domingo, 12 de julho de 2015

Mundo dos Cristais.



Ao ouvir o Blim-Blom anunciando o seu trem Angélica se despediu de Valkíria e lentamente se dirigiu à plataforma de embarque.

No caminho refletia sobre os bons momentos que antecederam, tinha gostado muito da companhia, mas especialmente tinha se afeiçoado ao grande cachorro que acompanhava a sua amiga, o Freud-cão, sentiu que muito em breve iria ter um parecido para partilhar a presença.

Junto à plataforma, agora pensava em encontrar a sua pedra, aquela que quando polida iria refletir a imagem da sua estrela.

Percebeu que sua estada no Mundo das Estações tinha tido essa finalidade, refletir sobre como chegar ao seu mundo, sua estrela.

No Mundo das Estações as pessoas não tinham uma morada fixa, estavam sempre viajando de vilarejo em vilarejo, todos os locais em que permanecera por algum tempo, não tinham mais que algumas ruas. Exceto a Grande Estação, mas lá não era um lugar em que as pessoas viviam, era apenas um grande entroncamento, que possibilitava às pessoas chegarem a outras estações menores, onde se formavam as vilas.

Lá as pessoas gostavam principalmente das viagens, muitas vezes os caminhos são mais importantes do que os destinos.

Angélica tinha conhecido muitos vilarejos, percebeu que quando as pessoas se mudavam tinham esgotado o que tinham a aprender e ensinar nesses vilarejos e, assim levavam seus sentimentos e conhecimentos para algum outro lugar, o destino em si não era muito importante, o que era mais significativo era a viagem em si.

Ao chegar à plataforma seu trem já estava com as portas abertas, encontrou um acento vago junto à janela, nos fundos do vagão. Gostava de viajar junto à janela, especialmente de apreciar a vegetação rala próxima aos trilhos e, um pouco mais aos fundos as árvores, apreciava especialmente as serras, as montanhas. Essas tinham um encantamento especial, entre a vegetação sentia a proximidade de muitos seres mágicos.

Após o Blim-Blom característico notou que seu trem, com apenas uma composição estava praticamente vazio, não mais que umas poucas pessoas, diferente de quando viajava para outros vilarejos em que os trens tinham muitas composições e, sempre, quase que a totalidade dos acentos ficavam ocupados.

Angélica imaginava que o Mundo dos Cristais era mais um vilarejo no Mundo das Estações, mas muito em breve ia perceber que estava enganada.



Junto à janela, ainda com o trem parado ficou observando o vai e vem das pessoas, a plataforma na qual embarcara estava praticamente vazia, mas de onde estava tinha a visão de muitas outras plataformas.

Um leve sono deixou sua visão enevoada, olhando para além das plataformas conseguia sentir o Freud-cão descansando junto à Valkíria, sempre atento aos movimentos ao seu redor.

Ao ouvir o Blim-Blom anunciando que o seu trem iria partir teve a impressão de que Freud-cão tinha empinado as orelhas.

Assim que as duas portas do vagão se fecharam, lentamente o trem iniciou seu movimento, levou alguns minutos até que saísse da Grande Estação, nesse breve trajeto Angélica pôde uma vez mais ver as inúmeras plataformas de embarque e as pessoas indo e vindo.

Quando o trem deixou os limites da estação a sensação de que estava deixando esse mundo percorreu os seus pensamentos.

Só agora conseguia ouvir o som das rodas do trem resvalando os trilhos, com seu barulho característico, enquanto esteve nos limites da estação os demais ruídos abafavam os de seu trem.

Junto aos trilhos uma vegetação rala começava a surgir, na direção em que seguia uma cadeia de montanhas se desenhava à sua frente.

Angélica se levantou e se debruçou em uma pequena sacada nos fundos do vagão, onde estava a visão do Grande Estação ocupava todo o horizonte, que agora diminuía lentamente à medida que o seu trem se afastava.

Imaginando o hall onde as pessoas descansavam, o pequeno jardim, a fonte e o barulho da água corrente, sentiu Valkíria e Freud-cão também embarcando em um trem. Angélica percebeu que Valkíria estava indo ao encontro de seu amado.

Ao retornar para o interior do vagão, um cheiro que café que acabara de ser feito invadiu toda a composição.

Na frente do vagão uma pequena mesa com café, chás e várias guloseimas tinha sido deixada aos passageiros.

Depois de experimentar um chá o trem começou a  adentrar a cadeia de montanhas. No fundo, a Grande Estação agora se parecia com um pequeno ponto enevoado.

Ao voltar ao seu acento Angélica sentiu os olhos pesados, um leve sono tomava conta de todo o seu corpo. A idéia de encontrar a sua pedra dominava todos os seus pensamentos.



Quando o trem adentrava por entre as montanhas, alguns momentos após terem passado por um grande lago com águas límpidas e transparentes, estacionou em um pequeno vilarejo, composto por apenas uma pequena rua.

Com os olhos pesados ficou refletindo sobre o lago que acabara de passar, em suas viagens no Mundo das Estações Angélica tinha se deparado com inúmeros deles.

Pensativa refletiu sobre o valor que as pessoas dedicavam a esses lagos, todos tinham uma certa veneração por esses lugares, sempre construíam seus vilarejos nas proximidades deles, mas tinham os cuidados necessários para estarem distantes o suficiente para não interferirem com essa preciosidade.

Sabiam, e principalmente sentiam que as águas tinham algo de sagrado, a ser usado com sabedoria e sempre com o cuidado de manter sua pureza.

Nunca se permitiam interferir com as preciosidades que seu mundo fornecia às pessoas, sentiam ser simplesmente partes desse, desfrutavam o que lhes era oferecido, mas sem retirar nada além do que lhes era dado, ainda, da parte que lhes era oferecido, só retiravam para si aquilo que era necessário, deixando para outros tudo o que fosse excedente.

E entre tudo o que esse mundo oferecia às pessoas, as águas estavam entre que havia de mais precioso.

Curiosamente, mesmo com todo esse cuidado a quase totalidade de tudo que precisavam do lugar onde viviam tinham em abundância.

Em tempos remotos tinham descoberto que havia muito pouco a ser feito, sentiam que a energia e o tempo de que dispunham tinham por finalidade, principalmente, ser destinadas à própria vida, a apreciar a própria existência, a partilhar o mundo que habita em seu interior, com o mundo que os rodeia.

Sentiam, que em algum momento seu mundo interno e o mundo que há fora seriam um só.

Os olhos de Angélica estavam pesados, sentiu que as demais pessoas que tinham partilhado com ela a viagem até aqui, tinham descido nessa pequena estação.

O trem continuava parado na plataforma dessa pequena estação.



Angélica sentiu estar sozinha no trem que até aqui a transportara, com os olhos enevoados, Além da Janela, observava umas poucas pessoas nas dependências da Estação.

Na única rua do vilarejo, umas poucas casas dividiam o espaço com inúmeras árvores, que gentilmente ofereciam a sua sombra àqueles que desejassem desfrutá-las.

À frente das casas arbustos floridos despejavam as suas cores, que transbordavam, a quem desejasse apreciá-las. 

Vez por outra os leves ruídos do trem traziam o sono, deixando os olhos de Angélica ainda mais enevoados.

Ao olhar o corredor escuro da Estação que dava acesso ao vilarejo, teve a impressão de ter visto Freud-cão caminhando lentamente através dele.

Angélica sentiu um sobressalto, imaginou se Valkíria também não estaria com ele, meio cambaleando saiu do trem em direção ao corredor, desejou muito uma vez mais conversar com sua amiga e acarinhar seu doce companheiro.

Ao chegar na entrada do corredor viu o cachorro chegando à rua, sentindo-se um pouco mais desperta apressou seu passo, ao atingir o lado oposto do corredor, aquele que achou ser o cachorro de Valkíria voltou seu olhar para ela.

Angélica se deparou com o olhar mais dócil que até então conhecera, mas percebeu estar enganada, não era o Freud-cão, ainda que fosse parecido era um pouco menor, o porte e as feições também não eram os mesmos.

O olhar tinha particularmente chamado a atenção de Angélica, desejou muito a companhia daquele dócil ser que agora se voltava para ela.

Na entrada da Estação ele se aproximou e se sentou ao lado dela, nitidamente pedindo um carinho para Angélica, uma profunda sensação de bem estar invadiu seu coração.

Assim permaneceram por alguns instantes até que o trem apitou e o dócil cachorro se levantou e seguiu o seu caminho. Angélica tentou segui-lo, mas não conseguia acompanhar seus passos, já um pouco distante o dócil Bill-cão parou e olhou para trás em direção a Angélica, naquele momento estava se despedindo.

Emitiu um pequeno uivo e antes de adentrar entre as árvores uma vez mais dirigiu seu olhar para Angélica, que com um leve ponto de tristeza, sentiu que devia voltar ao seu trem, gostaria muito de ter a companhia daquele dócil ser, mas sentiu que isso ainda iria ocorrer em algum outro tempo.

Ao entrar no pequeno hall da Estação sentiu um cheiro forte de café que se espalhava em todo o ambiente.



Na estação o trem permanecia parado, aparentemente não teria mais nenhum passageiro.

O cheiro de café chamou a atenção da Angélica, próximo à plataforma, uma pequena mesa com umas poucas cadeiras à sua volta estava posta, com café, chá e várias outras guloseimas.

De onde estava viu um senhor que se aproximou da mesa e pegou um pequeno pedaço de bolo, mas não se dirigiu ao trem, seguiu seu caminho em direção ao vilarejo.

Angélica sentia fome, acomodou-se na mesa para desfrutar o café, não demorou e alguém surgiu para lhe fazer companhia, mas essa pessoa não desejava se alimentar naquele momento, ao notar que estava só, sentou-se junto a Angélica só para partilhar a presença.

O leve aroma do chá estava particularmente atraente, para fazer companhia enquanto Angélica se alimentava a sua companheira a acompanhava apreciando o chá.

- Você sabe quanto tempo ainda leva a viagem até o Mundo dos Cristais?

- Já estive lá uma vez, mas não me recordo se demorou para chegar, estava por demais atenta ao caminho.

Angélica notou que a sua companheira trazia um colar no pescoço com um cristal como pingente.

Ao perceber o olhar de Angélica respondeu:

- Eu encontrei essa pedra lá, desde então está sempre comigo, adoro ver o reflexo da minha estrela à noite, no cristal, antes de ir para o Mundo dos Sonhos.

Terminando seu café não deixou de arrumar a mesa e lavar os utensílios que utilizara sem deixar de se oferecer à sua companheira para lavar a xícara que ela utilizara, aceitando a gentileza, enquanto Angélica acabava a arrumação, preparou uma pequena bandeja com algumas guloseimas, chá e café e levou ao interior trem, em uma mesinha no fundo, onde Angélica tinha viajado até então.

Na volta se dirigiu a Angélica e disse:

- Desejo que você também encontre a sua pedra e se despediu com gentileza.

Depois de uma pequena volta nas dependências da estação Angélica se dirigiu ao trem.

Após se sentar junto à janela no fundo do vagão ouviu o blim-blom característico anunciando a partida.

Angélica era a única passageira.



Muito lentamente o trem iniciou seu movimento, Angélica só teve um breve instante para apreciar a única rua do vilarejo, após passar pela última casa da pequena rua, entre as árvores o dócil cachorro que há pouco estivera com ela ficou olhando o trem passar.

Entre as Montanhas Azuis emitiu seu apito característico, agora deslizava praticamente no topo da cadeia de montanhas.

Da janela Angélica desfrutava a visão de toda a serra, em um cantinho dela conseguia perceber a pequena estação onde estivera e uma mancha entre as árvores que achou ser a rua e as casas do vilarejo.

A conversa que tivera na estação fervilhava em sua mente, sabia que encontraria a sua pedra como a moça com quem falara enquanto apreciava o seu chá, e sentia que ainda voltaria a encontrar o cachorro que se parecia com o Freud-cão de Valkíria.

Agora o trem deslizava nos trilhos, praticamente sem ruídos, em uma subida íngreme, ao olhar para traz Angélica notou que as montanhas pareciam pequenas, já não conseguia ver qualquer sinal da última estação em que tinha estado, nem outros vilarejos entre elas.

Da janela já não conseguia perceber a vegetação ou as árvores, estava muito escuro.

À frente do trem no céu escuro inúmeras estrelas brilhavam intensamente. 

Angélica estava deixando o Mundo das Estações.



Depois de um longo tempo se revirando na cama sem conseguir dormir Franz se descobriu parcialmente, estava sentindo calor e ficou apreciando a parede do outro lado do seu quarto, mas estava por demais escuro, em sua cabeceira, através da janela uma branda iluminação vinda de uma lâmpada do corredor penetrava o quarto.

Quando se acostumou com a escuridão notou uma pequena varanda se desenhando na parede, nessa havia um banco de madeira para duas pessoas e em cada canto um vaso com algumas plantas, muito bem cuidadas.

Além da varanda o gramado e imensas árvores rodeando esse.

A cena poderia ser bastante peculiar, mas Franz vivia em uma grande cidade, distante de qualquer bosque.

Ao olhar para o lado, junto ao telefone em uma pequena mesinha os ponteiros do relógio desenhava 03h00, pelo silêncio e escuridão sentiu-se no meio da madrugada.

Misturado ao tic-tac do relógio começou a ouvir passos no corredor do seu quintal, mas não eram de uma pessoa, distinguia perfeitamente as unhas de quatro patas peludas resvalando a calçada.

Seu sono tinha ido embora, a única cena do sonho que se lembrava era de ter estado em uma pequena estação de trem, a qual exalava um forte cheiro de café.

Sabia que não mais conseguiria dormir naquela noite e aproveitando o aroma que ainda sentia desceu as escadas e se dirigiu à cozinha para apreciar um café tão forte quanto o aroma que sentira em seu sonho.

Não tinha dúvida de que o seu dócil Bill-cão adoraria partilhar alguma guloseima e a sua companhia até que o dia amanhecesse.



Do topo da escada, ainda no piso superior de sua casa Franz olhou nos olhos do dócil Bill-cão que já o esperava no corredor, junto ao pé da escada.

