sábado, 9 de outubro de 2010

Trilha dos Desejos.



Parecia ser uma manhã como outra qualquer no pequeno vilarejo Trilha dos Desejos, quando o sol estava para nascer as pessoas que acordam mais cedo começavam a caminhar com a calma que lhes era habitual pelas ruas de terra batida já há tanto conhecidas, só um de seus moradores tinha sido acordado quando ainda era madrugada.

Contrariado, após insistir em fazer seu carro funcionar sem qualquer sucesso resolveu desistir, pegou umas poucas ferramentas e se dirigiu à casa de um cliente conhecido, que o tinha acordado pedindo ajuda pois precisava ir à cidade e seu carro não estava funcionando, dizia não entender, pois no dia anterior não tinha qualquer problema.

Enquanto caminhava se questionava por não dar atenção ao seu próprio carro, do qual necessitava para seu trabalho, enquanto rotineiramente fazia manutenção, nos demais veículos do vilarejo, quando falou para si mesmo que em casa de serralheiro o espeto era de pau.

No caminho tinha sido parado por outros conhecidos com problemas semelhantes, e ficou se perguntando o que estava acontecendo, mas ficou satisfeito, afinal o trabalho era bem vindo.

Depois de chegar ao seu destino, após várias tentativas frustradas disse ao seu cliente que precisava levar o carro à oficina, para um exame mais detalhado e, quando conseguisse consertar o dele próprio viria buscar o outro para poder fazer o trabalho.

Inconformado, mas diante da necessidade, o cliente desistiu momentaneamente de ir de carro à cidade e como a maioria dos que moravam na Trilha dos Desejos, que não tinham carro, pela primeira vez resolveu ir à cidade com o único ônibus disponível no vilarejo.
 
 
Trilha dos Desejos é um pequeno vilarejo que mesmo quando ainda não constava nos mapas, já existia há muito tempo, uma cadeia de montanhas de difícil acesso o separa das pequenas cidades que o circundam ao pé da serra. Entre essas montanhas localiza-se um pequeno planalto, onde o vilarejo se formou.

Circundando o vilarejo pequenos sítios mantinham uma produção suficiente para aqueles que cuidavam da terra e o excedente era levado a Trilha dos Desejos onde seus habitantes se encontravam para realizar suas festas e trocar o que produziam.

Entre as muitas trilhas existentes na cadeia de montanhas, córregos de águas cristalinas corriam e formavam pequenas cachoeiras, descendo a serra os inúmeros córregos se juntavam formando um rio de águas límpidas que poderia suprir as pequenas cidades que rodeavam as montanhas, mas ao pé da serra as águas já se encontravam comprometidas, há muito não eram usadas pelas crianças para nadarem e se divertirem, dizia-se ser resultado do des-envolvimento.

Trilha dos Desejos também perdia suas características, nos finais de semana e feriados muitos vinham de longe conhecer suas cachoeiras e trilhas, os pequenos sítios estavam se tornando um lugar para esses que vinham à procura de distração nos finais de semana. Eram poucos aqueles que ainda iam ao vilarejo para trocar o que produziam, mas durante a semana tudo ficava muito vazio e podia-se andar tranquilamente, mesmo no meio das pequenas ruas.
 
 
Após percorrer uns poucos quilômetros, já nos limites de Trilha dos Desejos, o ônibus estava irremediavelmente cheio, as pessoas se apertavam em seu estreito corredor, parece que hoje todos tinham resolvido deixar seus carros e irem à cidade de ônibus.

É curioso essa necessidade de as pessoas precisarem se deslocar de um lugar para outro, será que elas sabem os por quês dessa rotina, enquanto realizavam trabalhos em outros lugares, nas cidades vizinhas, aos poucos seus próprios espaços iam ficando abandonados.

Pequenos sítios antes destinados à produção para a subsistência, aos poucos iam ficando perdidos no mato, outros se transformavam em pequenas vilas, com casas muito próximas umas às outras e nelas iam habitando um sem número de outras pessoas que também precisavam se deslocar para locais ainda mais distantes, para realizar rotinas de difícil compreensão, que provavelmente nem elas próprias tinham noção do que produziam nesses lugares distantes.

Outros ainda se transformavam em pequenos hotéis, principalmente aqueles que ficavam próximos às cachoeiras, que cercavam seus terrenos, só permitindo àqueles que lá se hospedavam desfrutar de trilhas, cachoeiras e córregos, que não lhe pertenciam, e que aos poucos iam perdendo sua vida.

Curioso que essas pessoas deixavam seus próprios espaços e não cuidavam deles, e se deslocavam por longas distâncias para chegar a esses pequenos hotéis, deixando atrás de si, quando iam e quando vinham, longas trilhas de abandono.

Ao chegar à estrada asfaltada, o ônibus estava ainda totalmente cheio, até então ninguém tinha descido e não havia mais nenhum espaço para outros que aparentemente desesperados faziam sinal para que ele parasse, mas simplesmente não havia nenhum espaço.

Felizmente não tinha transito e o ônibus ainda que em sua velocidade reduzida rapidamente cruzava a estrada, na qual nesse dia em particular parecia não haver um único carro trafegando, e pelas calçadas muitas pessoas caminhavam.
 
 
Na cidade os ônibus circulavam totalmente cheios, e nas ruas muitas pessoas caminhavam, os poucos carros que estavam nas ruas ou estavam estacionados ou com seus capôs abertos, denotando problemas, mas felizmente não tinha nenhum trânsito e assim os ônibus conseguiam andar com maior velocidade.

Em frente a uma vitrine dessas lojas de eletrodomésticos as pessoas se apinhavam tentando ver e entender a curiosa notícias, parecia que em todos os lugares os carros simplesmente tinham parado de funcionar.

Alguns mecânicos entrevistados não sabiam explicar o curioso fenômeno, não fazia sentido, não conseguiam determinar qual era o problema, e por mais que se esforçassem, a maioria na própria rua, ou na casa de seus clientes, nada do que fizessem dava resultado.

Diziam aqueles que tinham oficinas mais aparelhadas que precisavam levar os automóveis para elas, afim de um exame mais detalhado, pois só conseguiam chegar nos lugares andando e assim só podiam levar umas poucas ferramentas, mas também não sabiam explicar pois alguns desses que estavam em suas oficinas já prontos, depois de uma revisão também não estavam funcionando.

Enquanto isso uma repórter tentava sem sucesso contatar os responsáveis pela indústria automobilística, mas não conseguiam chegar a eles, uma vez que esses moravam em condomínios distantes e não havia transporte público que pudesse nesse momento chegar a eles.
 
 
Nesse meio tempo na indústria automobilística, os únicos que conseguiam chegar a seus postos de trabalho eram os operários, entre eles poucos tinham automóveis e estavam acostumados com o uso de transporte público, interpelados por repórteres que conseguiram chegar às portas das fábricas nada tinham a dizer, além das queixas de que os ônibus estavam mais cheios do que o habitual.

Nesse dia nenhum daqueles que faziam parte da administração conseguiram chegar aos seus trabalhos, curioso que além do estranho fato que estava ocorrendo todos os setores produtivos da sociedade funcionaram normalmente, exceto na indústria automobilística, as máquinas utilizadas na confecção de carros parece que se recusavam a funcionar. Por outro lado os setores que produziam caminhões, ônibus, tratores, etc., funcionavam normalmente.

No final da tarde os jornais noticiavam que esse era um fenômeno mundial, equipes de engenheiros de todas a indústria automobilística estavam tentando se unir para resolver os problemas, mas até o momento, todas as suas tentativas tinham sido frustradas.
 
 
Meses se passaram e nenhuma solução foi encontrada, aqueles que tinham adquirido veículos recentemente tentavam colocar na justiça seus casos para que fossem ressarcidos, mas era inútil, não conseguiam dar andamento a nenhum processo pois desde o início do curioso fenômeno, aqueles que deveriam dar encaminhamento a esses processos não iam trabalhar, pois não aceitavam usar os transportes públicos.

No princípio diante da percepção que a produção de veículos destinados ao transporte público funcionava normalmente, algumas pessoas tentaram adquirir esses para uso particular, diante dessa possibilidade os empresários da indústria automobilística se entusiasmaram, pois esses veículos tinham um valor individual muito maior e se destinassem a produção para esses, os lucros atingiram patamares nunca antes vislumbrados.

Essa tentativa foi rapidamente frustrada, diante de qualquer iniciativa no sentido de transformar veículos públicos para atender necessidades particulares imediatamente as máquinas paravam de funcionar.

Diante de inúmeras frustrações os setores produtivos da sociedade começaram a se mobilizar para se adequar, ao menos momentaneamente, a esse novo jeito de o mundo funcionar.
Pairava no ar a impressão de que grandes transformações estavam para ocorrer.


Enquanto isso em Trilha dos Desejos, a vida transcorria com a tranqüilidade que lá era habitual, os pequenos hotéis estavam totalmente vazios, mas aqueles que viviam do que produziam não estavam tendo nenhuma dificuldade.

A vida pacata em Trilha dos Desejos parecia ser tão pacata quanto o era antes de ser procurada pelos turistas, inda que com o quase total fim do turismo a vida parecia melhorar por lá, do único ônibus antes existente, agora haviam cinco e locais antes abandonados pois seus donos tinham se voltado a atender os turistas, agora voltavam às suas atividades, plantando e cuidando de suas terras.

Os pássaros, peixes e outros animais silvestres que vinham rareando nas proximidades, dado a grande circulação de pessoas e dos carros que antes os assustavam fazendo com que se afastassem, agora estavam voltando e conviviam bem com as pessoas de Trilha dos Desejos, esses sabiam partilhar os seus espaços.

Alguns poucos turistas continuavam a freqüentar o vilarejo, mas esses como os moradores, animais, plantas, pedras, águas..., sabiam partilhar o espaço, eram pessoas que apreciavam caminhadas, outros que usavam bicicletas e ainda aqueles que usavam os ônibus, como os demais moradores.

A circulação de dinheiro tinha diminuído muito, mas curiosamente as pessoas que lá trabalhavam aumentaram seus rendimentos.

Acontece que os donos dos hotéis, restaurantes, comércio..., que lá estavam se fixando não eram residentes do vilarejo, e o lucro que tinham acabavam sendo desviados para os bancos e, em Trilha dos Desejos não havia nenhum, ainda as pessoas tinham deixado de trabalhar a terra e manufaturar o que precisavam pois se voltaram para o turismo que aparentemente pagava melhores salários, mas assim tinham que comprar alimentos, roupas..., das cidades vizinhas, e assim contraiam dívidas, pois acabavam gastando mais do que ganhavam.

Muito em breve dinheiro deixaria de ser um problema para todos.
 
 
Nas grandes cidades as manchas de fuligem que acompanhavam todo o horizonte, aos poucos começavam a dissipar, a produção industrial tinha diminuído vertiginosamente e consequentemente o volume de dinheiro em circulação também tinha diminuído, em proporções ainda maiores, ainda o desemprego estava assolando o mundo todo.

A imprensa escrita e falada já não se interessava mais pelos carros que não mais funcionavam, agora se ocupavam da crise econômica.

Ainda que os setores voltados ao transporte público estivessem precisando de trabalhadores, o desemprego estava crescendo vultuosamente, mas curiosamente parecia que as pessoas estavam vivendo melhor pelo menos economicamente, se por um lado a economia estava em recesso, por outro os gastos estavam se tornando irrisórios, uma vez que antes as pessoas gastavam a quase totalidade do que tinham para manter seus carros, agora esse dinheiro estava sendo desviado para atividades mais sadias.

Enquanto isso as delegacias apresentavam os mais baixos índices de criminalidade já registrados em sua história, os casos de roubos e assaltos praticamente tinham desaparecido, também os setores de segurança estavam com excesso de gente para trabalhar pois não precisavam mais cuidar da segurança do trânsito e assim podiam destinar essas pessoas para garantirem outros setores que necessitavam de segurança.

Termo estranho esse “Segurança”, o que será que isso significa? Logo esse termo precisaria de novas definições nos dicionários...
 
