria continuava tentando interpretar os mosaicos.



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