Franz sentou-se no penúltimo degrau por uns instantes e ficou acarinhando brandamente seu companheiro, sempre olhando nos seus olhos.

Lembrou-se do dia em que o conhecera, era cedo, o dia ainda estava clareando, mas se sentia atrasado.

Ao sair de casa, já fechando o portão um serzinho de quatro patas que caberia na palma de sua mão deitou a cabeça em seus pés.

Naquele momento Franz ficou sem saber ao certo o que fazer, timidamente o pequeno cachorro adentrou o quintal, quase que se arrastando e procurou por um cantinho, com um olhar tímido ficou olhando Franz nos olhos.

Nessa hora Franz foi adotado.

Ao olhar a cena, momentaneamente esqueceu sua pressa e voltou para a sua casa, esquentou um pouco de leite e acrescentou alguns pedaços de pão.

Voltando aos seus afazeres deixou o leite com pão para o bichinho e voltou a se concentrar em seus afazeres.

Enquanto fechava o portão por um instante observou o pequeno cachorro se deliciando.

Até então ele ainda não tinha nome, enquanto seguia seu caminho Franz pensativo imaginou que o coitadinho não iria sobreviver, estava por demais debilitado.



No decorrer do dia, imerso em seus esboços e cálculos, Franz não conseguia se concentrar, o olhar de seu novo amigo não saia de sua mente, ao entardecer, percebendo que o seu trabalho não rendia resolveu voltar para casa, levando seus projetos consigo.

Ao chegar encontrou o pequeno cachorro, que cabia na palma de sua mão no cantinho onde o deixara pela manhã, ao seu lado a tigela que continha o leite morno e uns poucos pedaços de pão estava vazia.

Quando se aproximou o dócil cãozinho se encolheu.

Fez uma leve carícia em sua cabeça, a única parte de seu corpo que ainda tinha uns poucos pelos.

Caminhou em direção à cozinha para preparar algum alimento para o pequeno anjo que tinha vindo adotá-lo.

Depois de alimentá-lo retornou ao interior da sua casa, sabia que ainda podia adiantar parte de seu trabalho.

Assim que anoiteceu parou um pouco para descansar e foi visitar seu pequeno amigo, limpou-o brandamente com um pano umedecido em água quente e um pouco de desinfetante, um exército de pulgas habitava o coitadinho.

Forrou com um pano mais grosso uma pequena caixa que encontrara sem finalidade em sua casa e o cobriu para passar a noite, depois de o alimentar e dar água uma vez mais.

Quando amanheceu e levou o leite com umas lascas de pão pela primeira vez o pequeno Bill abanou o rabo, sem no entanto sair de seu cantinho.

Por uma semana essa rotina se repetiu.



Agora na madrugada, ainda escura, sentado na escada, olhando nos olhos de seu dócil amigo era difícil imaginar a frágil criatura que conhecera há mais de uma década.

Se tinha um adjetivo que pudesse determinar o Bill-cão esse se denominaria de felicidade.

Desde que se recuperara de sua trágica infância, quando ainda era um bebe no que se refere à idade cronológica, uma vez que ele nunca deixou de o ser, ele sempre foi muito feliz e deixou um rastro de felicidade a todos aqueles que o conheceram.

Ele sempre estava ensinando a arte de viver e outras artes também.

Os primeiros raios de luz começaram a entrar pela janela da escada, enquanto Franz refletia. Cansado de ficar na mesma posição levantou e se dirigiu à cozinha em apenas dois saltos o dócil Bill já estava atrás de Franz.

Depois de esquentar um pouco de leite e ao vasculhar a estante a cozinha encontrou o pão de milho que tanto gostava.

Quando ainda estava morno Franz separou uma dose generosa de seu leite para o seu Bill. Agora enquanto apreciava um café de leite bem quente com a broa de milho, o dócil cachorro se apoiava com as patas traseiras no chão e as mãos dianteiras apoiadas em meu braço.

A cada porção do pão de milho que comia oferecia uma igual a meu sempre companheiro, repreendendo em tom de brincadeira a todos os farelos que deixava cair no chão.

Quando estava acabando foi só dizer “vamos passear” e em disparada, ansioso, ele saiu e já me esperava no portão. Ao dizer vamos ver a Lola ele empinou as orelhas e soltou um leve gemido que se assemelhava a um choro.



Enquanto Franz andava lentamente até o portão onde o dócil Bill o esperava, a história de seu companheiro se desenhou em sua mente, no portão, ansioso, Bill-cão emitiu um leve choro.

O Bill nunca deixou de ser criança, daquelas bem pequenas, mas seu corpo, forte, mostrava o passar dos anos, em seu focinho os pelos brancos se avolumavam, e suas pernas traseiras perdiam a força.

Nos últimos dias quando corria, ansioso pelo seu passeio chegou a cair algumas vezes, mas sempre se levantava logo, sem nenhuma reclamação.

Seu passeio sempre era breve, o mundo do Bill-cão não ia além da esquina, só algumas vezes foi um pouco mais longe, até um cantinho mágico, onde havia um portal, no pequeno jardim da casa onde Franz trabalhava através de uma pequena fresta que dava para ver a rua e uma floreira na calçada, o dócil Bill ficava apreciando a rua e o movimento, muitos daqueles que o viam, se aproximavam, para partilhar a presença.

Nesse dia o Bill não quis ir até a esquina, como ocorria muitas vezes, ao chegar na casa onde a Lola morava, não a encontrou, era cedo ainda, devia estar dormindo, assim quis voltar para casa, sabia que em algum outro momento a encontraria.



No decorrer do dia, depois de ter levado seu dócil companheiro para casa, enquanto trabalhava, a história do Bill-cão não parava de se desenrolar na mente de Franz.

Ao concluir seu trabalho na volta para casa ficou imaginando seu encontro com o Bill no portão à sua espera, sentia que ele ia desejar passear, quem sabe agora, pouco antes de escurecer ele se encontraria com a Lola, com a qual namorava constantemente no portão da casa dela.

Como tinha imaginado ao chegar, com as orelhas empinadas o Bill-cão estava à espera.

Após tirar os sapatos e um breve café sai com meu ansioso amigo para encontrar a Lola que ao vê-lo veio correndo ao seu encontro, o dócil Bill empinou suas orelhas e emitiu um leve choro.

Ficaram por um longo tempo namorando no portão.

De volta à casa depois de um banho e um breve lanche, enquanto via minhas anotações o Bill subiu em meu quarto e se deitou no tapete, ao lado da cama, sempre que o olhava a sua história não deixava de se desenrolar em minha mente.

Diferente de outros dias, nesse o dócil Bill adormeceu no tapete em meu quarto.

Aos poucos enquanto revia minhas anotações o sono também se fez pesado aos meus olhos.

Depois de uma breve carícia, que como resposta recebi um olhar cheio de ternura, também desejei dormir.

Assim que apaguei a luz fui me deitar, instantes antes ainda junto à porta perto do interruptor, recebi um último dócil olhar.

A noite estava mais escura que o habitual, já deitado uma leve garoa ressoava na calçada em frente à casa.

Aos poucos minhas pálpebras se tornaram ainda mais pesadas e, na parede, do lado oposto à minha cama, a varanda há tanto conhecida começou a se desenhar, além da varanda árvores enormes e uma densa vegetação rodeava a casa, recebendo com gratidão a branda chuva que molhava o chão.

Sonhando senti a cabeça do meu dócil companheiro junto à cama, próximo às minhas mãos, no quarto escuro tudo que conseguia enxergar eram o brilho dos olhos do Bill e a varanda, agora nitidamente desenhada na parede oposta.

Senti o Bill puxando as minhas mãos no escuro, me sentei na cama enfrente a ele e, acarinhando sua cabeça flutuamos, lentamente em direção à varanda e à Trilha.

A chuva tinha cessado, entre os galhos das árvores, na linha do horizonte a Estrela Azul brilhava intensamente e, no céu, no centro a lua pálida tinha seu brilho ofuscado pela intensidade da luz que vinha de minha estrela.

Tive a sensação de ter flutuado com o Bill-cão por horas, ao chegar do lado oposto da Trilha, junto à Casa do Gramado, Valkíria nos aguardava.

Ficamos um longo tempo na varanda de nossa casa, com o nosso Bill, deitado entre a gente.

Cansado voltei a adormecer, ao despertar a claridade do dia já tinha invadido meu quarto, do lado de fora a chuva persistia, senti que o dia estava chorando.

Ao descer para apreciar meu café da manhã senti que ele não tinha gosto, a casa estava muito vazia, não tinha mais com quem partilhar meu pãozinho de milho.



Angélica se sentia sonolenta, agora distante do Mundo das Estações ao olhar pela janela sentiu-se rodeada pela escuridão e em qualquer direção que olhasse infinitas estrelas emitiam um brilho tênue, só à sua frente, lá no infinito, rodeada por uma imensa escuridão a Estrela Azul se destacava das demais, brilhando intensamente e emprestando a sua luz para todas as dependência do vagão onde viajava em direção ao Mundo dos Cristais.

Sentiu-se só e com os olhos pesados, à sua volta reinava o total silêncio sequer ouvia o resvalar das rodas do trem nos trilhos.

Desejou muito a companhia do dócil cachorro que em um primeiro momento achou ser muito parecido com o Freud-cão de Valkíria.

Foi nesse momento que percebeu a diferença entre sentir-se só e a solidão, agora no escuro e no silêncio sentiu como nunca a companhia de si mesma, e esse sentimento era muito diferente da solidão que muitas vezes sentia, mesmo quando rodeada por outras pessoas.

Lembrou-se de quando estava na Grande Estação junto à Valkíria e ao Freud-cão, foram breves instantes, mas mesmo quando nada tinham a dizer sentia a companhia, a presença deles, sentiu que muitas vezes a simples presença já traz em si tudo o que é necessário.

Agora a caminho do Mundo dos Cristais, conseguia desfrutar a presença de si própria.

Em um último olhar pela janela sentiu o trem passar por um cristal alaranjado que vagava no espaço lentamente seguindo a mesma direção que ela.

Ao apreciar o cristal seus olhos ficaram ainda mais pesados e sentiu que em algum momento voltaria a ter a presença do dócil cachorro que fizera companhia a ela na última estação.



Sonolenta Angélica se lembrou do café, chá e algumas guloseimas que tinham sido deixadas para ela em sua última parada.

Ao se aproximar da pequena bandeja em cima de uma mesinha coberta com cuidado, se deu conta da atenção que todos tinham em seu mundo, não importava se viviam em um pequeno vilarejo ou nas poucas cidades grandes que havia no Mundo das Estações.

Lembrou-se de uma conversa certa vez, quando morava em uma dessas grandes cidades em que uma pessoa vinda de algum outro mundo dizia que os grandes centros afastavam as pessoas e as desumanizavam.

Angélica tinha ouvido esse diálogo de desconhecidos, mas nunca acreditou nele, era verdade que nessas grandes cidades, diferente dos vilarejos a vida era um pouco mais movimentada e não era possível conhecer todos, diferente do que ocorria nos vilarejos, por outro lado, em sua vida sempre teve o cuidado e companhia das pessoas independente das dimensões das cidades em que viveu.

Imaginou que aquele comentário se referia a algum outro mundo e concluiu que esse afastamento ou falta de humanidade não tinham relação com a dimensão das cidades, e sim com a forma como essas pessoas se relacionam consigo próprias.

Sentiu que aqueles que eram distantes de si próprios não tinham nenhuma possibilidade de se aproximar de outros.

Ao levantar o pano que cobria a pequena bandeja teve uma grata surpresa, o chá que tanto gostava ainda estava levemente aquecido e em um pequeno prato algumas broas de milho ainda exalavam um cheiro agradável.

Ao pegar o chá e apreciar a broa de milho, o cristal alaranjado que tinha visto há pouco ficou muito próximo distante alguns metros apenas da janela do vagão onde agora se encontrava.

Ao olhar para o cristal percebeu que a sua luz alaranjada se mesclava com a luz da Grande Estrela Azul.

Quando comia a broa de milho com o chá teve a nítida impressão de ter ouvido um leve choro de um cachorro, mas nada viu à sua volta.

Mais um vez lembrou-se do dócil cachorro que tinha encontrado em sua última parada.



Ao retornar a uma das poltronas do vagão, ainda que mergulhada no total silêncio e na escuridão que rodeava o trem teve a sensação de estar reduzindo a velocidade.

Olhando à frente percebeu uma estrela cristalina aumentar o seu brilho. O cristal alaranjado que vagava ao lado do trem há instantes, aumentou vertiginosamente sua velocidade em direção a essa mesma estrela, desaparecendo rapidamente no horizonte.

Agora próximo à estrela cristalina mergulhados na escuridão podia apreciar vários mundos à sua volta, uma vez mais sentiu uma redução ainda maior na velocidade do trem, que se aproximava do mundo mais distante da estrela cristalina.

À medida que se aproximava sentia a transparência desse mundo filtrando a luz da estrela cristalina formando infinitas mesclas de cores, ao redor do Mundo dos Cristais, três luas menores também de cristal, espelhando múltiplas cores o circundavam.

Por alguns momentos Angélica cegou dado a intensidade dos brilhos à sua volta. Depois de alguns instantes com uma das mãos fechando parcialmente os olhos começou a distinguir algumas sombras.

Lentamente o trem se aproximava da superfície do Mundo dos Cristais, até parar totalmente.

Mesmo fechando todas as cortinas do vagão a luz era muito intensa, assustada Angélica fechou os olhos com as duas mãos e se voltou ao fundo do vagão procurando por alguma sombra.

Da entrada de uma pequena caverna próximo de onde o trem estacionou três pessoas com a cabeça totalmente coberta com um véu escuro saíram em direção ao vagão onde Angélica estava.

Em passos lentos se aproximaram e cobriram a cabeça dela com um véu idêntico ao que estavam usando, amparando-a pelo braço, uma pessoa de cada lado e o terceiro à frente a guiaram em direção à entrada da caverna.

Quando entraram Angélica ouviu o trem iniciando seu movimento e se distanciando.