 
No final da tarde de domingo um sentimento de angústia se espalhava em todos os cantos, no último dia útil, na sexta feira, curioso esse termo “dia útil”, será que isso significa que o final de semana é inútil, estranho isso, em princípio as pessoas trabalham para que possam desfrutar de seu trabalho, e justamente os dias aos quais foram destinados a isso, são considerados inúteis, será que o conceito de utilidade está vinculado à capacidade de as pessoas ganharem dinheiro, chegando ao ponto de que os dias destinados a um descanso sejam considerados inúteis.

Oras se a finalidade do trabalho é podermos desfrutar dele, esse conceito deveria ser invertido, assim efetivamente os dias úteis seriam justamente os feriados e fins de semana, já os outros, os denominados “úteis” só teriam a finalidade de suprir aqueles aos quais são destinados ao descanso, lazer, passeios, convivência, etc.

Essa inversão de conceitos leva a inferir que a finalidade do trabalho não é levar as pessoas a desfrutarem de seus resultados, então, afinal qual seria a finalidade do trabalho.

É falso pensar que sua finalidade é suprir as necessidades humanas, para isso não seria necessário tanto trabalho e igualmente não seria produzido tantas coisas sem finalidade. Qual seria afinal a finalidade do trabalho.

Será que a angústia presente nos domingos à tarde teria ligações com esse trabalho que realizamos e parece que desconhecemos a sua finalidade.
 
No início da semana a sensação de mau estar presente até então parecia se concretizar, pela manhã nas cidades maiores, um grande número de pessoas parecia andar desorientada, de um lado para outro, sem saberem o que fazer, ou para onde ir, uma sensação de vazio parecia tomar conta de muitos.

Aqueles que deixaram para comprar o pão e o leite logo cedo sequer estavam conseguindo tomar o seu café matinal.

Os primeiros que chegaram às padarias e eram conhecidos conseguiram levar para casa o necessário para o seu café da manhã, mesmo sem poderem pagar, mas logo perceberam que não poderiam continuar com essa rotina, parece que nesse dia todos acordaram sem dinheiro.

Os ônibus que até então circulavam estavam parados, os funcionários não sabiam o que fazer.

Nesse dia as pessoas acordaram e todo o dinheiro que tinham nos bolsos, carteiras e bolsas, tinham se transformado em papel comum e estavam em branco, o mesmo tinha acontecido aos pequenos estabelecimentos comerciais, as cédulas que até o domingo à noite eram dinheiro, agora não passava de um papel em branco.

O mesmo tinha ocorrido com os cheques e os cartões eletrônicos, estavam todos em branco, sem nenhuma indicação, espaço para especificar valores, a data e a assinatura, não tinha restado nem a identificação da instituição financeira.

Instituição Financeira? O que seria isso? Não me recordo de ter ouvido uma definição do que isso viria a ser. Talvez seja só uma definição existente nas Universidades, nos cursos de economia e similares.
 
 
Com muita dificuldade umas poucas pessoas conseguiram chegar aos seus trabalhos, entre esses praticamente só aqueles que conseguiam chegar aos seus destinos sem o uso dos transportes públicos, nesse meio tempo um outro transporte estava se tornando popular, as bicicletas, que agora podiam circular pelas ruas e avenidas, sem os riscos que antes o trânsito representava, e aqueles que as usavam estavam conseguindo se locomover mais rapidamente que os automóveis mais potentes.

As notícias eram desencontradas, ninguém sabia explicar esse novo fenômeno.

As portas dos bancos estavam rodeadas por repórteres, aos poucos os funcionários que lá chegaram logo perceberam que não era um fenômeno isolado, os cofres estavam cheios de papel comum, no tamanho de cédulas, mas em branco.

Alguns chegaram a cogitar que teria ocorrido um grande assalto, porém essa hipótese logo foi descartada, não havia qualquer sinal de que isso pudesse ter ocorrido, ainda todos os dados, listagens, documentos..., estavam em branco, como as cédulas.

Os repórteres em volta aos bancos, insistiam em obter alguma explicação, mas desde que os carros tinham parado de funcionar, os responsáveis pela administração dessas “instituições” não iam trabalhar, e não havia ninguém com autorização para dar explicações ao público.

Instituição? O que seria essas instituições? Qual seria o seu papel? Muito estranho. Na ausência de uma denominação a partir daqui será denominada de “Paradoxo”.

Nesse dia os funcionários dos Paradoxos estavam desorientados, não sabiam mais os que fazer, não paravam de chegar queixas e os clientes exigiam explicações, alguns exaustos e já sem saberem mais como agir, estavam solicitando aos clientes que trouxessem ou últimos extratos que receberam para poderem atender às queixas, mas esses também estavam em branco.
 
Nas horas que se seguiram aqueles que antes tinham deixado de sair de suas luxuosas casas por se recusarem a utilizar os transportes públicos: administradores, banqueiros, fiscais, empresários, políticos; fizeram-se notar, estavam furiosos, queriam culpados e começaram a oferecer vultuosas recompensas a quem fornecesse informações que levassem a encontrar quem estava provocando esses fenômenos.
 
 
Em Trilha dos Desejos a vida pacata transcorria como se nada estivesse ocorrendo, a ausência dos carros e agora do dinheiro pouco ou nada tinha alterado a rotina dos residentes.

Os poucos políticos que por lá passavam, quando os carros pararam de funcionar não mais apareceram no vilarejo, o mesmo ocorreu com os empresários e administradores, já os fiscais antes do fenômeno não tinham o que fazer por lá e, desde então, sumiram de vez.

Fiscais! Ocupação estranha essa, será que existe alguma finalidade para essa ocupação? Para que eles servem? A quem servem? Será que o mundo precisa disso?

Agora que o dinheiro tinha desaparecido os ônibus que transportavam as pessoas até as cidades vizinhas, não mais foram até Trilha dos Desejos, deixando o vilarejo ainda mais isolado.

Agora só aqueles que gostavam de caminhadas é que iam para Trilha dos Desejos, alguns que visitavam o vilarejo e ficaram sem os ônibus para voltarem aos seus lugares de origem, resolveram ao menos momentaneamente ficar por lá mesmo, com o esvaziamento dos hotéis, estavam sobrando locais para as pessoas ficarem.

Em pouco tempo, esses começaram a se misturar com a população residente e a participar da vida produtiva do vilarejo, sobrava tempo para a convivência e para as pessoas se conhecerem.
 
 
As pessoas que habitavam o mundo que rodeava Trilha dos Desejos no geral estavam desorientadas, perplexas. A produção industrial tinha reduzido a índices até então desconhecidos, dizia-se que beirava a produção existente na Idade Média.

Por outro lado em alguns sentidos parecia que o mundo tinha melhorado muito, os índices de poluição não se tinha conhecimento desde que começaram a medi-la, de estarem tão reduzidos, a quantidade de árvores aumentava significativamente e com elas pássaros e animais que há muito não eram vistos reapareceram, inclusive às vezes andando livremente pelas ruas menos movimentadas.

Muitos que antes passavam quase o tempo todo trabalhando, agora se dedicavam a cuidar de si próprios, daqueles que os rodeavam e ainda do ambiente como um todo.

Talvez esse tenha sido um problema do mundo antigo, os governos aumentavam significativamente os impostos, dizendo que com a finalidade de cuidar do meio ambiente, como era meio, só o cuidavam pela metade, e provavelmente ninguém sabia o que era feito da outra metade que arrecadavam.

Agora com tempo disponível, pois não havia mais o por que de se trabalhar tanto sobrava tempo para cuidar do ambiente todo.
Estava tudo muito confuso, mas as pessoas, como a natureza; aliás, a própria natureza essa distinção pessoa/natureza é um outro paradoxo, nós só somos parte dela, como qualquer outra parte, nem mais nem menos que as demais partes; estavam se ajustando, só uns poucos estavam furiosos, recusavam o que estava ocorrendo, queriam culpados.
 
Desde que os automóveis pararam de funcionar ficou evidenciado três tipos de personalidades, no que se refere ao setor produtivo da vida, no antigo mundo.

A primeira delas, dizia respeito às pessoas que produziam pelo prazer, para melhorarem a sua própria condição e a do mundo que as rodeava, para essas, os lucros alcançados eram uma conseqüência de suas atividades. Essas pessoas não estavam tendo dificuldades maiores com as mudanças, e pouco ou nada tinha alterado em suas rotinas.

Um segundo tipo de personalidade era constituído por pessoas que tinham o lucro como um fim, viviam em função disso, essas estavam tendo dificuldades em conviver após as mudanças, estavam desorientadas, não sabiam o que fazer, praticamente tudo que produziam antes, não tinham qualquer finalidade, além de gerar lucros para elas próprias e, como o dinheiro tinha desaparecido, estavam perplexas e sem nada para fazer, parte dessas pessoas já estavam se engajando com o primeiro grupo e encontrando coisas mais úteis para fazer na vida, mas uma parte significativa delas ficavam vagando de um lado para o outro, procurando caminhos para que o mundo voltasse ao que era antes.

O terceiro grupo, era composto por pessoas que tinham um funcionamento muito parecido com o das parasitas, essas nada produziam, mas viviam criando artifícios para ficar com a maior parte do que demais faziam, sua especialidade era criar rotinas inúteis e altos tributos para alimentar seus luxos desnecessários. Essas estavam furiosas.
 
 
Aparentemente na natureza tudo tem uma função, até mesmo as parasitas. Em um corpo doente, enfraquecido, rapidamente as parasitas tomam conta dele e se fortalecem, enfraquecendo e adoecendo ainda mais o corpo enfermo, levando-o a uma morte rápida, aliviando assim o seu sofrimento, mas depois que o corpo morre, as parasitas também morrem, uma vez que elas não têm autonomia suficiente para sobreviver sem um corpo que as alimentem.

Em proporção semelhante se o corpo reage fortalecendo as suas defesas, ele começa a atacar as parasitas, levando-as à morte, em um corpo são há pouco ou nenhum lugar às parasitas.

Antes das mudanças, as pessoas que tinham funcionamento semelhante ao das parasitas, representava uma parte muito poderosa da população, praticamente eram elas que determinavam os caminhos que a sociedade deveria seguir, mas dado o seu funcionamento estavam levando o mundo a sucumbir.

Felizmente parece que as pessoas estavam encontrando uma nova forma de ser e, aos poucos todos estavam curando as suas feridas e, assim, as parasitas já não mais dominavam o mundo que se curava e fortalecia, as parasitas iriam se extinguir.
 
 
Entre aqueles que tinham funcionamento semelhante ao das parasitas também havia três tipos de personalidades bem específicas.

Os primeiros, e menos poderosos eram um tipo de capacho, a mando de outros saiam às ruas procurando por falhas nas rotinas daqueles que produziam, sua finalidade era aplicar multas, para aumentar arrecadações e financiar os luxos desnecessários de outras parasitas, mas como também eram parasitas não se limitavam a isso e para amenizar as multas recebiam altos valores daqueles que produziam para não enxergarem as falhas existentes, isso fazia com que as outras parasitas não recebessem tudo que almejavam assim essas estavam sempre criando novas rotinas inúteis e tributos para aumentar as arrecadações.

Isso criava um ciclo vicioso, mais multas, mais tributos, mais as parasitas do tipo capacho faziam vistas grossas às falhas para receberam mais indevidamente, consequentemente mais multas e tributos eram criados.

Um segundo tipo de personalidade com funcionamento parasita era composto por pessoas que operavam sempre dentro de leis institucionalmente criadas para favorece-los, detinham praticamente todos os valores que eram produzidos, mas como parasitas, nada produziam, só ficavam com os valores.

Eram aqueles que administravam os paradoxos, difícil de serem identificados, viviam sob muralhas da burocratização, ainda que operassem dentro de leis estabelecidas, essas eram moralmente indecentes.

O terceiro tipo era facilmente identificável, esses estavam sempre na mídia, dividiam o poder com os que administravam os paradoxos, composto por aqueles que criavam leis e tributos para financiarem os próprios luxos, também eram responsáveis pela aplicação dessas leis e tributos, cumpridas pela ação das parasitas tipo capacho, sendo que os valores eram administrados nos paradoxos.

Constantemente estavam na mídia pelos escândalos em que se envolviam, sempre para financiarem seus luxos desnecessários, mas invariavelmente nada acontecia, uma vez que eram eles mesmos que faziam as leis e determinavam o seu cumprimento.

Os caminhos para Trilha dos Desejos estavam se fechando, a antiga estrada de terra batida que ligava o vilarejo às cidades aos pés da serra agora não passava de uma trilha, para aqueles que por nela caminhavam.

Depois que o dinheiro deixou de circular os ônibus deixaram de subir a serra, igualmente os caminhões que levavam mantimentos aos hotéis, como não haviam mais turistas, também deixaram de ir ao vilarejo, agora a trilha só era usada por aqueles que caminhavam ou andavam de bicicleta, em pouco tempo a trilha iria se fechar totalmente.

Aqueles que viviam em Trilha dos Desejos e outros que por lá se fixaram não estavam sentindo nenhuma falta da ligação com as cidades maiores, muitos que iam a pé acabavam por se fixarem por lá mesmo, esses também não estavam sentindo falta das cidades de procedência, alguns que iam à procura daqueles que por lá estavam se fixando às vezes também acabavam ficando.

Os poucos automóveis que existiam ou que ficaram em Trilha dos Desejos foram empurrados para junto dos inúmeros morros que por lá existiam, esses estavam sendo cobertos pela vegetação e perdendo as suas características, alguns deles tinham até árvores brotando dentro deles.

Alguns animais acharam uma utilidade mais importante para eles e os usavam como abrigos, representavam um bom lugar para novas ninhadas se protegerem, enquanto eram pequenos.

O rio que se formava dos inúmeros riachos existente em trilha dos desejos, chegava ao pé da serra, agora com águas cristalinas, era possível ver muitos peixes, que voltaram a habitar essas águas, muitos que tinham deixado de usar o rio para brincar e até para o uso doméstico voltaram a utilizá-lo.
 
 
Nas cidades, cumprindo ordens, as parasitas do tipo capacho saíram às ruas, pareciam transtornadas, ameaçavam a tudo e a todos, como eram poucos os estabelecimentos abertos, sejam comerciais ou industriais, afinal agora só se produzia o que era necessário e as pessoas se limitavam a trocar aquilo que produziam por outras coisas que tinham necessidade, essas parasitas passaram a ameaçar as pessoas que andavam pelas ruas.

Diziam que as pessoas tinham armado um complô, que elas estavam escondendo o dinheiro e recusando-se a pagar os tributos, mas ao mesmo tempo prometiam ser generosas e reduzir as multas se as pessoas concordassem em colaborar com elas.

Diante da frustração e às vezes incompreensão das pessoas, ameaçavam ir à polícia e à justiça. Só que não existiam mais policiais, depois que o dinheiro deixou de circular a criminalidade praticamente tinha desaparecido, assim, esses começaram a procurar outras ocupações.

E justiça, esse também era um outro termo estranho, o que seria isso, quem seriam as pessoas que a representam, para que e a quem servem... Perguntas difíceis de serem respondidas, parece que no mundo antigo esse era um termo muito usado, ainda que aparentemente poucos conheciam o seu significado, mas agora tudo indicava que aqueles que a representavam estavam buscando outras ocupações, ou talvez também fizessem parte do grupo das parasitas. Há uma dificuldade significativa em identificar o sentido desse termo.

Nesse dia um outro fato curioso aconteceu, depois de ameaças infrutíferas as parasitas do tipo capacho pegaram seus blocos de multas e diziam que aplicariam multas pesadas a todos, mas quando olharam os blocos, ficaram perplexas, seus formulários tinham se transformado em papel em branco, diziam que iam aplicar as multas assim mesmo só que suas canetas não escreviam.

Entre aqueles que assistiam as cenas que as parasitas faziam, algumas pessoas ficavam com pena, tentavam conversar e convencê-las a fazer algo útil na vida, mas era inútil, tudo que queriam era se apropriar daquilo que não lhes pertencia. Outros as tratavam com indiferença, e havia ainda aqueles que as tratavam com deboche.

Depois de alguns dias de sucessivas frustrações elas começaram a retornar às suas casas, ficaram melancólicas e posteriormente deprimidas.

Aos poucos o estado delas foi se agravando, estavam em melancolia profunda, primeiro chamaram os médicos para ajudá-las, quando esses já não sabiam mais o que fazer levaram-nas aos hospitais, mas nenhum tratamento parecia surtir efeito.

Nos hospitais elas ameaçavam os funcionários, médicos... Dizendo que os locais eram irregulares e que todos seriam multados e processados, e completavam dizendo haver maneiras de aliviar os processos se eles colaborassem.

Ainda que os médicos insistissem, os tratamentos eram inúteis, elas não metabolizavam os remédios, em um dado momento algumas delas emitiram um sinal de melhora, penalizado com a situação um dos funcionários mentiu, começou a oferecer valores, que não mais existiam, se elas ajudassem seus familiares a regularizarem alguns documentos.

Diante da proposta os olhos das parasitas brilhavam, mas logo os médicos perceberam o que estava ocorrendo e como a mentira não podia ser aceita como um procedimento no tratamento, esse funcionário interrompeu suas ofertas.

Na seqüência as parasitas começaram a entrar em estado de inanição e lentamente foram morrendo, a única causa que os médicos conseguiam apontar é que elas foram acometidas de melancolia profunda.
 
 
A vida nas cidades estava se tornando difícil, tinham dificuldades em obter alimentos, mais indústrias estavam fechando pois o que eles tinham a oferecer àqueles que produziam alimentos tinham pouca ou nenhuma utilidade. A população estava diminuindo, as pessoas estavam se mudando para as zonas rurais.

Muitos vilarejos como Trilha dos Desejos estavam se formando, assim, com esses vilarejos também se constituíam um emaranhado de trilhas que os ligavam.

Aos poucos a vegetação ia tomando conta das construções, muitos galpões e fábricas tinham perdido a sua utilidade e agora não passavam de construções fantasmas, abandonadas.
 
 
Enquanto isso as parasitas que administravam os paradoxos mudaram-se para os seus lugares de trabalho. Estranho, o que elas consideravam como trabalho, o que produziam, para que e a quem serviam... Mais perguntas difíceis de serem respondidas, mas aparentemente o mundo não estava sentindo falta delas, ainda que tudo estivesse confuso e havia dificuldade em se conseguir alimentos nas cidades, aparentemente as pessoas estavam achando caminhos para resolver seus problemas, antes parecia que cada vez que se resolvia um problema, essa solução acabava por gerar uma série de outros problemas, e com isso as parasitas ficavam cada vez mais fortalecidas.

Essas parasitas tinham se mudado para os paradoxos, na expectativa de acharem uma solução para os seus próprios problemas, mas para isso tiveram que deixar suas luxuosas mansões, dado que elas estavam distantes das cidades e continuavam recusando o uso de transporte público.

Tentaram contratar seguranças para cuidar de suas casas, mas não tinham nada a oferecerem a quem fizesse esse trabalho. Pensaram em pagar com cheques, mas esses tinham se transformado em papel em branco, depois tentaram fazer promissórias dizendo que quando o dinheiro voltasse a circular pagariam aqueles que cuidassem de suas casas, mas suas canetas e exemplo da dos capachos, também não escreviam.

Com pesar deixaram suas casa vazias, uma vez que consideravam os paradoxos mais importantes.

Nos paradoxos tentavam insistentemente criar rotinas e burocracias que gerassem algo que as pessoas pudessem adquirir e que posteriormente se transformassem em valores para eles, mas todas as suas tentativas eram infrutíferas, nada nos paradoxos funcionava.

Um dia depois de uma ventania acompanhada de fortes chuvas faltou eletricidade e não mais retornou, assim, tudo nos paradoxos parou efetivamente de funcionar.

Como parasitas tentavam desesperadamente conseguir pessoas que trabalhassem para sanar os defeitos, mas ira inútil, nada tinham a oferecer às pessoas que estavam a procura de coisas úteis para fazer.

Os paradoxos, exceto pelas parasitas, estavam totalmente abandonados, quando não tinham mais nenhum alimento, essas parasitas começaram a se alimentar umas das outras, até que restou uma única, já sem energias, sem nada a oferecer a outras pessoas e temendo deixar o seu paradoxo abandonado, essa última parasita entrou em estado de inanição vindo a falecer.

Ninguém se deu conta do ocorrido, essas parasitas não tinham conhecidos, para elas as pessoas não passavam de mecanismos que tinham por finalidade gerarem lucros, para manterem seus luxos desnecessários.

Tempos depois os paradoxos não passavam de escombros, ninguém sequer queria se aproximar deles.
 
 
Trilha dos Desejos estava se tornando referência entre os vilarejos que se formavam, muitos iam para lá com a finalidade de aprenderem como eles lidavam com a natureza, como era a sua produção de alimentos e como confeccionavam objetos necessários à sua vivência.

As pessoas que lá viviam tinham tido pouco contato com a vida na cidade, muitas vezes diziam que pouco tinham a ensinar àqueles que os procuravam, estavam acostumados a aproveitar o que a natureza tinha a lhes oferecer.

Quando alguma árvore que produzisse algum tipo de alimento brotava naturalmente na terra, eles cuidavam para que ela crescesse, quando necessário a replantavam em algum lugar mais apropriado.

Aprenderam a usar galhos de árvores que caiam para transformá-los em madeira, assim construíam suas casas, móveis...

Sabiam que a melhor formula de conviver era interferir o mínimo possível com o ambiente que os rodeavam. Faziam parte desse ambiente, assim, cabia agir como tal, integrando-se a ele.
 
 
Na escola de Trilha dos Desejos estava na hora do intervalo, as crianças brincavam calmamente no parque que lá existia, trocavam olhares umas com as outras. Muitas vezes um olhar já diz tudo que é necessário.
 
 
As cidades continuavam a se esvaziar, o planeta precisa curar suas feridas.
 
 
Logo não mais chegariam alimentos, os sistemas que mantinham as cidades funcionando estavam entrando em colapso, muitos lugares já não tinham eletricidade, água...

As parasitas que antes diziam serem representantes da população continuavam reclusas em suas mansões, que aos poucos iam perdendo sua ostentação, não haviam mais pessoas fazendo manutenção nelas, começava a surgir infiltrações, as pinturas estavam desgastadas, a vegetação nativa tomava conta dos jardins, piscinas... Muito em breve entrariam nas próprias casas.

Nesse meio tempo elas reivindicavam para si os benefícios que as transformações tinham trazido, e pediam à população que fizessem trabalhos para elas, alegando que assim poderiam continuar a beneficiar aqueles que elas representavam, mas parasitas nunca beneficiam ninguém, nem a elas próprias, não percebem que ao sugar a energia do corpo que as alimentam estão destruindo o corpo que as mantém vivas.

Já em relação aos transtornos provocados pelas mudanças, as parasitas trocavam acusações entre elas próprias, alegando que esses transtornos eram conseqüência da má administração das parasitas opositoras.

Não demorou muito e, a exemplo do que ocorreu nos paradoxos, começou a faltar alimentos. Como outras, essas parasitas nada produziam, viviam sugando a energia de outros, sem alimentos e sem quem trabalhasse para elas, suas mansões estavam imundas e apodrecendo, haviam dejetos espalhados em todos os lados de suas antigas luxuosas casas, assim, começaram a se alimentar de seus próprios dejetos, vindo a apodrecerem com o luxo desnecessário que durante eras subtraíram daqueles que as alimentavam.
 
 
Nos meses que se seguiram ao entardecer começava a cair uma densa garoa que perdurava até o meio da noite, quando o céu limpava e esfriava muito provocando uma geada que matava todas as pragas que haviam na terra, ao amanhecer a luz do sol destoava com o azul do céu, logo nas primeiras horas da manhã a temperatura subia muito, impossibilitando as pessoas de ficarem sob o sol.

Nesse período as pessoas só conseguiam sair de suas casas nas primeiras horas da manhã, quando o sol ainda não estava muito quente, depois disso só era suportável ficar dentro das casas ou na sombra.

A garoa e o frio no final da tarde e à noite também era intenso, levando as pessoas a se afugentarem em seus abrigos.

O planeta estava limpando as suas impurezas, as condições climáticas adversas, ainda que provocasse desconforto, também fortalecia a vida, que se tornava cada vez mais abundante.
 