Dentro da caverna ainda amparada pelos braços sentiu estar andando em um leve declive, depois de alguns instantes as duas mulheres que ampararam Angélica pelos braços e o homem que caminhava à frente lentamente retiraram seus véus.

Angélica sentiu que pararam de caminhar e a dirigiram a um lugar em que ela pudesse se sentar, pela textura sentiu que era uma grande pedra.

Cuidadosamente as duas mulheres com um sorriso em seus rostos retiraram o véu dela.

Virando a face em todas as direções Angélica se sentiu cega e chorou.



Enquanto uma delas tentava acalmar, transmitir um pouco de calma à Angélica a outra trouxe um recipiente com água.

Depois de colocar um pouco em um pequeno recipiente para que ela pudesse beber, usou o restante para molhar um pano que utilizou para passar no rosto e nos cabelos da recém chegada.

Angélica não conseguia compreender o que as pessoas falavam, além das duas que a ajudavam sentia a presença de outras pessoas, mas à sua volta só havia escuridão.

Após apreciar a água conseguiu se sentir um pouco mais calma, na seqüência lhe ofereceram algo para comer, não conseguia identificar o que era, mas o gosto lhe trazia um pouco de prazer.

Tentou conversar com aqueles que a ajudavam, mas carinhosamente aquela que lhe deu a preciosa água colocou um de seus dedos nos seus lábios, continuava ouvindo outras pessoas conversando sem nada compreender.

A delicadeza do toque porém deixou claro que as palavras eram desnecessárias, muitas vezes um pequeno gesto, a presença, já trazem em si todos os conteúdos necessários.

Depois que se alimentou ajudaram-na a se levantar e a dirigiram a um canto, um espaço em que podia se deitar. Angélica se sentia cansada, a viagem tinha sido longa e o excesso de luz que a cegara trouxe intensa angústia, precisava dormir um pouco.

O sono sempre traz como parceiro os sonhos, Angélica como todos que nasceram no Mundo das Estações sentiam que nos sonhos a vida era até mais intensa do que nos momentos que estavam acordados, as pessoas que viviam nos pequenos vilarejos sabiam que era nos sonhos que encontravam os sentidos para a vida, foi em um desses que sentiu ter chegado o momento de vir conhecer o Mundo dos Cristais.

Imersa na escuridão cansada, sentiu que seu corpo não mais a obedecia quando ouviu passos, mas eram diferentes dos passos pessoas, sentia que unhas grossas resvalavam um chão que talvez fosse feito de pedras.

Mais uma vez sentiu a mão daquela mulher que lhe oferecera a água acarinhar e ajeitar os seus cabelos e, com cuidado voltou a enrolar o véu cobrindo os seus olhos.

Olhando à frente na escuridão completa percebeu um desenho se formando na parede do local onde estava deitada, era um homem sentado em uma cama, no meio da penumbra, usava óculos, ele acarinhava gentilmente a cabeça do dócil cachorro que encontrara na última estação em que esteve no Mundo das Estações, que em um primeiro momento achou ser parecido com o Freud-cão de Valkíria.



Franz acabara de acordar, ao olhar em direção à janela ficou em dúvida, não sabia se o dia estava amanhecendo ou se era a noite que estava avizinhando.

Ainda deitado sentiu a presença de seu dócil Bill-cão ao seu lado, ele estava ao seu lado com a cabeça apoiada na cama, bem próximo de Franz, que se sentia entorpecido, ainda com resquícios da dor de cabeça que estava sentindo ao chegar em casa.

Lembrou ter chegado no meio da tarde, estava muito quente e o calor o tinha deixado com dor de cabeça, ao chegar tinha ido direto ao seu quarto logo após ter tomado algo para aliviar a dor, como era hábito, o dócil Bill acompanhou todos os seus passos, mesmo sem ter recebido maior atenção, sem dúvida percebeu que Franz não estava bem.

Depois que se deitou sentiu seu companheiro ao seu lado, acarinhou brevemente as suas orelhas e na seqüência sentiu os olhos pesados e adormeceu.

Sonhou com um mundo distante, só se lembrava de algumas imagens, uma moça muito bonita viajando em um trem, mas não era a sua doce Valkíria, também tinha visto depois essa mesma moça em um outro lugar, só que agora ela estava com um tipo de venda, um pano enrolado em sua cabeça, cobrindo os olhos.

Agora acordado percebeu que tinha escurecido e entendeu que o que vira a pouco tinha sido o anoitecer, ficou pensando no sonho, mas não conseguiu entendê-lo.

Sentiu que precisava acender a lâmpada, mas ainda sentia o corpo entorpecido, no quarto agora escuro percebia o brilho nos olhos de seu dócil Bill, voltou a acarinhar as orelhas dele e ouviu um leve choro de seu sempre companheiro, que levantou uma das mãos e com essa tentava movimentar um dos braços de Franz.

No escuro sentou-se na cama e se voltou ao seu amigo, sentiu que a dor tinha cessado.

Lentamente se levantou e se dirigiu à porta de seu quarto para acender a lâmpada, ao se dirigir à escada o Bill se levantou correndo e veio junto, partilhar a presença.

Na cozinha começou a preparar um café, notou que em uma pequena cesta na mesa onde guardava o pão tinha uma boa porção da broa de milho que tanto ele quanto seu companheiro gostavam tanto.

Depois de partilhar o café com leite e o pão de milho sentou-se no sofá, como era costume o dócil Bill apoiou a cabeça em seu colo.

Franz pensava em Valkíria e naquele momento desejou muito a companhia dela, ali ao seu lado, mas se sentiu confortado por ela sempre habitar seu coração.

Por um longo tempo ficou pensativo acarinhando a cabeça do Bill, nas imagens de seu sonho, desejava saber quem era a moça que vira no sonho, queria saber porque ela estava com os olhos vendados, sentiu que havia algo importante a ser revelado, mas não conseguia compreender.

Ficou imaginando se a sua Valkíria poderia ajudá-lo a compreender esse sonho, sentia que havia algo muito importante por traz dele.



Angélica desfrutou de um sono profundo, permeado por sonhos.

Achou estar caminhando, mas seus pés praticamente não se moviam, deslizavam suavemente sobre um chão de pedras coloridas, estava em uma trilha, só que não havia árvores ou plantas, era um tipo de caverna muito extensa totalmente coberta por cristais.

Se sentiu maravilhada, o ambiente era uma penumbra, mas qualquer raio de luz que adentrava imediatamente refletia nos cristais, que espalhavam a pouca luz em raios multicoloridos.

Intercalado com esse espetáculo de luzes se recordava da cena do homem sentado na cama acarinhando as orelhas do cachorro sentado ao seu lado.

Agora teve a certeza o cachorro que via ao lado da cama sendo acarinhando era o mesmo que encontrara na última estação que tinha parado.

Desejou muito a companhia dele naquele momento em seu coração sentia a doçura e a presença dele.

Não conseguia compreender, mas teve a percepção de que estava sonhando, ficou se perguntando quem seria o homem sentado na cama, achou que ele partilhava a mesma história daquele dócil cachorro com quem brincara brevemente quando aguardava na estação.

Sentiu que precisava encontrar aquela pessoa, precisava avisar que tinha encontrado seu dócil companheiro.

Depois de muitas horas de sono, voltou a sentir o movimento de pessoas nas proximidades.

A mesma moça que tinha lhe dado água anteriormente e que depois cobrira seus olhos estava de volta.

Falou algo nos ouvidos de Angélica, bem baixo, mas ela não compreendia as palavras, era uma linguagem desconhecida, mas a presença, o toque, os cuidados traziam todos os significados que necessitava.

Com cuidado a moça retirou o véu que cobria os olhos de Angélica, e ofereceu um outro, menor e mais leve, menos espesso, que cobria apenas os seus olhos.

Amparando-a pela mão a levou para um outro salão, um cheiro de café e pão que acabara de ser feito tomava conta de todo o ambiente.



Enquanto apreciava o café com pão de milho que lhe tinham oferecido Angélica refletia.

Era curioso como os demais sentidos ficaram aguçados diante da perda momentânea da visão, o pão de milho e o chá tinham um gosto muito apurado, sentia imenso prazer frente a essa pequena dádiva.

Sabia que nas coisas pequenas, simples, é que se encontrava os maiores prazeres.

Angélica agora tinha duvidas em relação ao tempo, achava que já estava naquele local há alguns dias, mas não tinha parâmetros para medir o tempo, se sentia em um lugar fechado, distante da luz do sol ou do aconchego das estrelas.

Percebia que aquelas pessoas viviam em uma espécie de caverna, com muitos corredores, alguns deles extensos, sentia que tanto o chão como as paredes eram constituídos de pedras, aparentemente incrustadas, sentia que eram lisas, o toque com as mãos nas paredes lhe proporcionava prazer.

Quando estava terminando seu café percebeu algumas sombras, estava muito escuro, mas um grande alivio percorreu o seu coração, percebeu que sua visão estava voltando.



Aos poucos Angélica já conseguia, ainda que lentamente caminhar pelos corredores sem precisar de ajuda.

Sentia ao seu lado a companhia da mulher que atenciosamente a ajudava, a mesma que cobrira seus olhos quando chegou.

Agora já conseguia caminhar sem precisar do apoio de uma mão amiga e, deslizar as mãos nas pedras lisas das paredes lhe trazia muito prazer. Suas mãos estavam tendo parcialmente a função que antes tinham seus olhos.

Depois de ter esbarrado em uma pedra maior, a mulher ofereceu seu braço para que pudessem continuar a caminhada.

Angélica sentia gratidão pelos cuidados, queria saber ao menos o nome de sua amiga e, ainda que não compreendesse o que ela dizia, não deixavam de trocar algumas palavras.

Sentia a gentileza não no que ela dizia, ainda que não conseguisse compreender, mas na tonalidade, nos afetos que essas palavras traziam. Da mesma forma percebia que sua anfitriã entendia a gratidão em suas palavras.

Enquanto caminhavam Angélica percebeu sombras passarem em por elas em passos mais rápidos, achou que iam em direção à entrada da caverna, por onde tinha passado conduzida quando chegou ao Mundo dos Cristais.

Mesmo deixando livre o caminho ela e sua amiga também seguiam na mesma direção.

À frente sentiu um clarão, imaginou ser a entrada da caverna, mas outras pessoas as cercaram, para que não fossem até a entrada.

Agora já não percebia qualquer sombra, a claridade era tão intensa que se lembrou quando chegou a esse mundo e, ainda no vagão em desespero fechou todas as cortinas e ficou em um canto, na tentativa de se esconder em alguma sombra.

Sentiu sua anfitriã tentando virá-la de costas para o clarão, foi nesse momento que teve a certeza de estar em uma caverna, tinha um corredor muito extenso e, só no fim dele conseguia perceber uma sombra branda.

Pelo movimento das pessoas sentiu que algo novo tinha chegado ao Mundo dos Cristais.

Aos poucos percebeu que a luz na entrada da caverna estava diminuindo sua intensidade, estava anoitecendo.

Teve a sensação pelas falas das pessoas, inda que não as compreendesse, que falavam sobre um objeto que tinha descido do céu e se acomodado enfrente à entrada da caverna.

Aos poucos Angélica voltou a ver as sombras, a luz que vinha do lado de fora era pouco mais intensa do que a que tinha no interior.

Quando a sua colega a deixou se virar para o exterior da caverna, uma luz alaranjada intensa ocupou tudo o que restava de sua visão, percebeu vir do objeto que estava na entrada da caverna.

Era um grande cristal alaranjado que tinha descido do céu.

Uma imensa sensação de paz invadiu o coração de todos que estavam em volta.

Mesmo sem ver Angélica reconheceu o cristal, era o mesmo que tinha vagado ao lado do trem em que viera no escuro e frio Universo.

De seu interior, com carinha de sono saiu o dócil cachorro que tinha encontrado na última estação que parara, o mesmo que tinha visto em seu sonho ao lado homem que sentado na cama o acarinhava.

Em passos lentos se aproximou de Angélica, ele já a conhecia, abraçaram-se ternamente, com muito amor.



Foi nesse momento que Angélica começou a recuperar sua visão, o dócil cão tinha lhe trazido esse presente, agora conseguia ver um pouco mais do que vultos, percebeu que o dia estava se acabando, mas a entrada da caverna ainda estava muito clara.

Por isso virou as costas para a entrada, o Bill-cão não saia de seu lado, nitidamente tinha vindo ao Mundo dos Cristais para fazer companhia à Angélica.

Pela primeira vez conseguiu ver o vulto da mulher que a ajudava, ainda não conseguia distinguir as suas feições, mas percebeu que tinha cabelos longos, encaracolados, envolvendo todo o seu rosto.

Em seu pescoço havia um colar com um pequeno cristal que acreditou ser transparente, que refletia um brilho intenso.

Ao notar que Angélica olhava a sua pedra, a mulher a retirou do pescoço de deixou que ela a envolvesse com as mãos.

Angélica segurou a pedra por uns instantes, era totalmente lisa, levemente alongada e em sua ponta se desenhava uma pirâmide, o toque lhe trazia um grande prazer.

Com gratidão devolveu o colar à sua companheira.

Sentiu que o dócil Bill tinha vindo ao Mundo dos Cristais para ajudá-la a encontrar a sua pedra também.

Ainda que percebesse que ele também tinha vindo por outras razões, sentia-se muito bem com a presença dele, mas sabia que em algum momento o dócil cachorro seguiria outros caminhos.

A luz vinda do lado externo a incomodava, sentindo isso sua companheira caminhou com ela para o interior da caverna, agora com um anjo as acompanhando.

Quando estavam mais distantes, onde já não podia mais ver a entrada da caverna. Angélica e o Bill-cão vislumbraram um mosaico de cores vindo das paredes, refletindo a pouca luz que vinha do exterior, que jamais imaginaram existir.

À medida que adentravam a caverna ficava mais escura e agora as paredes, o teto e o chão se assemelhavam a um céu estrelado.

Estavam cansadas, depois de um chá com pão de milho, que o Bill-cão fez questão de uma porção generosa, se acomodaram em um canto da caverna, junto ao chão, a textura lisa das pedras trazia um grande prazer.

Depois de alguns instantes estavam tomadas pelo sono, cristais permeariam os sonhos de Angélica.

Bill-cão estava um pouco agitado, ainda que não distanciasse de Angélica queria conhecer todos os cantos e pedras da caverna, todos que o viam se encantavam e brincavam com ele.

Depois de reconhecer os arredores veio se deitar entre Angélica e sua companheira, elas já estavam sonhando.



O dócil cão se deitou ao lado de Angélica, que ao sentir seu calor despertou levemente, entre as mãos dele, incrustada no chão um grande cristal totalmente liso com as pontas arredondadas, totalmente transparente.

Com o olhar enevoado e muito sono Angélica ficou apreciando o cristal, parecia que toda a luz da caverna vinha dele, envolvendo o seu novo companheiro que a observava atentamente.

O dócil Bill brilhava no escuro.

Dentro do cristal à medida que a luz abrandava, Angélica notou que um vulto lentamente se desenhava.

Mais uma vez viu Franz, que ainda não conhecia, sentado em sua cama, olhando para o vazio.

O quarto com apenas um pequeno armário, a cama toda desarrumada e uma pequena mesa repleta de papéis com anotações e desenhos.

Notou que Franz olhava para um relógio na parede, mas esse estava parado, registrava 03h00, do lado de fora do quarto estava escuro, assim presumiu ser madrugada ainda.

Tudo em volta de Franz estava parado, inclusive os ponteiros do relógio, o qual ele olhava fixamente.

Por horas Angélica ficou apreciando a cena dentro do cristal, chegou a ficar em dúvida se estava vendo a cena ou se era um sonho.

Depois dormiu profundamente até ouvir um choramingo do Bill que com a cabeça empurrava levemente seu braço. Ao olhar para o lado não percebeu a presença da mulher de cabelos longos que a acompanhava.

Também sentiu o movimento de outras pessoas dentro da caverna.

Mesmo em uma sombra conseguia ver as feições do cachorro que permanecia ao seu lado, agora conseguia perceber seus olhos, os pelos escuros e as orelhas empinadas.

Sentiu que logo sua visão voltaria ao normal.



Quando despertou a cena de Franz imóvel na cama com os olhos fixos no relógio, que como ele não se movia, se manteve presente nos pensamentos de Angélica.

Ao olhar nos olhos do dócil Bill, sentiu estar olhando para um cristal escuro e brilhante, uma alegria intensa habitou seu coração, sua visão estava totalmente recuperada.

Permaneceu por um longo instante olhando nos olhos de seu amigo, um anjo que viera a esse mundo distante ajudá-la a encontrar uma pequena pedra que carregaria para sempre junto ao coração.

Sentiu também que esse anjo também estava ali para ensinar a viver a todos aqueles que desejassem celebrar a vida.

A felicidade de Angélica era intensa desejava muito encontrar a amiga que até então a ajudara queria com ela e o dócil Bill partilhar a sua felicidade.

Angélica estava maravilhada com a beleza da caverna e das pessoas que lá viviam.

Em um canto viu uma mulher de costas preparando um chá imediatamente sentiu ser ela a pessoa que lhe fizera companhia desde que chegara ao Mundo dos Cristais.

Quando ela se virou Angélica reconheceu a pedra no pescoço dela, que dias atrás tinha sido oferecida para envolver com as mãos.

Ficaram juntas por um longo tempo apreciando o chá, mesmo que não compreendessem a linguagem falada, a presença, a companhia e os afetos traziam todas mensagens necessárias.

Até que foram interrompidas pela impaciência do Bill-cão que desejava passear pela caverna.



Angélica e a amiga caminhavam lentamente, vez por outra trocavam algumas palavras, mas eram pouco produtivas, nenhuma das duas conseguiam compreender, nem os dizeres mais simples, e assim as palavras se transformavam em sorrisos, olhares... E esses traziam em si todos os significados necessários.

Diferente delas o Bill-cão andava rapidamente e por vezes retornava para a companhia delas, o dócil Bill também não falava, mas sua expressão, felicidade, presença... Como nos sorrisos e olhares também denotava facilmente seus significados.

Ao se aproximarem da entrada da caverna, o brilho se tornara tão intenso que tudo que podiam ver era a luz branca, transparente, os momentos de cegueira voltaram à mente de Angélica, uma expressão de preocupação se estampou em sua face.

Não demorou para que o Bill-cão e sua amiga percebessem sua aflição, imediatamente deram as costas para a entrada da caverna, depois de uma curva alguns metros à frente o brilho diminuiu, e mais uma vez se depararam com o multicolorido da caverna, infinitos cristais incrustados no chão, teto e paredes, refletiam qualquer lampejo de luz que vinha de fora.

À medida que adentravam a caverna Angélica teve a impressão de estar eu um céu com infinitas estrelas das mais diversas cores.

Angélica sentiu que quando o sol do Mundo dos Cristais se apagasse na linha do horizonte, trazendo a noite, ela, sua amiga e o Bill-cão poderiam conhecer as maravilhas desse mundo que habitavam o lado externo da caverna.



Para Angélica o Mundo dos Cristais era um lugar muito quente, ela imaginava que o calor se devia por habitarem uma caverna, ainda que gigantesca, não havia janelas ou brechas para o mundo exterior, exceto pela entrada, às vezes era difícil respirar.

Mas a água que agora desfrutava na companhia de sua amiga e do dócil Bill era fresca.

Em uma das alas da caverna em seu centro havia uma fonte da qual brotava do chão, ao seu redor notou que os cristais incrustados no chão formavam um mosaico incrivelmente colorido, composto por figuras geométricas.

Aqueles que habitavam a caverna tratavam a água com reverência, se aproximavam em pequenos grupos e calmamente esperavam que aqueles que a desfrutavam cedessem seu lugar.

Por onde corria a água que saia da fonte tinha se formado um pequeno lago, profundo o bastante para que as pessoas pudessem ficar com o tronco e a cabeça do lado de fora da água.

 A água corrente era cristalina, em seu fundo dava para apreciar os cristais brilhando.

Angélica e sua amiga desfrutavam a parte mais funda do lago, impaciente o dócil Bill reclamava a presença delas na parte mais rasa, mas não demorou e ele nadou em direção a elas.

Ele adora partilhar a presença, a companhia.

A água fresca era uma dádiva a ser cultuada, fonte de prazer, de vida, assim sentiam aqueles que habitavam o Mundo dos Cristais, mesmo que apenas por um breve tempo, até que encontrassem a sua pedra.



Depois de um longo tempo se refrescando, Angélica, sua amiga e o Bill-cão se deram conta de que havia pessoas esperando para também desfrutar o pequeno lago e se refrescarem.

Assim cederam o lugar e se sentaram à beira do lago, o Bill-cão quis desfrutar um pouco mais da preciosa água, mas logo as procurou para partilhar a companhia.

O ambiente era sempre quente o que dispensava a necessidade de se enxugarem, a sensação de o corpo se secar lentamente trazia grande prazer, o dócil Bill foi quem mais demorou para se secar.

Angélica apreciava arrumar os cabelos, o que lhe trazia grande prazer, observando a amiga a espelhava imitando seus gestos.

Quando todos já estavam secos, inclusive o dócil Bill, Angélica foi presenteada com um tipo de lenço para os cabelos, em um de seus extremos pendia uma pequena pedra rosada, muito brilhante.

Percebendo que tinha gostado do presente a amiga de Angélica colocou um outro lenço entorno do pescoço do Bill, com uma pedra alaranjada.

Ele ficou desfilando com o adorno envolta de todos que estavam naquela ala da caverna.

Aos poucos a caverna foi ficando mais fresca e a luz gradualmente ficava mais branda.

Já totalmente secas se levantaram, o dócil Bill ainda estava levemente molhado.

Angélica sentiu na pele um delicado perfume de lavanda, só agora notara que esse era o perfume que exalava da água da lagoa, um presente que a vida doava àqueles que a celebravam.

Percebendo o anoitecer a amiga de Angélica em passos lentos caminhou em direção à saída da caverna.

Mesmo já tendo anoitecido a luz vinda de fora era intensa.

Angélica e o Bill a seguiram, com os mesmos passos lentos, ao observar à volta notou que muito poucas pessoas ficavam na caverna, na última curva próximo à entrada uma pequena aglomeração de pessoas aguardavam que a luz abrandasse um pouco mais, para poderem apreciar o mundo exterior.



Pela primeira vez desde que chegara a esse mundo Angélica estava defronte à saída da caverna, a luz era intensa, sem dúvida mais claro que o Mundo das Estações quando a sua estrela ocupava o centro do céu.

Ainda com receio em passos lentos caminharam até a entrada da caverna, a primeira impressão era de uma luminosidade transparente, mas à medida que se acostumava com a luz conseguia distinguir uma infinidade de cores.

Sempre em passos lentos Angélica sentia outras pessoas passarem, andando um pouco mais rápido.

Logo na saída havia uma clareira com o chão todo branco, mas em uma breve caminhada, uma grande montanha de um cristal escuro projetava uma sombra imensa, era no sentido dessa sombra que todos caminhavam.

Incomodadas pela luminosidade apressaram os passos até a sombra, ao chegarem o dócil Bill já as aguardava, parece que ele sabia o caminho a seguir.

Angélica e sua amiga seguiam o Bill cão, pouco adiante um estreito corredor formado por duas montanhas do mesmo cristal escuro, agora estavam totalmente na sombra.

O brilho multicolorido deixou Angélica encantada, acima das montanhas no céu escuro da noite infinitas estrelas brilhavam e no centro, três luas também de cristal iluminavam esse mundo.

Agora entendia os seus dias de cegueira, ao chegar ao Mundo dos Cristais ainda era dia, com a luz do sol desse mundo o brilho era tão intenso que cegava, era impossível caminhar nesse mundo durante o dia.

Foi nesse ponto da caminhada que a amiga de Angélica quis parar, agora observando as montanhas de cristal escuro notava a existência de muitas cavernas, eram essas os destinos das pessoas, nelas procuravam por suas pedras.

O Mundo dos Cristais não era a moradia de ninguém que até aqui tivesse visto, era um lugar para uma estada temporária até que encontrasse a sua pedra, depois disso de alguma forma as pessoas voltavam para os seus mundos.

Ao olhar para a sua amiga mais uma vez Angélica se encantou com a pedra em seu pescoço, era muito linda.

Notando a sua fascinação retirou o colar e deixou que Angélica a segurasse uma vez mais.

Foi nesse momento que sentiu que aquela caminhada ao mundo exterior significava a despedida.

Ela já tinha encontrado a sua pedra, tinha prolongado sua estada no Mundo dos Cristais para a auxiliar enquanto durasse a sua cegueira.



Nesse dia não caminharam além desse ponto, ficaram no corredor formado pela sombra das duas montanhas de cristal escuro, mas para Angélica veio à lembrança uma Trilha, lembrou que no Mundo das Estações havia muitas delas, até mesmo os trilhos às vezes se assemelhavam a uma trilha.

Continuou buscando em suas lembranças até que se recordou de uma conversa com Valkíria, quando estava na Grande Estação, e ela tinha mencionado que a Trilha era o elo de ligação entre ela e Franz.

Agora compreendia haver alguma relação entre Valkíria, o dócil Bill e Franz.

Algo que seria desvelado nesse mundo.

Lembrou-se que Valkíria estava sempre acompanhada de um grande cachorro, um anjo. O Freud-cão, ele era semelhante ao Bill, mas era maior, e o seu jeito era completamente diferente.

Achava o Freud-cão independente e sempre atento, cuidando. Não era dócil como o Bill, que sempre queria ficar junto.

Uma coisa que caracterizava o Freud-cão era a forma como ele olhava para o céu, parece que via além das estrelas, inda que olhasse o vazio, sentia que era nesse ponto vazio é que estava a sua essência.

Com a pedra de sua amiga nas mãos Angélica olhava dentro dos olhos dela e, nesses, uma vez mais viu Franz sentado em sua cama com os olhos fixos no relógio, mas ele não estava vendo as horas, como fazia o Freud-cão, Franz olhava o vazio.

Depois de tocada duas vezes no ombro Angélica despertou, sentiu que naquele momento estava se despedindo de sua terna amiga.

Lentamente Angélica colocou o colar no pescoço dela, que se levantou e caminhou lentamente pelo corredor, na sombra das duas montanhas.

O dócil Bill deu um leve latido, acompanhado de um uivo, chegou a se levantar para segui-la, mas ao perceber que Angélica tinha ficado parada olhando a amiga se distanciando, também parou e uivou uma vez mais.

O caminho de volta pareceu mais longo a Angélica, mas antes de chegar à entrada da caverna o Bill já a estava alegrando.



Angélica ficou por um longo tempo olhando a trilha na qual aos poucos viu desaparecer a sua amiga, olhava como Franz, Freud-cão e também como muitas vezes Valkiria, inda que a trilha estivesse à sua frente, ela olhava além, olhava o vazio.

Depois de emitir uns uivos baixinho para não a despertar o Bill-cão se deitou aos seus pés, e também ficou olhando o vazio.

Para todos que de alguma forma tiveram algum contato com a Casa do Gramado o vazio tem um sentido especial.

O mesmo vazio que tanto assombra alguns e fascina outros.

É no vazio que Franz, Valkiria e todos que partilham a Casa do Gramado mais se aproximam de sua essência.

É nesse vazio que brilha a luz azul que alimenta as suas almas, a luz que vem da Grande Estrela, lá no infinito, onde o Espaço se encontra com o Tempo, lá o antes pode estar acontecendo agora e muitas vezes o depois já aconteceu.

Agora as três luas do Mundo dos Cristais ocupavam a linha do horizonte, iluminando a trilha formada pela sombra das montanhas de cristal escuro, aos poucos o brilho se tornava mais intenso.

Muitos dos que caminharam pelo mundo exterior começavam a voltar para a caverna.

Logo a estrela que alimenta esse mundo iria surgir no lado oposto do horizonte.

O dócil Bill uivou um pouco mais alto e como Angélica não saia de seu transe começou a puxá-la pela barra de seu vestido.