 
As antigas cidades estavam totalmente desertas, uma densa vegetação se formava nas ruas e já invadia as construções, todos os rios estavam limpos, muitos animais andavam livremente nos espaços antes ocupados pelas pessoas, que agora ocupavam os campos.
 
 
Nos pequenos vilarejos, as pessoas tinham aprendido a produzir só o que era necessário, não havia mais espaços para desperdício e destruição, era preciso conviver com o que a natureza tinha a oferecer, facilitar para que ela curasse as suas feridas.

Ainda assim havia excedente, na natureza a vida se tornara abundante e consequentemente nada faltava, sobrava tempo, assim as pessoas podiam se voltar a outras ocupações, ao cuidarem do ambiente que as rodeava automaticamente estavam cuidando de si próprias.

Havia muito a aprender, no mundo antigo as pessoas desperdiçavam seu tempo aprendendo a criar coisas, tinham a falas impressão de que criando coisas, isso acarretaria mais conforto a elas e, nesse processo não perceberam que ao criarem coisas também estavam se coisificando, assim ao invés de essas coisas servirem ao homem, era o homem que estava servindo a essas coisas.

Aos poucos no novo mundo estava-se percebendo que nem as coisas serviam ao homem, e nem o homem servia as coisas, todos, sejam os seres vivos ou inanimados, somos parte de um mesmo mundo. Um Universo, infinito, vivo, pulsante.
 
 
Gradualmente as adversidades climáticas foram cedendo, a garoa, o frio e o calor já não eram tão intensos, as estações do ano começariam a se definir a primavera estava se avizinhando.
Já não garoava mais todos os dias, uma densa vegetação se espalhava rapidamente, as águas dos rios e dos oceanos estavam cristalinas, praticamente não se percebia mais os vestígios da industrialização do antigo mundo.

Com as conseqüências das adversidades climáticas ficou evidenciado que era desnecessário alterar a natureza para subtrair dela o que era preciso para a sobrevivência, percebeu-se ser muito mais sábio se integrar a ela e partilhar o que ela tinha a oferecer, nessa nova forma de produzir pouco havia a se fazer, ainda assim quase tudo era excedente.

Trilha dos Desejos tinha se firmado como um foco de conhecimentos sobre como lidar com a natureza, lá muito antes de as grandes cidades ao redor existirem, não se distinguiam as diversas espécies, a vida era integrada ao ambiente.

Na escola, estava na hora do intervalo, as crianças brincavam calmamente e em silêncio no parque enquanto olhavam as poucas pessoas que passavam pela estreita rua de terra batida coberta por pedras.

Uma criança que estava com adultos, que anteriormente tinha vivido em uma das cidades próxima a Trilha dos Desejos e que haviam se mudado para um dos vilarejos que haviam se formado, olhava fixamente para as outras da escola que brincavam nos balanços, sentiu-se convidada pelos demais, separou-se dos adultos e ocupou um dos brinquedos do parque da escola.
 
 
No mundo antigo havia muitos ruídos, parte significativa deles era reflexo da industrialização que foi criada, esses ruídos faziam com que as pessoas falassem cada vez mais alto, aumentando ainda mais o nível de ruídos, ainda a cada dia criavam mais produtos industrializados para que houvesse mais comunicação e isso aumentava ainda mais os ruídos.

A maior parte dos animais se afugentavam para locais cada vez mais distantes, em parte por não poderem suportar tantos ruídos, curiosamente parece que esses animais conseguem se comunicar facilmente com o seu próprio ambiente.

Já no mundo que os homens tinham criado a comunicação cada vez mais entrava em extinção, primeiro começaram a reduzir as falas, substituindo-as por ruídos, muitas vazes resultado da aglutinação das palavras, depois as palavras escritas também começaram a ser aglutinadas.

Com a tecnologia criada todos falavam tanto e ao mesmo tempo e assim praticamente já não se sabia mais o que era ouvir.

A natureza tem muito a nos falar, mas a sua fala é acompanhada de uma pausa, expressa em um instante de silêncio, essa pausa tem a finalidade de permitir àquele que fala e àquele que ouve entender o significado da palavra dita.

Quanto todos falam muito e ao mesmo tempo, sem essa pausa, tudo se torna uma sucessão de ruídos desconexos, e a comunicação se torna falha e igualmente desconexa, dessa forma nenhuma tecnologia que se possa criar irá propiciar a comunicação.

Na maior parte das vezes, a simples presença, um olhar, já dizem tudo que é necessário.
 
 
A única escola de Trilha dos Desejos era diferente das existentes nas demais cidades, lá só havia o que chamavam de ensino fundamental, entre as diferenças, não havia divisão em salas, o espaço fechado era um grande galpão, onde todas as crianças ficavam juntas.

A escola ocupava o maior terreno existente no vilarejo, ao redor do galpão havia um gramado, sempre muito bem cuidado, e algumas árvores espalhadas ao acaso sobre ele, não havia um muro ou uma cerca delimitando, assim a escola se misturava com as casas vizinhas. Ainda no gramado alguns brinquedos de uso coletivo formavam um pequeno parque.

Lá não havia registros de matrículas, mas todos que nasceram no vilarejo começavam a freqüentá-la ainda muito jovens, como não havia matriculas, também não tinha reprovações e também não tinha formaturas.

Aqueles que lá entravam, continuavam freqüentando as suas atividades indefinidamente.

A formatura lá não tinha sentido, afinal somos seres em formação, sempre.

Aqueles que vinham de outros lugares aprenderem o modo de produção de Trilha dos Desejos eram encaminhados à escola, ainda não tinham percebido, mas não eram os agricultores ou os adultos que os estavam ensinando. Afinal, “ninguém ensina nada a ninguém, o homem aprende com o contato com o seu semelhante”(Paulo Freire).

Aos poucos se aprendia que semelhantes éramos todos, sejam os seres vivos ou inanimados.
 
 
Na escola de Trilha dos Desejos não haviam salas, o único espaço fechado era composto por um grande galpão, suas paredes tinham por única finalidade proteger aqueles que a freqüentavam das intempéries do tempo, as portas e janelas estavam sempre destravadas.

Aqueles que a conheciam continuavam a freqüentá-la indefinidamente, mesmo que fosse para visitá-la.

Como não tinha muros, os seus limites se confundiam com os limites de outras construções existentes no vilarejo, curiosamente as construções mais antigas de Trilha dos Desejos também não tinham seus limites definidos. Esses limites só começaram a surgir quando os hotéis e comerciantes de outros lugares começaram a explorar as belezas do vilarejo.

Originalmente Trilha dos Desejos se constituiu como um ponto de encontro para atender as necessidades daqueles que cuidavam das terras ao redor do vilarejo e a escola tinha sido a sua primeira construção.

Os hotéis e os pontos de comércio constituídos por aqueles que visavam explorar o lugar foram abandonados quando os automóveis deixaram de funcionar e o dinheiro deixou de existir e, aos poucos foram sendo ocupados por aqueles que se encantaram pelo lugar e para lá se mudaram, aos poucos os muros e divisões dessas construções foram substituídos pelas árvores e vegetação, restando apenas vestígios desses, assim essas construções mais recentes começaram a ficar parecidas com a escola e as mais antigas lá existentes.

Aqueles que vinham a Trilha dos Desejos aprender o meio de ser dos que lá habitavam internalizavam as tênues diferenças de seus lugares de origem, sem que se dessem conta, os limites entre o vilarejo e as cidades vizinhas começaram a se esvanecer e, igualmente seus muros e divisões começaram a ceder, a propriedade já não tinha qualquer sentido.

No continente, principalmente nas cidades maiores ainda havia aqueles que se encontravam desorientados, mas brevemente até essa divisão em continentes deixaria de ter qualquer sentido.

Há milhões de anos atrás o que conhecemos e desconhecemos fazia parte de uma pequena célula compacta, densa e que continha toda a energia do Universo, um dia esse Universo se expandiu, mas nunca deixaremos de ser partes desse todo, de um Universo, infinito, vivo, pulsante.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

A Casa do Gramado.



Lá na curva onde o espaço se encontra com o tempo, junto ao centro do tabuleiro, é que se começa a traçar ou pintar essa história, sim, é isso mesmo, não é um erro de grafia, significa que o desejo onde quer que esteja é real, principalmente quando partilhado...







Aos poucos as frases vão se desenhando como pinceladas em uma tela.







Curioso, o sol começa a nascer, sua luz atravessa a janela do quarto, não lembro de ter ido dormir, mas me sinto desperto e não estou cansado.



O relógio ainda registra 03h00 e ao fundo da casa ainda está escuro e tudo continua em silêncio como uma madrugada qualquer.



Só agora percebo, ainda que esteja em meu quarto, há detalhes que não se assemelham a ele, a janela da frente pela qual percebo o dia amanhecendo não é a janela que costumo ver, e sim uma varanda, e no lugar da rua em que caminho todos os dias, o sol começa a despontar por traz de um número de árvores sem fim.



A curiosidade de atravessar a varanda e explorar o ambiente é imensa, quando na escuridão da madrugada adentro ouço o cachorro caminhando pelo corredor do quintal da casa que me é tão familiar..







Lá na curva onde espaço se encontra com o tempo,
bem juntinho ao centro de tabuleiro,
tempo é espaço e espaço é tempo,
o antes pode ser agora,
e o depois já aconteceu.



Lá não há primeira, segunda ou terceira pessoa,
todos somos nós.
Não importa se animados ou inanimados,
mas ao mesmo tempo,
o nós não deixa de ser eu, você ou ainda ele.



Lá se centra a essência do Universo,
por outro lado não há tempo nem espaço,
e ao mesmo tempo o espaço é infinito,
e o tempo pode ir adiante como ao passado retornar.



O centro do tabuleiro
se encontra logo ali, além da varanda,
só que quando lá chegar, tabuleiro e varanda,
além do Universo irão estar.






Quatro crianças brincam calmamente sentadas na varanda da casa que se encontra fechada, só a mais nova emite alguns sons, ainda não sabe articular as palavras bem, as demais permanecem em silêncio centradas em suas brincadeiras, há harmônia e afinidade entre elas, as palavras simplesmente se tornam desnecessárias.



No gramado em volta à casa e nas grandes árvores que a circundam, também prevalece o silêncio, não há vento e tudo ao redor parece estático, se a folha de uma árvore caisse seria possivel ouvir o som da queda, mas nesse dia nem as folhas estão caindo.



As palavras que podem resumir a cena, ao mesmo tempo estranha e familiar é harmônia, acompanhada de afinidade.



Cena que se perdeu no tempo e permanece viva no espaço em um lugar que tempo e espaço não são passiveis de diferenciação.











A casa...





Muitas foram as vezes em que me integrei àquele espaço: a casa, Vilkiria, o gramado, a irmã mais nova de Valkiria e seu irmãozinho, pouco mais que um bebe, o gramado e as árvores em volta. Também foram muitas as vezes que procurei por esse lugar no tempo, e em nenhuma delas obtive sucesso, outras ele simplesmente está lá, como o está agora, logo além da varanda estão as árvores que sempre lá estiveram, achando um caminho entre elas lá estarão o gramado e a casa, tudo integrado.



Nas primeiras vezes que por lá andei, não encontrei ninguém, mas o ambiente era impecavelmente arrumado, no gramado não havia sequer uma folha seca perdida, nada esquecido na varanda da casa, dotada de um piso de madeira e uma cadeira de balanço para duas pessoas.



A porta de entrada da casa, ainda que destravada, sempre estava encostada, cortinas brancas semi-transparentes adornavam as duas janelas da frente, inda que olhasse por elas a decoração interior não era clara, mas era perceptível que os moveis eram de madeira escura, pela porta da entrada da casa, com vidros transparentes em sua parte superior, era possível distinguir a sala, com uma mesa redonda de madeira escura e cinco cadeiras à sua volta, ao fundo um sofá de madeira com almofadas para três pessoas e em um dos cantos ao lado deste um outro de igual forma para duas pessoas.



Compunha ainda a decoração um móvel também de madeira escura, com portas de vidro, nele contidos pratos e copos e outros utensílios comuns às casas.



Nessas primeiras vezes em que lá estive, quando ainda não me sentia integrado àquele lugar sentia muita curiosidade em entrar na casa e explorar o lugar, cheguei a tocar na maçaneta algumas vezes, mas nunca fui além disso.