Ao despertar de seu transe percebeu que logo o dia clarearia e em passos rápidos voltou à caverna, não estava distante.

Mentalmente reviveu os momentos que desfrutara desse mundo até então, seu desespero com a cegueira, a ternura com que foi ajudada pela sua amiga que acabara de partir, caminhando lentamente pela trilha, até desaparecer no infinito.

Ficou imaginando se algum dia conseguiria trocar algumas palavras com ela.

Mesmo tendo passado bastante tempo juntas, suas falas eram totalmente incompreensíveis, mas a presença, os cuidados, traziam em si todos os significados que se faziam necessários.

Ao adentrar a caverna sentiu um cheiro de café bem forte, daqueles que ocupam todos os ambientes, sentiu que também havia aquele pão de milho que o Bill tanto gosta.

Ao sentir o cheiro o dócil Bill já tinha disparado à frente dela.

Quando se aproximou do salão onde o café estava sendo feito o Bill já tinha ganho uma porção generosa do pão de milho, todos se encantavam com ele.

Angélica sentiu que tinha chegado a hora de procurar por sua pedra, sabia que o Bill iria ajudá-la.



Estavam cansados a noite tinha sido intensa, depois de apreciar o café e o pão de milho, partilhando a presença  de outros que agora ocupavam a caverna, Angélica quis descansar.

Pela primeira vez desde que tinha chegado a esse mundo prestou atenção às demais pessoas, as vestimentas e feições eram peculiares, todos eram muito diferentes.

Depois que se alimentaram foram ao lago com águas perfumadas, tinha sido o último local que Angélica tinha estado com sua amiga na caverna.

Uma vez mais ficou prestando atenção nas pessoas, a diversidade na aparência e tipos de roupas uma vez mais chamou a sua atenção, não demorou e o Bill-cão surgiu com o adorno que tinha ganho em torno do pescoço, ao vê-lo Angélica sorriu, ele estava muito bonitinho e chamava a atenção de todos que agora desfrutavam o lago.

Aos poucos Angélica se sentiu revigorada enquanto o dócil Bill brincava com os outros que aguardavam para também desfrutarem do lago.

Depois que saiu da água em pouco tempo Angélica já se sentia seca, o calor do lugar permitia que as pessoas se secassem rapidamente, deixando o perfume de lavanda impregnado na pele.

Cansados foram procurar um cantinho no qual pudessem adormecer, dessa vez não teria a companhia de sua amiga, mas o dócil Bill estava sempre junto, cuidando.

Não demorou para o sono chegar, olhando nos olhos de seu companheiro que brilhavam como um cristal, uma vez mais viu Franz em seu pequeno quarto, sentado na cama, com a janela aberta, olhando em direção ao relógio que estava parado, registrando 03h00.

Franz estava olhando o vazio.



Sem se dar conta aos poucos os olhos de Angélica ficaram pesados, ela e o Bill-cão olhavam-se profundamente nos olhos, mas os dois estavam olhando o vazio.

Lentamente os dois flutuaram, ficaram em um ponto entre o chão e o teto da ala da caverna que escolheram para descansar.

Do lado de fora o dia já amanhecera, o sol desse mundo brilhava pouco acima da linha do horizonte, o brilho era tão intenso que cegaria qualquer um que caminhasse entre suas maravilhas com os olhos descobertos.

Mesmo com uma manta envolvendo toda a face e com os olhos fechados não seria possível distinguir qualquer sombra, o brilho dos cristais podia ser visto mesmo em mundos distantes.

Franz não conseguia dormir, a noite estava muito quente, se dirigiu à janela de seu pequeno apartamento e se deparou com a rua deserta, não havia qualquer movimento, ao olhar para o céu entre a Estrela Azul e uma outra que se destacava, com um brilho intenso, notou uma pequena sombra no céu se aproximando lentamente.

Angélica em transe, olhando nos olhos do Bill-cão, sentiu que seu corpo tinha diminuído até se tornar minúsculo, não mais que um ponto flutuando na caverna, lentamente se dirigindo em direção aos olhos do dócil Bill.

Quando estava bem pertinho ele soltou um leve gemido e fechou os olhos.

Muito distante Angélica continuava vendo Franz sentado em sua cama, parado, olhando o vazio, na direção do relógio que não se movia.

Inda que a cena de Franz em seu quarto estivesse extremamente distante, ela era muito clara, de onde estava a distância parecia ser infinita.

Angélica sentiu ter transcorrido horas flutuando em direção ao quarto onde Franz estava sentado na cama, mas ao chegar lá o quarto estava vazio, o relógio continuava parado marcando 03h00.

Além da Janela ainda estava escuro, daí imaginou ser ainda madrugada. 

Angélica desconhecia esse mundo.

Com receio e em passos lentos se dirigiu em direção à janela.

Se deparou com um lugar desconhecido, cercado de construções estranhas e o que achou ser caminhos para trens estava totalmente deserto, com uma iluminação precária e igualmente estranha.

Em seu mundo mesmo à noite as estrelas forneciam toda a luz que era necessária.

Estranhou esse mundo com as ruas e calçadas forradas com um material cinzento e a total ausência de plantas, só em um tipo de cruzamento, exatamente em seu meio, havia uma pequena casa, cercada com um gramado e grandes árvores à sua volta.

Essa pequena ilha no meio do cruzamento a fascinou, desejou ir a esse lugar que a maravilhara, mas não compreendia o que estava acontecendo, a última cena de que se recordava era de seu corpo ter encolhido e de ter flutuado em direção aos olhos do dócil Bill.

E agora estava no quarto de Franz, que estava vazio, olhando em volta notou a cama desarrumada.

Ficou um longo tempo na janela desejando ir à casa envolvida pelo gramado e pelas árvores, quando viu Valkíria e Franz de mãos dadas caminhando lentamente pela calçada em direção àquele mundo de encantos.

Demorou para encontrar um caminho do quarto de Franz para chegar à rua, mas quando chegou próximo à esquina a Casa do Gramado começou a flutuar e a se distanciar, lentamente. 

Por uma pequena trilha entre as árvores ainda conseguiu ver Valkíria e Franz, de frente um ao outro, olhando nos olhos, flutuando em direção à casa.

Com muito calor e transpirando Angélica despertou na caverna, o dócil Bill dormia profundamente, um forte cheiro de café vindo de uma outra ala tomou conta de toda a caverna.



Em seu quarto Franz estava sonhando, sentia-se melancólico estava com saudades de seu dócil cachorro que tinha partido em direção às estrelas.

O sentimento de vazio enchia seu coração.

Sentia que não estava mais em seu pequeno apartamento, mas em uma casa na qual tinha vivido há muitos anos.

Era madrugada e estava tudo muito quieto.

Lembrava-se que era uma casa grande, que gostava muito, na qual passava muito tempo em seu quarto no andar superior, que ficava de frente à rua.

Ao olhar pela janela percebeu que estava escuro e a rua deserta.

Desejou saber as horas, mas como na época em que tinha vivido nessa casa, o quarto era desprovido de relógio, em vão procurou pelo controle para ligar a televisão e assim saber as horas, mas não o encontrou e, ainda que consciente sentia o corpo adormecido, sem forças para se levantar.

Depois de um longo tempo no limiar entre o estar acordado e o estar dormindo, despertou com o coração acelerado.

Estava ouvindo passos no corredor, do lado de fora da casa.

Em um sobressalto sentou-se na cama, o som dos passos lhe era bastante familiar, seu dócil cachorro estava caminhando no corredor, no meio da madrugada, como fazia muitas vezes.

O som de suas unhas resvalando no chão do corredor ressoava na noite escura.

Um sorriso estampou em sua face, sentia muitas saudades do dócil Bill, que todas as manhãs vinha chamá-lo para partilhar o café da manhã com pão de milho.

Ainda sentado na cama foi tomado de uma leve frustração, percebeu não estar em sua antiga casa, mas sim em seu pequeno apartamento o mesmo em que tinha ido se deitar há poucos instantes.

Sentado olhou para o relógio e viu que ele estava registrando 03h00, porém seus ponteiros não se mexiam, achou que a pilha tinha descarregado e continuou desorientado no tempo.

Lentamente se levantou e deu os poucos passos necessários para chegar à janela.

A noite estava particularmente escura e a rua totalmente deserta.

Ao olhar para o céu percebeu haver uma estrela particularmente brilhante, mergulhada na escuridão, onde no centro brilhava a Grande Estrela Azul.

Lembrou-se de quando era criança e caminhava na Trilha em direção à Casa do Gramado e entre as árvores o brilho intenso da estrela azul se destacava, iluminando o seu caminho, quando ia ao encontro de Valkíria.

Sentiu que em breve iria com a sua amada para a estrela brilhante que agora flutuava não tão distante de sua estrela, e lá uma vez mais iria desfrutar a presença do dócil Bill.

Cansado, em passos lentos voltou à sua cama, assim que se deitou voltou a ouvir o tic-tac do relógio. Seus ponteiros voltaram a se mover.



Com muito calor e cansada por estar na mesma posição, Angélica começou a se levantar, devagarzinho, não queria despertar o dócil Bill, que dormia profundamente, mas antes ainda de conseguir se sentar ele empinou as orelhas e em um breve instante já estava em pé, com os olhos atentos, orelhas empinadas e abanando o rabo.

Ao sentir o cheiro de café e principalmente do pão de milho emitiu um leve ruído que se assemelhava a um choro.

Já de pé Angélica procurou por um pano para enxugar a face e em passos lentos ela e seu companheiro seguiram em direção ao lago no interior da caverna.

Depois de apreciar um pouco da água e lavar o rosto, sentiu o dócil Bill beber abundantemente, ele também estava com sede e sentindo o calor.

O lago estava vazio, a maior parte das pessoas ainda dormiam, descansavam, para que assim que anoitecesse pudessem sair das cavernas e voltar a procurar por suas pedras.

Angélica sentia falta de sua amiga que tinha partido, tão logo que recuperou a visão, ainda que não compreendessem o que diziam, sentia que mesmo que fizesse falta, muitas vezes as palavras eram desnecessárias. Um olhar, a presença, traziam em si tudo que era necessário.

Assim que o Bill saciou a sede caminharam em direção ao salão de onde exalava o cheiro de café, após servir uma dose generosa de pão de milho ao seu companheiro, Angélica se sentou e lentamente ficou apreciando o café e outras guloseimas.

Logo outros que dividiam o salão naquele momento estavam chamando a atenção e brincando com o Bill, todos o apreciavam e desejavam um pouco da atenção dele.

Compenetrada, Angélica pensava no sonho que acabara de ter. Pensava nos breves instantes em que teve a companhia de Valkíria na Grande Estação e sentiu que estava chegando o momento de uma vez mais estarem juntas.

Teve a sensação de que viria a conhecer Franz.



Sentado em sua cama e sentindo muito calor, Franz olhava para o relógio em seu quarto, hipnotizado observava o ponteiro dos segundos se movendo. Lembrava-se que há pouco nessa mesma posição ao olhar para o relógio os ponteiros estavam parados.

Imaginou ter estado em um sonho, mas não conseguia se lembrar dele.

Meio adormecido lembrou-se de sua infância quando via a Trilha se desenhar em uma das paredes de seu quarto, sentia saudades de alguns momentos em que viveu naquela casa, um pensamento curioso passou-se em sua mente, quando criança, aos cinco ou seis anos de idade tinha a impressão de a casa, e principalmente o quintal em que brincava, serem muito grandes. E depois já mais crescido quando se mudaram para um outro lugar a casa era muito apertada, restando pouco espaço às pessoas e às coisas dentro dela, enquanto o terreno, bastava alguns passos e já se encontrava na divisa da rua.

Curiosamente agora se sentia em uma situação semelhante, o pequeno apartamento que usava para dormir, com muito poucos passos chegava aos seus limites.

Incomodado pelo calor deu os três passos possíveis e se acomodou junto à janela, não tinha muito o que ver, a rua deserta, a calçada cinzenta e as imensas paredes de concreto que rodeavam toda a vizinhança, impedindo a visão poucos metros adiante.

Pensando em sua infância lembrou-se que vivia nos limites da cidade, inda que na época não conhecesse esse conceito, mas algumas vezes ouvia os crescidos usarem esse termo.

É curioso como às vezes assimilamos coisas, muitas vezes as palavras assumem significados sem se ter idéia da pluralidade de significantes que essas podem assumir.

Cresceu imaginando que cidade era algo que se limitava a um aglomerado desordenado de construções e pessoas, que andavam de um lado para outro, sem ter qualquer noção de o porque faziam essas construções, ou andavam, sem se dar conta de o porquê faziam isso.

À medida que ampliava seus significantes Franz sentia que a cada dia não mais fazia parte desse lugar e pensava em uma forma de em algum momento não mais pertencer a essa cidade.

Debruçado na janela, no meio da madrugada, na esperança de que alguma brisa pudesse refrescar um pouco, notou um pequeno movimento na calçada, do lado oposto ao prédio onde morava.

Um grande cachorro viera caminhando lentamente e parado, defronte à sua janela, mesmo que distante e sem a possibilidade de enxergar detalhes, Franz teve a certeza de que o cachorro olhava fixamente em seus olhos.



Um sorriso despontou em sua face, seu grande amigo de passeios e brincadeira viera visitá-lo, se sentiu ansioso, o desejo de acarinhar as orelhas e a cabeça do Freud-cão imediatamente veio à sua mente.

Bastou o tempo de colocar a mesma roupa que tinha deixado aos pés da cama quando tinha ido se deitar e, em passos rápidos caminhou até a rua.

Ao chegar à frente do prédio onde morava, imediatamente o Freud-cão se levantou e caminhou em direção à esquina que ficava bem próxima.

Não demorou e Franz se deparou com uma paisagem peculiar, ainda que conhecida, efetivamente não fazia parte daquele contexto.

A Casa do Gramado estava exatamente no centro do cruzamento das ruas, em um primeiro momento Franz ficou confuso o espaço era pequeno demais para o seu mundo de encantos, que tantas vezes em sua infância tinha visitado.