Em todas essas vezes que lá estive mesmo não tendo visto qualquer pessoa, sentia a presença delas, era como se lá estivessem e simplesmente não conseguia vê-las, a receptivadade transbordava...







O primeiro contato..



Já estava acostumado a andar naquele lugar solitário, sim, solitário em dois sentidos, o lugar tem aparência de ser solitário e, igualmente por lá caminhava solitário, ainda que a impressão de haver outros por ali jamais se esvanecia. Sem dúvida é um lugar reservado no qual não se chega sem ser convidado.



Quando já não pensava em outros, um dia já próximo ao anoitecer uma menina um pouco mais velha que eu, se balançava na cadeira da varanda, não tinha mais que 7 ou 8 anos de idade, usando um vestido branco, meias brancas e sapatos pretos, continuou balançando calmante enquanto me observava aparentemente sem maior interesse, continuei andando em sua direção atravessando o gramado que ladeava a casa.



Ao chegar à varanda, Valkíria parou de se balançar e num leve sorriso me disse boa tarde e me ofereceu o lado vazio da cadeira.



Era a primeira vez que a via, mas parecia que a conhecia desde sempre, como se tivéssemos sido constituídos da mesma essência, só ficamos balançando em silêncio até o anoitecer, as palavras não eram necessárias..











Sozinhos...



Todas as vezes que lá estive, em nenhuma delas lá cheguei, e ainda que andasse por outros lugares, lá era um lugar do qual nunca me ausentei.



Várias foram as vezes que por aquele lugar procurei e, inda que tenha conhecido outros parecidos, nenhum deles pôde propiciar a sensação de integração que lá existe.



Cada vez que atravesso o gramado em direção à varanda é como se sempre estivesse estado por lá, e também todas as trilhas pelas quais caminhei por entre as árvores, sempre chegava ao gramado que dá acesso à varanda que havia em redor à casa.



Nunca lá cheguei e ao mesmo tempo de lá nunca sai, um pequeno Universo localizado onde o espaço se encontra com o tempo, e mesmo que lá o tempo e o espaço sejam pequenos, conseguem ser infinitos, como infinito é o tempo, e em um espaço onde o passado ainda irá acontecer e o futuro pode estar determinando um presente que já aconteceu.



Valkiria balança calmamente na cadeira da varanda, enquanto observa os irmãos menores brincando, à sua frente no gramado, ela não só os acompanha em suas brincadeiras, mas muito mais que isso é ela quem cuida deles, eles só tem a eles mesmos, a casa, o gramado e as árvores em volta.



Há um sentimento que a reconforta poder agora partilhar esse cuidar, e brincar também, é curioso a tênue lembrança de um outro universo habitado por muitas pessoas, mas acompanhado de uma solidão tão imensa quanto o é número de pessoas.



Aqui, ainda que solitário, solidão é um sentimento, uma vaga e tênue lembrança de um longinquo Universo que existiu em um outro tempo.



É um nós integrado, quatro crianças, um gramado, a casa e muitas árvores e, ao mesmo tempo cada qual com sua própria identidade, seja cada árvore, as células que compõe o gramado, a casa, Valkiria, os irmãos e eu mesmo.







O cuidar e ser cuidado.



Não me recordo de quando criança, no outro mundo ter cuidado de alguma outra, mas como era o menor entre os conhecidos muitas vezes foi pedido aos maiores que me cuidassem, sei que recebia atenção, mas nem sempre era de bom grado, e às vezes faziam contra a vontade, também havia outros que gostavam dessa atribuição, principalmente quando vinha de algum adulto.



Lembro ainda que esses pedidos para que me cuidassem sempre eram acompanhados de recomendações e preocupações.



Nesse momento, aqui na casa do gramado, tenho a percepção de que Valkiria sente a necessidade de partilhar com alguém os cuidados que dedica aos irmãos e ao lugar que habita, mesmo que ela não tenha feito o pedido, minha curiosidade fica aguçada, pois em outros lugares crianças de idade semelhantes às minha e dela, são as que são cuidadas, mas aqui não há outros maiores, que projetem suas recomendações e preocupações às crianças.



Sinto que não é um cuidar nos moldes que os mais velhos sempre tiveram comigo, uma vez que aqui não é um lugar que denote a necessidade das preocupações que ocupam em especial o mundo dos adultos, parece não haver o que proteger, uma vez que não há perigos em volta, mas ainda assim a sensação de segurança e proteção predomina. O que sinto é um estar junto, integrado, com as crianças, árvores, casa, gramado...







Os Caminhos..



Muitos são os caminhos entre as árvores, são trilhas entre elas, um lugar agradavel para se caminhar, bem dividido os espaços com sombras das árvores e outros que a luz do sol consegue penetrar, a temperatura é agradavel, nem calor nem frio, também não é úmido nem seco em excesso, simplesmente agradavel.



O chão com trechos cobertos por uma grama rala, outros com pedras soltas e também com trechos de terra batida, às vezes paro só para apreciar a visão da luz do sol entrecortando pelos galhos das árvores, ladeando a trilha próximo às árvores há muitos arbustos cobertos de flores, o silêncio me chama a atenção, é possivel ouvir os passos, oras resvalando na grama rala, oras com os ruídos peculiares de quando se anda em pedras soltas no chão.



Os caminhos são tantos, que a cada vez parece ser uma trilha nova, como se a paisagem se desenhasse a cada vez que lá ando.



Ao chegar ao gramado a cena já me é peculiar, Valkiria balançando calmamente acompanhando as brincadeiras dos irmãos, ao adentrar no gramado ela se levanta e vem ao meu encontro me recepcionar.



Os Caminhos..



Ao chegar ao gramado a cena já me é peculiar, Valkiria balançando calmamente acompanhando as brincadeiras dos irmãos, ao adentrar no gramado ela se levanta e vem ao meu encontro me recepcionar.











Um caminho que se desenha..



Ao repensar as várias trilhas pelas quais já caminhei para chegar à casa do gramado, e agora novamente caminhando nela, percebo ser uma única trilha que se desenha a cada vez que passo por ela, é o lugar que determina o caminho a ser seguido, os arbustos que se entrelaçam às árvores parecem intransponíveis, quando só, parece que a trilha tem o tamanho do meu desejo de permanecer nela, é só surgir a vontade de estar na companhia de Valkiria e os irmãos, que alguns passos a mais já surge o gramado e a casa, em uma paisagem que já me é peculiar. Já todas as vezes que caminhei pela trilha na companhia de Valkiria, o gramado que ladeia a casa sempre esteve ao alcance de nossos olhos, com o silêncio sempre quebrado pela conversa ao longe dos irmãos mais jovens.



Será que o caminho se desenhava a cada vez que por ele ando, me apontando para onde seguir, ou esse caminho é desenhado pelo desejo daquele que por ele percorre, mas essa era uma questão que não fazia parte de meus questionamentos na infância, era um passeio, sempre acompanhado de prazer, seja pelo passeio, seja pela companhia das outras crianças.



Parece que os adultos se questionam além do que devem, e às vezes se perdem em coisas de menor interesse.



Valkiria é muito atenta aos pequenos, como fazem os adultos no outro Universo, mas sem suas preocupações, medos... ao mesmo tempo não deixa de ser criança, brinca junto, mas como criança, não como os adultos brincam com as crianças.



Acho que os adultos poderiam parar um pouco e tentar aprender com as crianças.







Passeios...



Habitualmente nós quatro nos limitávamos à varanda e ao gramado que ladeava a casa, só eventualmente eu e Valkiria íamos um pouco além, entravamos pela trilha, mas a uma distância em que era possível ver o gramado e os menores, ou pelo menos a uma distância que era possível ainda ouvir-los brincando.



Qualquer silêncio mais prolongado, bastava alguns passos e já era possível ver o gramado e os menores, normalmente à sombra da varanda.



Algumas vezes porém, íamos os quatro juntos pela trilha e ai ela se desenhava por caminhos mais distantes. Uma delas em particular foi cativante, quando já cansados de caminhar, por curvas, subidas e descidas, não era possível nem avistar qualquer sinal da casa ou do gramado e, subtamente a trilha ficou interrompida em todos os sentidos, no meio de uma clareira.



Sem qualquer caminho seja adiante ou para retornar e, no centro da clareira estava um desses bancos de jardim, com espaço para nós quatro, ao redor algumas pedras grandes espalhadas ao acaso, os arbustos que dividiam o espaço com as árvores eram intransponíveis.



Cansados nos sentamos para descansar, as feições de Valkiria não denotavam qualquer estranhamento, enquanto ficamos descansando sentados no banco, aos poucos parecia que os galhos das árvores se aproximaram tanto, que pareciam estar nos abraçando.



Depois de ter adormecido um pouco, ao acordar os menores brincavam calmamente ao redor das pedras, próximos às árvores, sob o olhar terno de Valkiria.



Já próximo ao anoitecer uma outra trilha aos poucos começou a se formar entre os arbustos e árvores, após uma breve caminhada já era possível avistar a casa do gramado.







O anoitecer...



De volta à casa do gramado, ficamos eu e Valkiria balançando calmamente na cadeira da varanda, por traz das árvores, o sol começava a se pôr, desenhando um vermelho tão intenso que não era possível distinguir o verde do gramado.



Os menores, cansados de um dia intenso de caminhadas e brincadeiras, foram acolhidos pela casa, que parecia abraçá-los ao nela entrarem.



A varanda onde estávamos também parecia ter diminuindo de tamanho, o suficiente para acolher a mim e à Valkiria, os braços da cadeira de balança se moldaram a nós, como braços que acariciam crianças para dormirem.



Aos poucos a vermelhidão do céu, foi-se transformando em um azul escuro, enquanto pontos brilhantes começaram a ser bordados em um céu que a cada instante ficava mais escuro.



Por tráz da cadeira uma manta aconchegante aos poucos começou a se desenrolar, bem de leve, para não acordar Valkiria, que cansada já dormia silenciosamente, no cenário integrado: casa, crianças, árvores e gramado formavam um único ser, a divagar em seus desejos, embalado por sonhos coloridos.







A noite...



Aos poucos os últimos vestígios do sol desapareceram, cedendo seu lugar à escuridão, levemente quebrada pelo brilho tênue de infinitas estrelas.



O silêncio era contagiante, dominava todo o ambiente, tudo que compunha a casa do gramado dormia profundamente. Vindo por traz da casa, agora se aproximando ao centro do céu, uma imensa lua cheia derramava seus raios pálidos clareando de leve todo o gramado e desenhando as sombras das arvores ao fundo.



Lentamente os raios de luar tiravam a varanda das sombras, iluminando-a brandamente e adentrando de leve o quarto das crianças menores. A face de Valkiria refletia a luz cálida da lua, que parecia ali estar para embalar e permitir que as cores dos sonhos, ali latentes pudessem se espalhar pela casa e seus arredores.



Por um lado queria permanecer indefinadamente integrado a esse mundo mágico, mas ao mesmo tempo sabia, que além da trilha, havia um outro lugar, não tão cheio de encantos, mas que também ao qual também pertencia.







De volta..



Foi um sono longo e profundo, pela janela podia notar que as poucos a escuridão da noite cedia lugar para o dia que começava a amanhecer, logo a luz do sol ia entrar e ocupar todo o quarto.



Na casa aos poucos o silêncio era quebrado pelos ruídos do dia que estava começando, os demais continuavam dormindo, mas os ruídos de seus sonos já se misturavam aos demais sons do quotidiano.



O tênue desenho da varanda que dá acesso à trilha que leva à casa do gramado se dissipava com o dia que amanhecia, e agora não passa de uma leve mancha entre tantas outras que compõe a parede da casa, tão estranha quanto familiar.







Voltei a dormir, aquele sono breve e gostoso, que ocorre após o amanhecer, depois que acordamos, mas ainda estava sonolento.



Finalmente fui desperto, pelo sol que me aquecia, o chamado de minha mãe, os barulhos do dia, e o cheiro do café da manhã que agora invadia toda a casa.



As lembranças da casa do gramado ainda eram intensas, mas agora não havia qualquer sinal da varanda na parede do quarto, que tinha a ligação com a trilha que me levava ao encontro de Valikiria e os seus irmãos.