Não demorou e lembrou-se da infância, da impressão que tinha de sua própria casa e do terreno que habitualmente brincava, achava ser muito grande, havia até lugares para se esconder e, quando era praticamente adulto os espaços pareciam por demais apertados.

À medida que se aproximava da esquina teve a sensação que ele próprio e o Freud-cão estavam diminuindo de tamanho, a rua, e os prédios em volta pareciam ser enormes, desproporcionais.

Freud-cão já o aguardava em frente à Trilha.

Franz o abraçou ternamente tão logo terminara de afagar as suas orelhas da forma que ele tanto gostava.

Em passos lentos adentraram a Trilha, ao ver a Lua entre as folhas das árvores Freud-cão uivou, muitos dos que dormiam nos prédios acordaram curiosos, várias luzes se acenderam, alguns chegaram à janela na tentativa de ver de onde tinha vindo aquele uivo, mas a Casa do Gramado já flutuava pouco acima dos prédios.

Ninguém imaginou olhar para cima, a única diferença que alguém muito atencioso poderia perceber seria a sombra que a Casa do Gramado estava projetando na rua e em parte dos prédios, mas entre os Preocupados poucos conseguiriam ter essa percepção, para eles era só mais uma noite, logo acordariam para as suas rotinas, uma a uma as lâmpadas foram se apagando e eles voltaram a dormir.

Na Trilha, agora sinuosa Franz teve a impressão de ter caminhado por horas, mas não estava preocupado com o tempo.

Depois de anos uma vez mais se sentia em casa.

Ao chegar à varanda, além dele e do Freud-cão, estava tudo deserto, não resistiu e se acomodou no banco, onde tantas vezes tinha dormido com Valkíria, seus irmãos e muitos outros seres mágicos.

Ao olhar para o céu sentiu o Mundo dos Preocupados diminuir lentamente de tamanho, do lado oposto a Estrela Azul brilhava intensamente.



Passado alguns instantes Freud-cão saltou em cima do banco e se acomodou ao lado de Franz, que praticamente nem notou, mas levantou o braço e envolveu o pescoço de seu amigo, retribuindo a companhia com um afago.

Freud-cão estava com as orelhas empinadas e os olhos arregalados fitando a face de Franz, gostava em especial que lhe acarinhasse as orelhas, ao emitir um leve gemido Franz atendeu o seu desejo.

Logo seus olhos começaram a ficar pesados, com a cabeça apoiada no colo de Franz, adormeceu profundamente.

Franz estava em transe, com os olhos voltados à Estrela Azul, seu movimento se limitava ao carinho que fazia nas orelhas de seu sempre companheiro.

A luz da Estrela Azul envolvia toda a varanda e à medida que se afastava do Mundo dos Preocupados se espalhou por toda a Casa do Gramado, agora totalmente adormecida.

Do local onde vivia agora a Casa do Gramado parecia ser uma pequena estrela azulada se afastando, até desaparecer totalmente no vazio escuro e frio.

Inda que aos olhos de Franz e agora também aos de Freud-cão a Estrela Azul ocupasse toda a sua visão, não era esse, no momento o destino da Casa do Gramado, lentamente, inda que em uma direção próxima se deslocavam na direção do Mundo das Estações.

Em uma ultima visão do horizonte Franz percebeu uma outra estrela também com brilho intenso, um brilho quase transparente, alternando suas cores, sentiu-se fascinado.

Sonhando seguiu vagando no vazio. A Casa do Gramado estava envolvida totalmente pela luz azul, em seus sonhos a presença de Valkíria era tão intensa que teve a impressão de que estavam de mãos dadas, com os dedos entrelaçados.

Valkíria estava aguardando na Grande Estação.



Depois que terminou o seu café Angélica permaneceu imóvel, olhando o vazio.

Em seus pensamentos se perguntava o que estava procurando, não tinha idéia, sabia que buscava por uma pedra, mas ainda não tinha compreendido o significado dessa busca.

O Mundo dos Cristais era maravilhoso, mas mesmo que já tivesse estado com a sua pedra nas mãos, não saberia identificá-la.

Sentia que as pessoas que no momento partilhavam as cavernas com ela também não tinham idéia do que procuravam.

Teve a impressão de que a única pessoa que conhecera que sabia o que procurava era a sua amiga, que a ajudou enquanto tinha perdido a visão devido a intensa luminosidade que permeava o lado externo das cavernas durante o dia.

Desejava conversar com ela, tinha muitas dúvidas, mas sequer conseguia identificar as perguntas.

Agora sem a presença dela se sentia desorientada e, todos os demais pareciam igualmente desorientados.

Sentiu-se angustiada.

O aperto em seu coração só diminuiu quando o dócil Bill encostou a cabeça em seu colo, esse pedido de carinho aliviou a dor que Angélica sentia agora no peito.

Olhando nos olhos de seu companheiro, uma vez mais conseguiu ver Franz, mas agora ele não estava em seu quarto, ele parecia estar de costas, adentrando uma trilha com um cachorro muito parecido com esse que agora lhe fazia companhia, só era maior.

Lentamente se levantou e o dócil Bill saiu à sua frente, nesse momento percebeu que ele sabia, ou melhor sentia o que estava fazendo nesse mundo.

Angélica sentia falta do pequeno vilarejo em que morava, principalmente quando nos finais de tarde partilhava a companhia de outros que viviam ou passavam pelo vilarejo.

Sentia falta de caminhar entre as plantas, apreciar o brilho da estrela que fazia com que a vida fervilhasse no Mundo das Estações.

Era grata por ter sido acolhida nesse mundo, mas sentia falta de andar entre as árvores, e pela única rua do vilarejo que tinha escolhido para viver.

No Mundo das Estações, como agora no dos Cristais, as pessoas não tinham uma morada fixa, mas sentia que o vilarejo era o seu lugar.



Ainda faltavam umas poucas horas até que anoitecesse, mas esse seu último pensamento clareou as suas idéias.

No Mundo das Estações ela como os demais estavam sempre se mudando de uma cidade para outra, fazia parte das rotinas das pessoas, quando sentiam ter aprendido o que o lugar tinha a ensinar, e igualmente estabelecido a recíproca, as pessoas procuravam por um novo lugar que as acolhessem.

Era um tipo de relação de troca.

Pela primeira vez na vida de Angélica foi quebrada essa dinâmica ao se estabelecer no Vilarejo.

Lembrou-se de que tinha ido para lá com a idéia de descansar, o Vilarejo era um lugar pequeno, os trilhos não iam além dele, só umas poucas pessoas viviam lá.

Pelo que lembrava aqueles iam para lá, ficavam um ou dois dias e, ainda que gostassem do lugar logo procuravam por outro.

Por outro lado havia algumas pessoas que lá tinham se fixado, mesmo que eventualmente fossem para alguma outra cidade, em pouco tempo retornavam.

Já Angélica desde que havia chegado, a sua ida ao Mundo dos Cristais fora a primeira vez em que se ausentara do Vilarejo e, agora refletindo, todos que lá viviam traziam envolto em seus pescoços um pequeno colar com uma pedra brilhante.

Sentia como se ela tivesse sido escolhida pelo Vilarejo, talvez por isso o sua sensação de pertencer a ele.

Agora percebia que não era ela que teria que escolher o seu cristal, quando chegasse o momento o Mundo dos Cristais iria lhe presentear com um, aquele que seria o seu.

O cristal que teria em sua essência a luz da estrela da qual ela havia surgido.

Percebeu que o dócil Bill sentiria qual seria essa pedra.



Angélica brincava com o dócil Bill à beira do lago no interior da caverna, muitos procuravam pelo lago nesse horário para se refrescarem a apreciar os prazeres que a água fresca proporcionava, algumas pessoas ficavam em volta aguardando que alguém saísse para também aproveitar o frescor do lago.

Um cheiro forte de café recém feito acompanhado de pão milho tomou conta de toda a caverna, o dócil Bill empinou as orelhas e saiu em disparada à procura das guloseimas.

Quando Angélica chegou ao salão do café, caminhando lentamente, alguém já tinha servido ao seu companheiro uma porção generosa de pão de milho, acompanhado de água fresca.

Todos apreciavam a presença do cachorro de Franz.

Depois de se servir com uma pequena caneca de café e do pão de milho, Angélica se aproximou do Bill e dos outros que brincavam com ele.

Passado alguns momentos, depois de se alimentarem, a sombra das montanhas começaram a se espalhar, chegando à entrada da caverna, gradualmente a iluminação que refletia dos cristais incrustados em toda a caverna diminuíram a sua intensidade.

As pessoas começaram a se aglomerar nas proximidades da entrada da caverna.

Quando Angélica se levantou o Bill-cão disparou em direção ao exterior da caverna, ao chegar à entrada ele já a aguardava, com ansiedade.

O dócil Bill saiu à sua frente, distraída, Angélica o seguia de perto. 

Assim que chegaram aos pés da primeira montanha o Bill seguiu por um pequena trilha, que até então Angélica e tantos outros ainda não tinham dado conta de sua existência.

Descontraída continuou o passeio em passos lentos, mas aparentemente o Bill estava com pressa, várias vezes ele se distanciava, e depois voltava correndo tentando apressar Angélica.

Sem se dar conta caminharam por algumas horas, quando Angélica começou a se sentir preocupada com o tempo que levaria para retornar, mas o Bill parecia determinado, às vezes corria.

Quando chegaram em uma pequena clareira, faltavam umas poucas horas para o dia amanhecer.

Estavam do lado oposto da montanha. Agora Angélica tinha certeza de que não conseguiria voltar à caverna antes que o dia começasse a clarear, sentiu-se assustada lembrou-se do dia que tinha chegado ao Mundo dos Cristais, mas o Bill estava determinado, sentia o caminho que deveria seguir.



Angélica estava com medo, além dela e do dócil Bill não havia mais nenhuma pessoa nas proximidades, não se recordava de ter visto alguém depois de terem adentrado a trilha de pedras.

Na pequena clareira o Bill-cão andava em círculos.

Angélica permanecia sem saber o que fazer, sentia que não conseguiriam retornar a tempo, antes de o dia começar a clarear.

Desolada, sentou-se no chão, sentindo sua angustia o dócil Bill se aproximou e começou a puxá-la pelo braço.

Na linha do horizonte, muito distante, um brilho intenso começou a florear, logo o sol do Mundo dos Cristais surgiria no horizonte.

Angélica sentiu que a intensidade da luz refletida nos cristais cegaria a ela e a seu dócil companheiro.

Além de suas roupas finas, não tinha nada que pudesse usar para cobrir os olhos, angustiada tentou abraçar o Bill e cobrir os seus olhos, mas ele continuava insistindo, tentando puxá-la pelo braço.

Sua pele fina já estava marcada pelos dentes do Bill-cão.

Sem saber o que fazer deixou-se levar pelo dócil cachorro, que tentava cavar com as mãos o chão ao lado de um cristal imenso que estava em um canto da clareira.

Depois de umas pequenas pedras terem-se espalhado, ao lado do grande cristal Angélica viu um pequeno buraco escuro, ao pisar em volta sentiu que o chão atrás do grande cristal era oco, e as pedras ao redor estavam soltas.

Logo percebeu que à beira do grande cristal se encontrava a entrada de uma caverna, com as mãos começou a ajudar o dócil Bill a cavar. Em poucos instantes já havia espaço o bastante para o cachorro passar, mas ele insistia em cavar, não entraria antes que houvesse espaço para que os dois passassem.

Quando conseguiram alargar a entrada da caverna ao lado do grande cristal o horizonte já brilhava intensamente.

Correndo entraram na caverna. Era imensa.

Depois de darem alguns passos estavam distantes da luz do dia, que se estivessem expostos já os teriam cegado.

Angélica se sentiu maravilhada, os cristais da caverna eram mais lindos do que qualquer objeto que até então conhecera.



A entrada da caverna era bastante estreita e, depois de alguns passos o túnel dentro dela fazia uma curva, deixando a entrada escondida.

Ainda que houvesse muitos cristais, mais do que o lugar onde já estava habituada, esse lugar era mais escuro e estreito.

Angélica e o dócil Bill estavam sós.

Onde ficavam habitualmente todos os que no momento habitavam o Mundo dos Cristais, já tinham retornado.

O dia já havia clareado e não mais podiam ficar em espaços abertos.

Curioso que as pessoas que agora partilhavam o Mundo dos Cristais vinham de mundo diferentes, muitas vezes de outras galáxias e eram raros aqueles que tinham uma linguagem semelhante, o que conseguiam para se comunicar eram alguns sinais ou olhares.

O que tinham de comum é que todos procuravam por suas pedras, únicas, que traziam em si a essência da estrela onde as suas vidas foram constituídas.

Quando alguém encontrava era motivo de festa para todos.

Mas nesse dia um assunto diferente pairava no ar, mesmo com a dificuldade em se comunicarem logo perceberam a ausência do dócil Bill que sempre achava uma forma de alegrar aqueles que partilhavam o espaço com ele.

E, aliado a isso também sentiram falta de Angélica.

Todos estavam pensativos, mas mesmo com os recursos escassos de comunicação que dispunham notaram que nenhum deles tinham se dado pela presença de Angélica e de seu companheiro depois que saíram da caverna em busca de suas pedras.

Após se alimentarem se juntaram no maior salão que havia, esse dia iriam permanecer juntos até que anoitecesse e uma vez mais pudessem sair.

Porém, no dia que se seguiria não iriam procurar por suas pedras, estavam determinados a encontrar Angélica e o dócil Bill e ajudá-los, como fosse possível.

Aqueles que já estavam no Mundo dos Cristais quando Angélica chegou e perdeu a visão por uns dias pela intensa luminosidade do Mundo dos Cristais temiam que ela pudesse agora mais uma vez perder a visão.

Igualmente temiam pelo Bill, sempre trazendo felicidade, como seria difícil para ele ficar sem a visão.

Nesse dia, depois que se alimentaram ficaram em círculo e assim adormeceram, mentalizando o bem estar que desejavam aos dois que não retornaram antes de o dia amanhecer.



Sozinhos, na caverna escura, Angélica se abraçou ao Bill, ambos estavam com fome, ao olhar em direção à entrada dela Angélica sentiu que se demorassem mais alguns momentos para entrar a luminosidade do Mundo dos Cristais uma vez mais a cegaria e também ao seu dócil companheiro.

Depois de alguns instantes em silêncio, o Bill empinou as orelhas e se separou do abraço de Angélica e em passos rápidos caminhou para o interior da caverna.

Seguindo ele, logo Angélica ouviu o som de água correndo entre as pedras, tinha sido esse barulho que atraiu a atenção do Bill.

À medida que caminhavam em direção ao interior da caverna o calor aumentava, depois de alguns minutos chegaram a um pequeno fio de água que escorria entre as pedras.

A preciosa água serviu para abrandar o calor que estavam sentindo, depois de molhar a face e o pescoço Angélica ficou apreciando o Bill beber em abundância, ela também sentia sede, depois de saciar-se juntou um pouco de água nas mãos e molhou de leve o pescoço e as costas do Bill.

Em retribuição ele brincava e se aninhava junto a Angélica.

Estavam com fome, mas ficariam bem até que anoitecesse.

Um pouco mais adiante fio de água formava um minúsculo lago, ao vê-lo o Bill correu em sua direção e entrou nele, ficou todo molhado. 

Num primeiro momento Angélica achou que ele estava brincando, mas insistentemente ele removia as pedras no fundo, quando ela se aproximou o Bill enfiou a cabeça na água e quando levantou-se tinha na boca, entre os dentes, um cristal azul e esverdeado, bem escuro.

Com cuidado o dócil Bill entregou o cristal para Angélica, ele ocupava toda a palma de sua mão, ao secá-lo, usando seu vestido sentiu o cristal rachar.

Ao pegá-lo novamente viu que ele tinha se dividido em quatro pedaços.

Angélica sentiu nesse momento ter encontrado a sua pedra e também a do Bill, que agora puxava a mão dela, ele também queria apreciar.

Olhando as pedras em sua mão, junto com o Bill, sentiram a quem pertencia as outras duas partes.

A felicidade ficou estampada nos olhos de Angélica.



Cansados adormeceram, ainda que sentissem fome ambos estavam felizes, os cristais, agora nas mãos de Angélica eram lindíssimos.

Pouco antes de cair no sono com os olhos pesados eles apreciavam os reflexos coloridos dos cristais nas paredes, teto e chão da caverna, o pequeno fio de água e a lagoa também brilhavam refletindo a pouca luz que adentrava a caverna achando caminhos entre os cristais.

Angélica adormeceu primeiro, estava segurando uma das mãos do dócil Bill que soltou um uivo baixinho para não despertá-la.

Logo um sonho veio povoar a mente de Angélica.

Ela se via sentada em um canto da caverna, com o Bill deitado em seu colo, apreciava o brilho dos cristais em sua mão, sabia que um deles seria seu, mas ainda não conseguia identificá-lo, prestando atenção percebeu que três deles eram azuis, bem escuros, e apenas um deles tinha também tonalidades esverdeadas.

Lentamente seus olhos seus se fecharam e, seus pensamentos ficaram povoados pelo seu encontro com Valkíria quando ainda estava no Mundo das Estações.

Não conseguia se lembrar ao certo como foram os momentos após seu encontro com ela, até a sua chegada ao Mundo dos Cristais, mas lembrava-se claramente da impressão de que seria uma breve despedida e que logo estariam juntas uma vez mais.

Teve a certeza de que os cristais que estavam em sua mão tinham sido um presente da Grande Estrela Azul, não tinha dúvidas de que um deles era o cristal de Valkíria, um outro pertencia a Franz e os outros dois seriam dela e do dócil Bill.

Sentiu que em breve se encontrariam.

Agora o Bill-cão também dormia profundamente e sonhava estar caminhando em uma Trilha, onde em seu final haveria um jardim com muitas flores amarelas e pedras, com um portal que sempre poderia atravessar para conhecer mundos de encantos.



Em seu sonho o Bill-cão tinha acabado de despertar e se levantara do colo de Angélica, à sua frente havia um lindo portal construído com cristais no meio de um jardim florido e com muitas árvores ao fundo.

Caminhou devagarzinho para não despertar Angélica, já do outro lado do portal ainda conseguia ver Angélica adormecida no interior da caverna, segurando em uma das mãos os cristais.

No meio do jardim do outro lado do portal uivou bem alto, mas não teve nenhuma resposta, em sua volta além das plantas só havia o silêncio.

Ao olhar para traz o portal parecia ser muito pequeno, não mais conseguia ver o outro lado. A caverna, Angélica e o Mundo dos Cristais agora eram lembranças ao dócil cão.

Olhando ao seu redor sentiu-se só, caminhou por entre as árvores, sem pressa, em passos lentos até encontrar uma Trilha, atravessando-a se deparou com um mundo familiar, com ruas e calçadas cinzas, muitas construções grandes e poucas árvores.

Era noite, as ruas estavam desertas.

Não demorou e encontrou uma casa, com uma escada, logo à sua entrada e um grande corredor, ao descer a escada, como era seu costume, ao olhar para cima viu que no quarto da frente a luz estava acesa.

Caminhou até o fim do corredor, as suas unhas faziam barulho na calçada de piso cerâmico vermelho, mas dessa vez não se interessou por esse barulho, sabia que eram suas unhas resvalando no chão.

Quando morava nessa casa, muitas vezes partilhando a presença com Franz no quarto, que viu com a luz acesa, e ouvia algum barulho na rua, saia correndo para pegá-lo.

Dessa vez foi o barulho de suas unhas na calçada que chamou a atenção de Franz, que logo desceu.

Franz sentia saudades de seu dócil companheiro, assim que abriu a porta da casa se deparou com o Bill, olhando em seus olhos e pedindo atenção.

Acarinhando o cachorro caminhou pelo corredor até a escada e sentou-se junto com seu companheiro em um degrau da escada.

Ficaram assim juntos no escuro apreciando a Lua e a Grande Estrela Azul, que brilhava intensamente.

Franz sentia-se grato pela sua estrela tê-lo presenteado uma vez mais com a visita de seu dócil Bill.



Quando Angélica acordou sentiu que o Bill não estava mais ao seu lado, como quando adormeceram.

Teve a sensação de que tinha se passado muito tempo, sentia sede e fome.

Levantou-se e caminhou em direção ao pequeno lago no interior da caverna, lá encontrou o dócil cão se refrescando e apreciando a água.

Por um instante parou e olhou na mão em que segurava os cristais, ficou maravilhada, eram lindíssimos, ao perceber a sua presença o Bill veio correndo em sua direção, também desejava apreciar os cristais.

Por um longo instante os dois ficaram apreciando, o dócil Bill insistia em segurar um deles em seus dentes, depois de pegá-lo colocou-o no chão e ficou apreciando as suas faces brilhantes.

Angélica se dirigiu ao lago, precisava saciar a sua sede, ao retornar viu que o cristal que o Bill tinha pego era um dos azuis escuros, quis pegá-lo de volta, mas ele insistia em ficar segurando ele.

Em passos lentos se dirigiram em direção à entrada da caverna, e sentiram que a claridade do lado de fora já estava diminuindo, logo poderiam sair para o exterior.

Assim que sentiram ter escurecido saíram da caverna, ao chegarem do lado de fora o dócil Bill devolveu o cristal para Angélica.

Ela o apreciou por um longo instante, não teve dúvidas de que era esse que ele desejava, assim que retornasse à grande caverna iria fazer um colar muito bonito para que ele pudesse ter o seu cristal em seu pescoço.

Seguindo a Trilha de volta, a subida era íngreme e escorregadia, as pedras soltas às vezes escorregavam ao caminhar, já o Bill ia à frente sem qualquer dificuldade.

Logo conseguiram ver as montanhas próximas à caverna e encontraram pessoas com as quais já estavam acostumadas a conviver no Mundo dos Cristais.

A sensação de alívio ao encontrá-los bem transparecia nas faces das pessoas, nos olhos, ainda que tivessem dificuldades em se comunicar, a fala entre eles era incompreensível.

Ao ver as primeiras pessoas a primeira coisa que fez foi mostrar os cristais, todos ficavam maravilhados com a beleza deles, nessa noite todos retornariam à caverna mais cedo, tinham dois motivos para comemorar, festejar.

Angélica e Bill-cão estavam bem, e ainda tinham encontrado os seus cristais.

Pouco antes de adentrarem a caverna, ao olhar para o céu Angélica percebeu uma pequena estrela azul, muito brilhante, parecia estar vindo em direção ao Mundo dos Cristais.



À medida que aqueles que agora habitavam o Mundo dos Cristais foram descobrindo que Angélica e o dócil Bill tinham retornado e estavam bem, aqueles que procuravam por suas pedras interromperam a sua busca e aos poucos retornaram à grande caverna onde passavam o dia.

Angélica, o Bill e aqueles que os rodeavam ao entrarem na caverna seguiram direto para o lago, onde costumavam se refrescar.

Depois de saciarem a sede, entraram no lago, ao sentir a água envolvendo todo o corpo, uma intensa sensação de prazer dominava a todos.

Angélica se sentia especialmente feliz, depois de se refrescar sentou-se na parte rasa do lago e ficou apreciando as pedras, molhadas, refletindo a água cristalina, ficavam ainda mais bonitas.

Não demorou e o dócil Bill se juntou a ela para também apreciar, logo as pessoas começaram a rodeá-la, todos queriam também apreciar as pedras.

Angélica saiu da água para deixar-se secar e depositou as quatro pedras em um grande cristal próximo ao centro do salão, que tinha o seu topo plano, esse cristal era todo transparente e contrastava com os três azuis e o esverdeado.

Tinha deixado eles ali para que todos pudessem apreciá-los, mas não demorou o Bill-cão saiu da água e pegou o dele, desejava vê-lo bem de perto, se deitou no chão e depositou o cristal entre as suas mãos, às vezes tentava virá-lo, para apreciar as demais faces, as pessoas paravam diante dele e enquanto observavam aquela pedra magnífica também o acarinhavam nas orelhas e cabeça.

Quando quis voltar a caminhar entre as pessoas levou entre os dentes o cristal para Angélica, que o deixou junto com os demais em cima do cristal transparente para que todos pudessem apreciá-lo.

Um cheiro de chá bem forte e pão de milho ainda quente tomou conta de toda a caverna, todos estavam festejando.

Angélica tentava explicar, mas eram poucos os que conseguiam entender o motivo dos quatro cristais, mas logo receberiam uma nova visita e ai compreenderiam.

Por um longo tempo Angélica ficou observando os outros três cristais, sabia que um seria o dela, mas ainda não o conseguia identificar. Só não tinha dúvida de qual era o do dócil Bill.

Depois da festa, quando já se sentisse descansada a primeira coisa que iria fazer era um colar para presentear o Bill.



A noite chegara ao fim, uns poucos que ainda não sabiam da volta de Angélica estavam chegando à caverna, em mais alguns instantes a intensa luminosidade não permitira que mais ninguém ficasse no exterior.

Esses também se alegraram por Angélica e o Bill-cão terem encontrado os cristais, igualmente ficaram maravilhados com eles.

Agora tinha chegado o momento de descansarem.

Após recolher as pedras Angélica se dirigiu a um canto do salão, onde costumava dormir, o dócil Bill a seguiu.

Na próxima noite não mais precisaria se aventurar no mundo exterior para procurar pelo seu cristal.

Quando já estava deitada, com os cristais na mão, quis apreciá-los uma vez mais.

O dócil Bill também se deitou ao lado de Angélica, e como ela também quis apreciar os cristais, mas fez questão de ficar com o dele junto às mãos.

A cada pouco Angélica o virava para que ele pudesse apreciar as demais faces.

Quando acordassem, depois de apreciar um café com pão de milho a primeira coisa que iria fazer era um colar para o Bill para ter a sua pedra em volta do pescoço, pertinho do coração.

Aos poucos os olhos de Angélica ficavam pesados, estava difícil mantê-los abertos, todos, inclusive o Bill estavam com muito sono.

Num último instante, com a visão turva, olhando nos olhos do Bill, Angélica viu Valkíria na Grande Estação embarcando em um trem.



Na Grande Estação, no mundo dos trens, o blim-blom característico anunciava a parada de mais um trem, mas dessa vez o som veio de dentro da sala de descanso, junto à fonte, onde a preciosa água jorrava.

Valkíria que estava apreciando um café com algumas guloseimas teve a sua atenção despertada.

Sentiu que chegara o momento de partir do Mundo das Estações, assim que terminou o café retornou à ala de descanso, pensando em dar uma última olhada no local, onde para ela, na noite anterior tinha estado com Angélica, e conversado brevemente sobre pedras e cristais.

O tempo tem suas curiosidades: Já para Angélica, agora no Mundo dos Cristais, tinha-se passado um longo tempo, era difícil precisar pois do momento que tinha deixado o Mundo das Estações até a atualidade para ela, não tivera qualquer referência da contagem do tempo.

Imaginava que só a viagem tinha durado vários dias.

Felizmente tanto no Mundo dos Cristais como no das Estações o tempo cronológico pouco ou nada representava.

Para Valkíria, inda que muitas vezes tivesse convivido em mundos onde as pessoas achavam ter algum controle do tempo, para ela isso também nada significava.

Mesmo para Franz, ainda criança, tinha se sentido fascinado por um relógio que pertencera ao seu avô, e que um dia o herdou, mas ainda que gostasse de relógios, não tinha qualquer interesse pela passagem do tempo, o que admirava de fato, eram os mecanismos desses, se distraia vendo os ponteiros se mexerem.

Ao chegar à ala de descanso da Grande Estação, junto à fonte, onde havia um mosaico de uma estação com um trem nela, Valkíria se deparou com um trem composto de um único vagão estacionado, mas com as máquinas ligadas.

Sentiu que esse era seu momento de embarcar, estava se despedindo do Mundo das Estações.



Ao se aproximar do vagão de passageiros se deu conta de que ninguém ainda havia embarcado.

Em passos lentos entrou e se acomodou junto à janela no último banco, e ficou apreciando o pequeno movimento que havia no momento na sala de descanso da estação.