Sozinho...



Dentro dos conceitos que tinha na época, ao menos comparado com a casa do gramado, que era o único lugar que conhecia, além do ambiente em que convivia com minha família, neste havia muitas pessoas: minha própria família, mãe, pai, irmão, primos, avós, tios..., tinha também os vizinhos, outras crianças com as quais tinha o privilégio de brincar nas ruas, hábito que infelizmente parece que ficou perdido no tempo, mas ainda assim era muito solitário, aqui não tinha com quem falar sobre a casa do gramado, as pessoas simplesmente não entenderiam.



Já com Valkiria, inda que praticamente a gente não conversasse, as palavras pareciam desnecessárias, um olhar, um gesto já bastava para a gente se entender, hoje chamo a isso de afinidade, um lugar em que há muito poucas palavras, por outro lado todas elas são ouvidas, até aquelas que não são ditas.



Nesse outro mundo há muitos ruídos, por isso as pessoas falam tanto e tão alto, aumentando ainda mais os níveis de ruídos e, assim, as pessoas sequer conseguem mais ouvir o que elas mesmas estão falando, fazendo com que as tentativas de diálogos se tornem uma série de barulhos desconexos.



Nosso mundo é movido pelas palavras, sejam elas escritas ou faladas, mas quando elas se tornam uma sucessão de ruídos desconexos, o mundo como não deixa de ser uma projeção de nossas palavras, igualmente se torna desconexo e desprovido de sentido.







Durante o dia perambulei por todos os lugares conhecidos da vizinhança, tinha ido até onde o limite colocado por aqueles que cuidavam de mim permitiam, era uma época que ainda havia muitos lugares vazios, tinha até algumas trilhas, mas nenhuma delas se parecia com aquela que eu estava procurando.



Tinha também casas ainda não habitadas e tantas outras ainda em construção, em muitas delas às vezes brincava com outras crianças, mas também nenhuma delas se parecia com a casa do gramado.



Frustrado, no começo da tarde, sem pedir permissão fui até lugares mais distantes, aqueles que ainda não conhecia e que também não me deixavam ir, me afastei tanto que encontrei lugares vazios, chácaras, e outros terrenos abandonados tomados pelo mato e, como nas trilhas e casas vazias, também não se assemelhavam às árvores que ladeavam o gramado da casa onde Valkiria e seus irmãos viviam.



No final da tarde estava cansado, e tinha deixado aqueles que me cuidavam preocupados, pelo tempo que tinha ficado afastado, mas não expliquei o que procurava, disse que só estava brincando, pois sabia que eles não entenderiam e, ainda só iria acarretar mais preocupações.



Fiquei me perguntando sobre os porquês de o mundo dos adultos ser tão cercado de preocupações, desejava muito a tranquilidade que só conheci no mundo envolto à casa do gramado.







Nos dias que se seguiram não consegui me afastar de casa, a minha ausência por um tempo maior causou preocupação aos adultos, assim ficaram me olhando o tempo todo e, ainda, era questionado o tempo todo sobre o que tinha acontecido.



As preocupações deles já eram incompreensíveis, mas as perguntas repetitivas faziam menos sentido ainda. Sentia-me acusado como se tivesse dito alguma mentira, quando na realidade parece que no mundo dos crescidos as verdades precisam ser provadas o tempo todo, é como se qualquer fala fosse uma mentira, até que alguém provasse a sua veracidade.



Não tinha dito nenhuma mentira, só não tinha falado que tinha me afastado tanto, com a intenção de evitar as preocupações, mas elas vieram da mesma forma e agora acompanhada de dúvidas, muito confuso esse mundo dos crescidos. Por que será que eles perguntam tanto e falam tanto, se em princípio não acreditam nas respostas que irão ouvir.



Será que não percebem que as suas preocupações é que às vezes fazem com que as crianças criem estórias, e em parte é por eles não acreditarem no que as crianças têm a lhes falar faz com que as estórias sejam criadas.



No dia que os adultos perceberem que suas preocupações e descrença naqueles que os rodeiam é um problema deles e começarem a se tratar para melhorarem, naturalmente as crianças não precisaram mais ficar criando estórias e consequentemente criar esse ciclo vicioso de estórias criadas e preocupações.



Uma pena esse hábito de os crescidos ficarem projetando seus problemas nas crianças, seria muito bom se os adultos crescessem um pouco, acho que assim o mundo deles ficaria um pouco parecido com a casa do gramado e consequentemente as estórias e preocupações não teriam lugar.







O tempo...



O tempo parece ter características peculiares, já fazia alguns dias que não ia à casa do gramado, e isso me dava a impressão de muito tempo, sentia falta da companhia de Valkiria e dos seus irmãos, também sentia falta de brincar e estar com eles, mas não estava conseguindo achar a trilha que dá acesso à casa do gramado.



Em algumas situações uns poucos dias parecia ser um tempo muito pequeno, mas agora as saudades me consumiam, sentia falta de companhia, da tranquilidade, que só lá conseguia desfrutar.



É curioso como as pessoas convivem com muita gente, às vezes parece que o mundo está muito cheio, mas parece que quanto maior o número de pessoas menos as pessoas estão juntas, sei que aqueles que me cuidam me querem bem e se preocupam, é dificil entender o que tanto os preocupam, acho que eles se sentem sós, talvez haja alguma relação entre se estar só e as preocupações, talvez as preocupações sejam uma das causas que fazem com que as pessoas fiquem sós, e quanto mais sós, mais se preocupam.



Assim, ao mesmo tempo que o mundo fica muito cheio, ele fica vazio, por as pessoas simplesmente não estarem, se estivessem juntas não ficariam sós e consequentemente a solidão não mais as incomodariam, fazendo com que suas preocupações deixassem de ter sentido.



Na casa do gramado só viviam Valkiria e seus irmãos e claro eu que os visitava e, a cada dia queria mais estar com eles, com a casa, o gramado, as árvores, a trilha e os arbustos, lá é um lugar em que a gente está efetivamente, com tudo que o compõe, não há preocupações ou solidão, e o tempo, simplesmente parece que não passa, ele também só está lá.





Angustia..



No decorrer de mais um dia, sentia um aperto no peito que não sabia explicar, nem a mim mesmo, ainda que as atenções a mim voltadas tivessem cedido um pouco, meu interesse em procurar pela trilha tinha diminuído, sabia que não iria encontrá-la, pelo menos da forma como a estava procurando.



Tinha conhecimento de que a casa do gramado estava em algum lugar, mas não tinha idéia do que fazer para encontrá-la.



Meu desejo de estar com Valkiria e os irmãos, dominavam meus pensamentos, assim meus interesses em relação às demais crianças que conviviam ao meu redor, praticamente tinham desaparecido, várias vezes aqueles que me cuidavam sugeriram que eu fosse brincar com os outros, mas preferia ficar à frente da porta da casa, meio que perdido em meus pensamentos.



Também me ofereceram outros brinquedos com os quais poderia me distrair sozinho, mas eles não me despertavam qualquer interesse.



O sentimento de solidão me provocava um intenso aperto no peito.







Lembro que nesse dia tinha pedido para ir dormir mais cedo, inda que não tivessem se oposto, senti um mixto de preocupação e culpa por parte daqueles me cuidavam, não entendia o por que dos sentimentos, tentaram me agradar e quando já estava na cama minha mãe veio conversar e me trouxe um leite quente, dizendo que tinha comido pouco.



Também me senti culpado pelas preocupações que estavam me rodeando, mas a atitude de minha mãe, me trouxe conforto e prazer, um certo sentimento de poder também, mas isso são outras histórias, talvez para um outro momento.



Um pouco mais tarde, já com as luzes apagadas e só com uma leve penumbra, resultante dos últimos raios de sol daquele dia, uma tênue mancha começou a se desenhar na parede do quarto, em frente à cama.







Acordei quando a lua começava a se aproximar do horizonte, agora a frente da casa da gramado se encontrava totalmente iluminada por uma cálida luz branca, uma iluminação mais intensa refletia na face de Valkiria, que tranquilamente dormia, como se fosse um anjo.



Acredito que ela estava sonhando, um leve sorriso brilhava em sua face, a ternura, aconchego, paz... se expandia para além do gramado, das árvores e da trilha.



O mundo das preocupações agora não passava de uma leve lembrança que aos poucos se dissipava.



Logo a lua começaria a mergulhar no horizonte, dando espaço aos primeiros raios de sol que iria surgir nos fundos da casa, aos poucos o sono foi novamente contagiando meus pensamentos, como era reconfortante estar ali, na casa do gramado, com a tranquilidade e vida que dali transbordava.



Quando acordei o sol já brilhava intensamente, estava sozinho deitado na cadeira da varanda, mas não havia nenhum indício de solidão. Valkiria, os irmãos, a casa, varanda, o gramado, as árvores, a trilha... pareciam me abraçar e acalentar meus sonhos, não dava para determinar o que delimitava cada um de nós, era como se fossemos um único ser, intenso, vivo, pulsando.









Sem preocupações...



Em seguida me levantei e fiquei me esquentando ao sol, experimentando aquela sensação agradável de por ele ser aquecido. Logo se juntaram a mim Valkiria e seus irmãos, para aproveitarem também o calor do sol que nos acompanha todas as manhãs.



Foi nesse momento que entendi o por que de na casa do gramado não haver espaço para preocupações, aqui até as coisas mais simples, como aproveitar o calor do sol ao amanhecer era uma ocupação.



Também nos ocupávamos com nossos passeios, pelo gramado ou pela trilha, descansar na varanda também era uma ocupação.



Apreciar a lua e o brilho das estrelas, desfrutar a companhia, andar, brincar, se balançar na cadeira da varanda, tudo era ocupação.



No outro mundo eram raras as vezes que as pessoas percebiam o que o mundo podia lhes oferecer e assim, como pouco se ocupavam com coisas que efetivamente têm importância, ficavam o tempo todo se preocupando e isso acarretava culpas, seja pelo que faziam ou pelo que deixavam de fazer, gerando ainda mais preocupações.







Um passeio..



Quando o sol começou a esquentar quis passear pela trilha com os demais, desejei ir até onde estava o banco no qual ficamos uma tarde toda à sombra das árvores que nos abraçavam, mas hoje a trilha simplesmente não estava lá.



Contornei todo o gramado que ficava ao redor da casa, nas proximidades das árvores, mas tudo que podia ver eram os arbustos, que não deixavam qualquer espaço para se ir ao encontro das árvores.



Fui ao encontro de Valkiria e dos irmãos, eles estavam na varanda. Valkiria balançava calmamente na cadeira, enquanto observava os menores, quando me aproximei ela se afastou um pouco do centro do banco, como se estivesse me convidando a partilhá-lo com ela.



Ficamos por ali, nos ocupando com nossa companhia, só cuidando dos menores, conforme a tarde avançava parecia que cada vez as árvores ficavam mais próximas e os arbustos cresciam muito e rapidamente, invadindo todo o gramado.









Uma ligação entre mundos..



Enquanto balançávamos na cadeira, entendi que a trilha era um elo de ligação entre a casa do gramado e o mundo das preocupações.



Aos poucos os arbustos e as árvores tomaram conta de todo o gramado, envolviam toda a casa e a nós que estávamos na varanda, só uns poucos raios de sol conseguiam atravessar o que parecia se uma densa floresta nos protegendo.



Logo não haveria mais sol e com as sombras das árvores, a noite viria mais cedo.



A casa do gramado tinha fechado o caminho que levava ao mundo das preocupações.







Na hora do crepúsculo, assim que o sol mostrou seus últimos raios, uma imensa lua amarela brilhava já acima do poente, gentilmente os galhos mais altos das árvores se abriram, permitindo assim que a cálida luz da lua iluminasse toda a varanda.



Sonolentas, as crianças menores dormiram ali mesmo na varanda, de leve pequenos galhos de uma das árvores, com muitas folhas, também se deitou ao chão da varanda, vindo a acolher a cabeça dos pequenos, como se fosse um travesseiro, um outro galho um pouco maior as envolveu em um abraço terno, protegendo-as.



Enquanto balançávamos levemente, os braços da cadeira de balanço envolviam a mim e à Valkiria, quando nos encantávamos com o brilho da lua, aos poucos as árvores mais altas foram encobrindo levemente o luar, diminuindo a iluminação na varanda.



Alguns galhos das partes inferiores das árvores entraram por baixo da cobertura da varanda vindo a se debruçar sobre a cadeira, que lentamente parava de balançar.



Valkiria já dormia, um sono leve, povoado de sonhos coloridos, eu também já tinha dificuldades em manter os olhos abertos, quando já estava todo envolto, junto com Valkiria por finos galhos das árvores que nos cobriam.







Também estava sonolento e partilhava esses momentos na casa do gramado como se estivesse vivendo um sonho, do qual não desejava acordar. Aqui nós não desenvolvíamos, esse era um conceito que fazia parte do mundo da preocupações, não precisavamos disso, aqui na casa do gramado estávamos todos envolvidos: Valkiria e os irmãos, a casa, o gramado, eu mesmo, as árvores, os arbustos e também a trilha.







No mundo das preocupações parece que as pessoas valorizam demais o desenvolvimento, não percebem que quando mais se desenvolvem mais se distanciam daquilo que o mundo pode lhes oferecer.



O prefixo "des" significa negação, logo desenvolver significa não se envolver, assim enquanto os adultos procuram se desenvolver no mundo das preocupações, eles deixam de se envolver com tudo que os rodeiam, inclusive com as próprias pessoas, por isso não se incomodam em matar árvores, animais, destruir aquilo que está à volta deles.



Ainda se envolvem precariamente com algumas poucas pessoas que estão muito próximas, mas se continuarem a se desenvolver, logo nem com essas conseguirão ficar, e assim o que irá restar será a solidão, acompanhada de muitas preocupações.







Muitos daqueles que vivem no mundo das preocupações, incluindo as crianças que já foram infectadas pelo des-envolvimento, considerariam a casa do gramado um lugar monótono e sem graça, um lugar para se passar alguns dias de férias ou no máximo um fim de semana, e logo diriam estar cansados das mesmas coisas e que lá nada acontece.



Uma questão significativa é que para se estar na casa do gramado é necessário se envolver, só quando estamos envolvidos é que percebemos o quanto a vida é intensa e não requer mudanças constantes.



O des-envolver implica em mudanças constantes, mesmo quando não temos idéia de o por que mudar, assim, no mundo das preocupações as pessoas precisam estar sempre trocando tudo por coisas novas, que muitas vezes tem a mesma utilidade que tinha as antigas.



Parece que assim conseguem algum nível de satisfação, no ato de trocar coisas, mas na pratica essa atitude só serve para alimentar ainda mais os sintomas que eles têm, gerando mais solidão e preocupações.



Será que um dia perceberão que não há necessidade de ficar trocando coisas, isso só gera des-envolvimento e consequentemente mais destruição, quando se conscientizarem que a mudança necessária está dentro deles próprios, que o des-envolvimento só os está afastando daquilo que realmente necessitam, provavelmente começarão a se envolver mais fazendo com que as preocupações diminuam, consequentemente se aproximarão mais fazendo também com que a solidão se dissipe, e ai não mais sentirão tanta necessidade de ficarem trocando as coisas.







Conforme a noite avançava os galhos mais altos das árvores lentamente voltaram a encobrir um pouco a lua, diminuindo assim a iluminação da varanda, estava sonolento e os olhos já não ficavam mais abertos.



É curioso o sono aqui é diferente daquele que existe no mundo das preocupações, mesmo dormindo, a consciência persiste, ou seria a inconsciência. Aqui parece não haver qualquer divisão entre os desejos a imaginação e a casa do gramado, é tudo um mundo só, parece hão haver distinção entre o ambiente e a imaginação.



No mundo das preocupações essa divisão é muito evidente, existe um mundo dentro das pessoas, e um outro mundo que parece que os adultos chamam de real, que é o mundo que está fora das pessoas.



Acredito que essa divisão de um mundo interno e um outro externo às pessoas tenha em parte se originado por as pessoas terem tentado se desprender da própria natureza, não mais se envolvendo com ela, em sua busca doentia pelo des-envolvimento.



Aqui na casa do gramado se esta cisão: mundo interno, mundo externo; existe, ela é muito tênue, por outro lado predomina a afinidade, e os desejos simplesmente se realizam.







Valkiria dormia profundamente, assim como seus irmãos, agora a lua iluminava suavemente a varanda, mesclando a iluminação com as sobras das árvores.



Alguns raios do luar refletiam brandamente na face Valkiria, como se estivesse iluminando os sonhos dela.



Ela mantinha uma respiração suave e profunda, parecia ela própria ser um sonho.



Logo o dia amanheceria, as preocupações do outro mundo, nesse momento pareciam ter-se perdido no tempo.







Quando a lua se escondeu no horizonte, uma leve brisa fria balançou de mansinho as folhas das árvores, como se estivesse anunciando um novo dia que se aproximava.



O luar já não iluminava a varanda. Valkiria procurou se cobrir como se estivesse com frio, seus irmãos continuavam a dormir profundamente, os galhos das árvores se abaixaram ainda mais, como se quisessem impedir que o ar frio nos acordasse.



Aos poucos uma tênue iluminação começava a surgir denotando que o sol logo surgiria.



Com a iluminação, os arbustos que praticamente tinham fechado a varanda começaram a voltar lentamente ao lugar que antes ocupavam, além do gramado, as grandes árvores ainda cercavam toda a casa.



Me levantei de mansinho para não interromper os sonhos de Valkiria e dos irmãos, para dar uma volta ao redor da casa.



O número de árvore tinha aumentado muito e em nenhum lugar do gramado agora era possivel ver o horizonte, uma pequena entrada parecia começar a se desenhar por entre os arbustos, agora nos fundos da casa.



Até então a entrada da trilha sempre estivera à frente da varanda.



Voltei para junto de Valkiria e dos irmãos, ela parecia começar a acordar, mas se aconchegou ao banco, me cedendo espaço, para que retornássemos aos sonhos.







Quando a luz do sol começou a brilhar, iluminando toda a varanda, as árvores e arbustos já não ocupavam nenhuma porção do gramado, que ainda se encontrava molhado pelo sereno proveniente da madrugada.



Valkiria e os irmãos já estavam despertos e começavam a se ocupar com suas brincadeiras, fui dar uma volta ao redor da casa, a trilha que tinha começado a se desenhar durante a madrugada me chamou a atenção, mas nesse momento não havia nenhum sinal dela, o redor do gramado estava totalmente fechado pelos arbustos e pelas grandes árvores.



Fiquei em dúvida se tinha sido um sonho, ou se efetivamente tinha me levantado durante o alvorecer e caminhado ao redor da casa, por outro lado ainda estava ressentido pelas preocupações daqueles que me cuidavam no mundo das preocupações.



Aqui na casa do gramado predominava a tranquilidade, passaram-se dias sem qualquer novidade, foram dias de intensa satisfação, a solidão que às vezes sentia no outro mundo, agora não passava de um leve resquício em minha memória.



Sentia que aos poucos as lembranças do mundo das preocupações se assemelhavam a uma pequena névoa, que poderia se evapovar nos primeiros raios de sol.







Certa manhã ao acordar notei que as árvores e arbustos em frente à varanda tinham deixado uma pequena entrada, curioso caminhei até lá, atravessando o gramado, era a trilha que se desenhava, ela estava lá e parecia nunca ter deixado de estar.



Desejava caminhar por ela, Valkiria e os irmãos não denotaram qualquer interesse em me acompanhar. Valkiria estava balançando na cadeira e, como era seu costume, observando os menores.



Caminhei lentamente para a entrada da trilha, uma sensação de bem estar me acompanhava, na entrada dei uma última olhada em direção à Valkiria, que me acenou com a cabeça, denotando aceitação em relação ao meu desejo de ir caminhar.



No caminho uma sensação de bem estar me acompanhava, a leveza ao caminhar era tanta que sentia como se flutuasse sobre as pedras e vegetação rasteira, pela primeira vez notei o que poderia ter sido uma bifurcação na trilha, um pequeno trecho em que os arbustos não eram intransponíveis, parecia ser um outro caminho que há muito tempo não era utilizado.



Distraído com meus pensamentos, senti saudades daqueles que me cuidavam no outro mundo, um sentimento que me acompanhava desde a noite anterior.



Já não havia qualquer ressentimento pelo cuidado excessivo que tinham me destinado.







Uma leve mancha na parede de meu quarto se assemelhava a uma varanda, da qual podia ver um caminho que se desenhava por entre muitas árvores, mas quando a luz do sol entrava no quarto com maior intensidade, essa mancha se tornava tão tênue que praticamente desaparecia.



Era estranho que entre aqueles que me cuidavam, nunca tinham tecido qualquer comentário sobre essa mancha e o caminho que por ela se desenhava, não lembro de ter visto nada semelhante em qualquer outro comodo da casa, ou de qualquer outra casa que já havia entrado.



Parece que aquele caminho só se desenhava para este que hoje está aqui narrando, durante muitos anos senti saudades das incontáveis vezes que andei por essa trilha, que mais uma vez começa a se desenhar em minha vida.



Nesse dia aqueles que me cuidavam estavam me agradando, minha mãe veio me chamar para o café, cujo cheiro tinha se espalhado por toda a casa.







Os dias que se seguiram foram de tranquilidade e equilíbrio constantemente passeava entre os dois mundos, e isso amenizava as minhas preocupações quando me afastava do mundo que as caracteriza, também sentia meus desejos se realizarem o que me proporcionava uma sensação de bem estar.



Como os desejos se realizavam, e naquela fase parece que se limitavam a transitar entre os dois mundos, as preocupações também praticamente deixavam de existir.



A cada vez que usava a trilha para transitar entre os dois mundos, mais aquele esboço de bifurcação me chamava a atenção, pensava em ir ver o que lá havia.



Uma vez caminhando com Valkiria pela trilha, a uma distância que era possível ver o gramado e os menores, a bifurcação estava bem ali ao nosso alcance, nesse momento a irmã de Valkiria nos chamou a atenção, então retornamos ao gramado, e ficamos o resto da tarde na varanda.



Pouco antes de anoitecer voltei à trilha sozinho, mas a bifurcação não estava mais lá.







Quando começou a escurecer, enquanto balançava na cadeira da varanda, Valkiria e os menores brincavam tranquilamente à minha frente no gramado, uma sensação de inquietude tomou conta de meus pensamentos, tinha vindo a impressão de que um dia não mais acharia o caminho da casa do gramado, de Valkiria, dos seus irmãos, do gramado, das árvores e arbustos.



Como percebendo meus pensamentos Valkiria se sentou ao meu lado, em poucos instantes as árvores e arbustos tomaram conta de todo o gramado, os menores também se apertaram e quiseram também sentarem-se e balançar na cadeira.



Gentilmente parece que a cadeira aumentou de tamanho e envolveu a nós quatro em seus braços, os galhos das árvores mais próximas adentraram a varanda e se debruçaram sobre nós, como se estivessem protegendo os sonhos que logo viriam.







Foi uma noite longa, acompanhada de um sono pesado, quando acordamos o sol já tinha nascido e o gramado já tinha secado, sem deixar marcas do orvalho noturno, ficamos na varanda, nos esquentando ao sol.



As árvores e arbustos já tinham voltado aos seus lugares, mas não havia nenhum sinal da trilha, o gramado, a casa e nós quatro estávamos totalmente envolvidos pelas grandes árvores e arbustos.



Uma sensação de paz, tranquilidade e ternura tomava conta de nosso pequeno Universo.







À tarde, uma pequena entrada começou a se desenhar entre os arbustos em frente à varanda, logo além do gramado, enquanto me dirigia a ele. Valkiria e seus irmãos entraram na casa, como se estivessem sendo abraçados por ela.



Por um instante Valkiria parou à porta da casa enquanto eu estava em frente à trilha, ela sorriu como se estivesse se despedindo e deixou a porta aberta, denotando que a casa do gramado estaria ali, no momento em que eu desejasse retornar.



Era o começo da tarde ainda, a luz do sol passava entre as folhas das árvores, acima os galhos fechavam tanto a trilha, que o verde das folhas se mesclavam com os pontos azuis do céu.



No caminho parei quando me deparei com o lugar que parecia ser uma bifurcação, lá os arbustos não fechavam tanto a passagem, se forçasse um pouco conseguiria passar entre eles.



Fiquei olhando por um longo tempo, notei que havia uma pequena clareira, muitas pedras e ao fundo os arbustos e árvores se mostravam tão intransponíveis como o eram ao longo da trilha.



Havia ainda um pequeno trecho em um dos cantos clareira, com arbustos em volta e não era possivel ver o que lá havia.



Continuei meu caminho, quando me deparei no quintal da casa onde morava no outro mundo, estava próximo do anoitecer, mas ainda havia outras crianças brincando na rua.



Quando entrei em casa minha mãe perguntou se eu estava brincando com outras crianças, acenei confirmando o questionamento dela, e quis ir descansar, o caminhar pela trilha tinha me deixado cansado.



Antes de ir dormir tinha pensado em na próxima vez que andasse pela trilha iria tentar entrar pela bifurcação para ver o que havia naquela clareira.



O curioso é que nas minhas outras idas e voltas à casa do gramado quando me dava por mim já me encontrava lá, ou o mundo das preocupações, parece que a trilha estava me evitando.



Outras vezes cheguei a pensar em ir até a bifurcação, mas quando ia procurá-la, a trilha não estava lá, ainda quando ia pela trilha mesmo pensando em entrar na bifurcação, quando percebia ela já tinha ficado para tráz, e em outras vezes a bifurcação não se encontrava onde deveria estar.







Houve um momento em que tinha decidido ir à bifurcação e quis ir junto com Valkiria, mas nesse momento ela se distraia com o irmão menor e, quando ela se ocupava com algo, tinha o hábito de não interromper o que fazia.



Parecia que tudo que Valkiria fazia era muito importante e sempre que se fazia necessário ela estava pronta e presente.



A irmã do meio nesse momento balançava na cadeira prestando atenção em Valkiria, fui até ela para fazer companhia, ela era pouco menor que eu, devia ter um ou dois anos menos.



Nos demos as mãos e fomos andar pelo gramado, ao chegar próximos à trilha olhamos em direção à Valkiria que ainda estava atenta ao irmão, entramos na trilha e caminhavamos lentamente, no princípio ela se divertia, sentava em cada pedra e queria tocar todas as árvores que eram acessíveis.



Estavamos distraídos caminhando quando me dei por conta que o gramado e a casa não estavam mais à vista e nesse ponto a trilha estava mais escura encberta pelas sombras, pois as árvores cobriam praticamente todo o céu.



Quando ela percebeu que não via mais a casa e estava em um lugar mais distante ficou muito assustada e desorientada, se agarrou às minhas mãos e parecia desesperada, perdida, e com muito medo.



Tentei acalmá-la mostrando que estava tudo bem, e retornei ao encontro de Valkiria.



Quando chegamos ela estava em prantos, Valkiria já estava com o irmão dentro da trilha nos procurando, fomos os quatro de mãos dadas até a varanda e ficamos um pouco balançando na cadeira.











A primeira vez dentro da casa.







Quando começou a anoitecer Valkiria pegou nas mãos dos irmãos e na minha também e quis que entrássemos na casa.



Essa casa já me era tão familiar, depois de tantas vezes que lá tinha estado, mas até então nunca tinha entrado.



Tudo era muito limpo e organizado, parece que não havia nada fora de lugar e nada a ser feito, era aconchegante e encantador, me sentia como que se sempre estivesse estado lá, sentia que como Valkiria e os irmãos, também fazia parte dela.



Me senti convidado a ficar, não só por Valkiria e pelos irmãos, mas pela própria casa.



Quando anoiteceu fomos dormir, havia um outro quarto, mas nós quatro fomos para o mesmo, o outro quarto era o único comodo da casa que tinha uma porta, e estava fechada.



Lá fora já estava escuro, dava para ver levemente a luz do luar que conseguia passar pelos galhos das árvores era possível sentir que os arbustos e árvores estavam muito próximos à casa e que tinham tomado conta de todo o gramado, como se estivessem protegendo a casa e quem nela habitava.



Percebi que podia caminhar sozinho em qualquer lugar da trilha, com Valkiria nas proximidades, até onde fosse possível ver a casa, o gramado e os irmãos, se fossemos os quatro juntos podíamos nos distanciar um pouco mais, porém trilha adentro só poderia ir sózinho, enquanto tivesse ligações com o mundo das preocupações.







Nos dias que se seguiram, não fomos além do gramado, também me sentia convidado e circulava pela casa, exceto no quarto que estava sempre fechado, era uma casa muito acolhedora e confortável, estava em perfeita sintonia com o ambiente que a rodeava.



Enquanto os menores brincavam na varanda caminhei com Valkiria pelo gramado por uns instantes e fomos até a entrada da trilha. Valkiria continuou comigo trilha adentro, mas nesse dia ela estava muito sinuosa, andavamos em círculos ao redor da casa e parecia que a varanda nos acompanhava de forma que estava sempre à nossa vista, o gramado estava muito reduzido, poucos metros o separavam da varanda.



Valkiria sentiu meu desejo de voltar ao mundo das preocupações, sentamos por alguns instantes em umas pedras e ficamos nos olhando e às crianças que brincavam na varanda.



Nos despedimos com os olhos, dei uma última olhada em direção aos menores e Valkiria depois caminhei pela trilha adentro.



Valkiria continuou sentada nas pedras me observando, quando cheguei em frente à bifurcação ainda via Valkiria ao longe, senti que ela se entristecera, ainda que não fosse possível ver a sua face, quando me debrucei nos arbustos tentando ver a clareira.



Diante dessa sensação, voltei à trilha em direção ao mundo das preocupações, uma sensação de alívio e ternura invadiram meu peito.



Dei uma última olhada em direção à Valkiria que nesse momento se levantava e ia em direção à varanda, notei que as curvas até a casa agora eram uma única reta, parei e fiquei olhando até que ela chegasse à casa.



Senti que Valkiria, os irmãos, a casa, o gramado, as árvores e a própria trilha tinham se sentido aliviadas, no caminho sentia os galhos das árvores e arbustos tocando as minhas mãos, como se caminhasse de mãos dadas com a trilha.







Despedida..


Quando acordei pela manhã, o cheiro do café já tinha ocupado todos os cômodos da casa, diferente das outras vezes a mancha na parede que se assemelhava a uma varanda, não estava lá. Em seu lugar tinha uma varanda que parecia ter acabado de ser construída, ainda dava para sentir o cheiro da madeira que a constituia, além da varanda no lugar da rua que costumava andar e ver outras crianças, se desenrolava uma densa floresta com árvores muito grandes, há algum tempo já conhecidas.



Levantei e fui à cozinha, lá só estava minha mãe, que prontamente me arrumou o café, os demais já não estavam na casa, se ocupavam com os afazeres do mundo das preocupações.



Tomei o café muito lentamente, senti vontade de chamar minha mãe à mesa, para conversar, queria que os outros também acompanhassem, mas não pedi, sabia que essa atitude ia gerar preocupações.



Quando terminei o café fiquei um longo tempo só olhando enquanto minha mãe continuava as arrumações, quando ela percebeu que eu não me levantava sugeriu que eu trocasse as roupas e fosse brincar com outras crianças.







Sai da mesa e fui dar uma olhada no quintal, depois calmamente fiquei passeando pela casa, fui visitar todos os cômodos, curioso como no mundo das preocupações as pessoas acumulam coisas, mesmo sendo de uma família humilde, havia muitos móveis e objetos na casa, a maioria não tinha qualquer finalidade e acabavam por dar ainda mais trabalho às pessoas.



No mundo das preocupações as pessoas se ocupam muito em acumular coisas, não percebem que o que lhes falta está dentro delas e nenhum objeto que possam construir ou comprar jamais irá ocupar o lugar dessa falta.



Na casa do gramado praticamente não havia objetos ou móveis, e os poucos que tinham servia a alguma finalidade e lá sempre estava tudo limpo e organizado, lá a gente tem muito poucas coisas, mas ainda assim temos tudo de que precisamos, e como o que precisamos não está simbolizado nos objetos, nunca nos falta nada.



Já no mundo das preocupações, as pessoas não percebem o que lhes falta, assim ficam acumulando coisas, e como não se suprem com o que efetivamente precisam, cada vez sentem mais necessidades de adquirirem coisas que não têm finalidades, mas mesmo assim, sentem-se insatisfeitos e acham que isso se deve a não conseguirem todas as coisas que acham que precisam, e assim ficam cada vez mais preocupados.







Voltei à cozinha e fiquei olhando para minha mãe que continuava a arrumar a casa, depois de um tempo ela veio em minha direção e disse que o dia estava bonito, tinha sol, e sugeriu que eu fosse brincar.



Dei uma última volta pela casa e me dirigi ao quarto, a varanda ainda estava lá, me sentei na cama e só fiquei olhando às vezes para as árvores que estavam no lugar da rua, e outras vezes para a casa.



Com calma me dirigi à varanda, com passos lentos e curtos, sabia que depois que a atravessasse o mundo das preocupações iria se transformar em um resquício de memória, perdidas em minhas lembranças.



Quando ainda estava na varanda, o mundo das preocupações parecia se transformar em uma névoa que evaporava ao ser aquecida pelo sol.



Ao colocar os pés na relva, a trilha já há tanto conhecida começou a se desenhar à minha frente, em uma última olhada para tráz, já não havia nenhuma marca do mundo das preocupações, me encontrava na trilha, totalmente envolto pelos arbustos e pelas grandes árvores.







Meus passos trilha adentro eram lentos e curtos, já não olhava mais para tráz, mas sentia as árvores e arbustos se fechando como se estivessem me abraçando, a cada passo mais árvores surgiam apagando o caminho que já tinha sido uma trilha ligando a casa do gramado ao mundo das preocupações.



Ao chegar à bifurcação também quis dar uma olhada, no passado a curiosidade me levou a esse outro mundo, mas dessa vez os arbustos se fecharam mais dificultando muito agora entrar lá.



Nesse passado a curiosidade me afastou por algumas décadas da casa do gramado, mas isso é uma outro história, para uma outra época.



Afinal nesse mundo mágico, tempo é espaço e espaço é tempo. O passado ainda irá acontecer, o presente pode ter sido ontem, agora talvez seja o futuro.



Assim enquanto olhava à bifurcação as árvores a fecharam apagando o acesso àquilo que um dia foi uma clareira, as árvores e arbustos não deixaram qualquer sinal do que fora a bifurcação.



Chegando próximo ao gramado, Valkiria veio ao meu encontro enquanto os menores continuaram a brincar na varanda.



Ficamos um longo tempo balançando na cadeira só observando os menores, quando se cansaram entramos juntos na casa, em alguns instantes as árvores fecharam totalmente qualquer possível acesso à casa, nos abraçando e protegendo.



Amanhã não mais haveria casa ou varanda, nem gramado ou cadeira de balanço e ao mesmo tempo eu, Valkiria, os menores, a casa, a varanda, o gramado e toda a selva passaríamos a ser parte de um todo.



Um Universo infinito, vivo, pulsante.



E, talvez um dia, as pessoas que habitam o mundo das preocupações, deixem de tentar criar um mundo próprio, isolado, e também venham compor esse mesmo Universo.









Lá na curva onde espaço se encontra com o tempo,
bem juntinho ao centro de tabuleiro,
tempo é espaço e espaço é tempo,
o antes pode ser agora,
e o depois já aconteceu.



Lá não há primeira, segunda ou terceira pessoa,
todos somos nós.
Não importa se animados ou inanimados,
mas ao mesmo tempo,
o nós não deixa de ser eu, você ou ainda ele.



Lá se centra a essência do Universo,
por outro lado não há tempo nem espaço,
e ao mesmo tempo o espaço é infinito,
e o tempo pode ir adiante como ao passado retornar.



O centro do tabuleiro
se encontra logo ali, além da varanda,
só que quando lá chegar, tabuleiro e varanda,
além do Universo irão estar.





Fim.





Agradeço à Marion, que muito me inspirou e estimulou.



A gente continua se encontrando na varanda conversando e se balançando na cadeira, mas muitas vezes o olhar e a presença já dizem tudo que é necessário.


Contribuição: Krys