Logo o som da água que jorrava da fonte lhe trouxe um sono leve, que deixava seus olhos pesados.

Era uma cena peculiar, aquele trem antigo com uma única composição de madeira escurecida, que brilhava ao refletir as luzes, Valkíria, a única passageira, agora dormia profundamente.

Sonhava em estar com Franz, mas em seus pensamentos também povoava as lembranças de Angélica e sua conversa, nesse mesmo saguão com ela sobre o nosso cristal, aquele que traz em si parte de nossa essência, um presente da estrela de onde viemos, que empresta um pouquinho de sua energia para alimentar a nossa vida.

O som dos motores do trem que acabara de ser ligado despertara levemente Valkíria, o som era baixinho e vinha com uma pequena trepidação que afetava todo o vagão.

Logo a sensação de trepidação desapareceu dos pés de Valkíria, cujos olhos voltavam a ficar pesados, em uma visão difusa viu Angélica na entrada de uma caverna com um pequeno cristal nas mãos, ela estava fazendo um tipo de corrente para prender o cristal.

Ao lado dela, atento teve a impressão de ver o Freud-cão, cuidando, mas ao prestar atenção, notou que ele era um pouco menor e, ainda que crescido parecia ser novinho, tinha jeito de criança.

Um cheiro forte de café a despertou, no lado oposto do vagão estava entrando uma mulher com uma bandeja nas mãos, logo sentiu também o cheiro de pão de milho.

Depois de deixar a bandeja em uma mesinha ao lado do banco onde Valkíria estava sentada e de desejar-lhe uma boa viagem, a mulher se dirigiu à porta por onde tinha entrado e deixou o vagão.

O blim-blom característico despertou de vez Valkíria que não resistiu ao café e ao pão ainda quente, mas diferente dos trens que estava acostumada, não foi informado o destino desse.

Seria uma viagem breve para Valkíria, logo estaria no lugar que mais lhe era familiar.



Há dias Franz em transe vagava pelo Universo na Casa do Gramado, com uma das mãos envolvendo o pescoço de Freud-cão, acarinhando-lhe a orelha, do jeito que o cão sempre apreciara.

Freud-cão também dormia profundamente.

A luz da Estrela Azul envolvia toda a Casa do Gramado emprestando um pouquinho de sua energia mantendo vivo esse mundo de magia.

Franz sonhava, ainda tinha em sua mente os últimos dias que tinha passado no Mundo dos Preocupados, perguntava-se sobre coisas que deixara pendentes, mas sentia que agora isso não tinha uma importância maior sabia que outros poderiam dar continuidade àquilo que não tivesse concluído.

Há muito sentia não pertencer mais ao Mundo dos Preocupados, sua estada lá tinha perdido o sentido.

Em um outro sonho lembrava do momento em que deixou seu minúsculo apartamento em direção à Casa do Gramado.

Felizmente era noite e não havia ninguém nas ruas, a cena era insólita, a Casa do Gramado se assemelhava a uma pequena floresta em um cruzamento, ocupando todo o espaço, sem deixar passagem, cercada pelo concreto cinza, sem vida, das ruas calçadas e dos prédios que a rodeavam.

Perguntava-se se algum dia os Preocupados se dariam conta da inutilidade de tudo que construíam, que subtraia a vida de seu mundo e deles próprios.

Mas no momento se perguntava sobre outra coisa, depois que deu os primeiros passos trilha adentro, junto ao Freud-cão, sentiu um pequeno ser se movendo entre a vegetação, teve a impressão de que ele viera atrás de si, do Mundo dos Preocupados.

Chegou a retornar para ver do que se tratava, mas não conseguiu vê-lo, quando tentava se aproximar ele se escondia entre a vegetação, em um momento teve a impressão de ter visto os olhos, achou que era um pequeno cachorro assustado, talvez desconfiado, mas não tinha certeza.

Agora no vazio escuro e frio do Universo a Casa do Gramado reduzia a sua velocidade, começava a orbitar um planeta pouco menor que o Mundo dos Preocupados.

Ao sentir a desaceleração Freud-cão arregalou os olhos e uivou.



O uivo do Freud-cão despertou vários dos seres encantados que habitavam a Casa do Gramado, a maioria deles ao olhar em volta e perceberem que a escuridão rodeava tudo até onde alcançava a visão, se aninharam e voltaram ao Mundo dos Sonhos.

Um desses seres que estava nos limites da Casa do Gramado entre a vegetação, arregalou os olhos e tentou empinar as orelhas, mas elas eram grandes demais para ficarem empinadas, deixando em seu extremo pequenas pontas semi levantadas.

Parecia assustado, não reconhecia o mundo à sua volta, estranhava tudo.

Estava se perguntando sobre as calçadas cinzas e os arranha-céus.

Não gostava deles, mas era o único mundo que conhecia.

A energia que envolvia a Casa da Gramado, simbolizada na tênue luz azul que a envolvia, fazia com que esse pequeno cachorrinho se sentisse bem, mas uma grande desconfiança habitava seu coração.

Caminhou lentamente até a Trilha por onde tinha chegado a esse mundo de encantos, estava deserta e brandamente iluminada pela luz azul.

Desejou ir por ela, queria saber o que tinha além, mas preferiu caminhar entre a vegetação, não se sentia à vontade em espaço aberto, mesmo a Trilha sendo bastante estreita.

Sem perder de vista a Trilha continuou seu caminho por entre a vegetação, até se deparar com uma pequena bifurcação, ao se ver próximo a um espaço aberto ficou apreensivo e, por uns instantes interrompeu a sua caminhada.

Ao notar que tudo estava deserto, atravessou o pequeno espaço aberto correndo, no meio do cruzamento chegou a ver alguém que dormia profundamente, envolta desse ser a luz azul brilhava um pouco mais intensamente.

Com os olhos arregalados ficou parado por alguns instantes, apreensivo, esperando algum movimento brusco desse, que dormia profundamente, ao notar que nada ocorria continuou sua caminhada.

Quando estava chegando aos limites do gramado um leve ruído fez com que o Freud-cão empinasse as orelhas.

Ao se deparar frente ao gramado, mas ainda entre a vegetação, com os olhos arregalados viu Franz e o Freud-cão dormindo no banco da varanda.

Um pequeno graveto estalou a seus pés, imediatamente o Freud-cão despertou e levantou o pescoço, com as orelhas empinadas ficou olhando em direção ao pequeno cachorro, mas estava distante e nada conseguia ver além das árvores e da vegetação.

Desconfiado e com os olhos arregalados não conseguia tirar os olhos da varanda.

Como nada mais percebia Freud-cão abaixou o pescoço e voltou a se aninhar junto a Franz.

Como no outro que estava no cruzamento logo atrás, a luz azul que envolvia Franz e o Freud-cão era um pouco mais intensa.

Cansado, o pequeno cachorrinho também veio a adormecer ali mesmo, entre a vegetação, à medida que seu sono aumentava, a luz azul que o envolvia também tornava-se mais intensa.

Agora a Casa do Gramado deslizava lentamente no vazio escuro e frio do Universo, em volta do Mundo das Estações.



Diferente das viagens de trem habituais, logo Valkiria não mais sentia a leve trepidação provocada pelos potentes motores das locomotivas, também não mais ouvia os sons característicos das rodas de ferro resvalando nos trilhos.

O trem em que Valkiria viajava, mesmo sendo de um modelo antigo, aqueles em que a composição e os bancos são de madeira, com características envelhecidas, deslizando nos trilhos, praticamente sem os tocar.

Ao seu lado na pequena bandeja o café ainda estava quente, e o cheiro de pão de milho também quente chamava a sua atenção.

Estava delicioso e se desfazia na boca.

Ao olhar pela janela, em pé ao lado da bandeja, notou que a escuridão envolvia o trem, não era a paisagem que esperava encontrar, quando partiu o dia ainda estava claro.

Ao voltar ao seu acento junto à janela, muito distante pôde observar um pequeno ponto lilás brilhando na escuridão, sentiu ser a estrela que alimentava o Mundo das Estações.

Depois de mais alguns instantes até esse pequeno ponto desapareceu e em sua volta tudo que restava era a escuridão, até que uma tênue luz azulada adentrou a janela e envolveu todo o seu corpo.

O silêncio era absoluto.

Logo em seguida adormeceu.

Depois de um longo sono despertou sentindo que o trem estava desacelerando e com o leve ruído das rodas de ferro deslizando sobre os trilhos.

Não demorou e sentiu o trem totalmente parado, depois do blim-blom característico as duas portas da composição se abriram.

Ao descer Valkiria se viu diante de uma trilha, há muito conhecida e sentiu-se uma vez mais em casa.

Depois de caminhar uns poucos metros trilha adentro, ouviu o trem atrás de si se movimentando, ao olhar para trás ele não se encontrava mais na trilha, flutuava no escuro, vazio do Universo, apenas com uma leve luz lilás o envolvendo.

Valkiria percebeu que ia sentir saudades do Mundo das Estações.



Continuando sua caminhada pela Trilha, uma vez mais Valkíria estava se sentindo em casa, tudo era tão familiar, que não conseguia distinguir a Trilha da floresta dos seres mágicos que lá habitavam e dela própria.

Todos formavam um único ser, infinito, vivo, pulsante.

Ao chegar no limite do gramado, ouviu um pequeno ruído entre os arbustos, não muito distante. Inicialmente achou que era o seu pequeno Nick, seu cachorrinho branco brincando, mas ao olhar mais atentamente percebeu imóveis dois olhos brilhantes, se fosse o Nick ele já teria vindo correndo ao seu encontro.

Percebeu que era um ser tímido, que preferia ficar escondido, achou melhor deixar que o tempo o levasse a se aproximar e em algum momento ele viria à varanda fazer companhia a todos os outros.

No banco junto à varanda Franz dormia profundamente com a mão repousada na cabeça de Freud-cão, que no momento em que a viu junto à Trilha no limite do gramado tinha arregalado os olhos e empinado as orelhas, mas agora já tinha voltado a dormir.

Ao se aproximar de Franz a luz azul que os envolvia ficou mais intensa e, os dois flutuaram pouco acima das grandes árvores que envolviam o gramado.

Olhando em direção à estrela que alimentava o Mundo das Estações, Valkíria ainda conseguiu ver o trem que a trouxera, se afastando lentamente.

Em transe, envolvida com Franz rapidamente começaram a se afastar desse mundo que tão bem a acolhera, estavam se dirigindo ao Mundo dos Cristais.



No Mundo dos Cristais Angélica dormia profundamente e sonhava.

Deitado ao seu lado o dócil também sonhando continuava com o seu cristal azulado entre as mãos, ele estava fascinado com o brilho existente em cada uma de suas faces.

Angélica também adormecera com os outros três cristais em frente aos seus olhos, todos eram dotados de extrema beleza.

Em seu sonho se via no trem que a trouxera ao Mundo dos Cristais, algumas vezes parecia que se enxergava sentada no último banco de madeira da composição, mas em outros momentos tinha a sensação de que era Valkíria que estava sozinha no vagão.

Às vezes, mesmo sonho via Franz, não o conhecia ainda, mas tinha certeza de que era ele, oras o via sentado em uma cama, aparentemente com insônia, olhando para o vazio, mas em outros momentos o via sentado na varanda de uma casa em uma cadeira de balanço para duas pessoas, ao seu lado um cachorro semelhante ao Bill, que viera a esse mundo cuidar e fazer companhia a ela, mas tinha a impressão de que o que estava ao lado de Franz era ligeiramente maior.

No canto da caverna onde dormia ao lado do dócil Bill, gradualmente o brilho dos cristais incrustados nas paredes diminuíram a intensidade.

Algumas pessoas em seu interior começaram a se movimentar, não demorou e um cheiro de café, acompanhado de pão de milho tomou conta da caverna.

O Bill-cão mexia com as mãos nos cabelos e braços de Angélica, quando ela abriu os olhos empurrou com o focinho o seu cristal para as mãos de Angélica e disparou na direção de onde vinha o cheiro do pão de milho.

Angélica segurou o cristal do dócil Bill na mão em que detinha os outros três e voltou a fechar os olhos, desejava sonhar um pouco mais.



Quando despertou Angélica se deparou com o dócil Bill à sua frente, ele estava exalando o cheiro doce de pão de milho.

Ao olhar à sua volta sentiu que não tinha movimento na caverna, quando muito deveria ter uma ou outra pessoa em seu interior, além dela e do Bill.

Assim que percebeu que ela tinha despertado o Bill-cão mexeu em sua mão, naquela que Angélica segurava os cristais, uma vez mais desejava apreciar o seu, estava ansioso por ter um colar para ficar com a pedra no pescoço e poder mostrar a todos o seu lindo cristal.

Em um gesto de carinho Angélica abriu a mão, na qual detinha os quatro cristais, em um instante com uma das mãos o dócil cachorro puxou para si o mesmo que tinha ficado apreciando há algumas horas, quando adormeceu com ele entre as mãos, ficava fascinado com o seu brilho azulado.

Lentamente Angélica se levantou e se dirigiu ao local onde costumava apreciar o café com pão de milho no interior da caverna, o dócil Bill a seguiu tentando empurrar com as mãos o seu cristal, ao perceber a dificuldade uma vez mais Angélica pegou de volta o cristal e o levou consigo junto com os demais.

Como tinha sentido quando despertou a caverna estava praticamente vazia, apenas uma ou outra pessoa circulava por ela, cuidando de pequenos detalhes.

Curioso, as pessoas que vinham ao Mundo dos Cristais, não traziam praticamente nada consigo, além da roupa que tinham no corpo, mas sempre tinham tudo o que precisavam.

Mesmo a companhia dos demais era precária, todos vinham de mundos diferentes e, por isso a comunicação entre eles era particularmente difícil.

O Mundo dos Cristais era um lugar em que as pessoas podiam entrar em contato consigo próprias em tal profundidade que dificilmente conseguiam em outros lugares e, à medida que ampliavam a própria consciência de si mesmos, menos necessitavam de coisas e até mesmo de outras pessoas.

Ao entrar no salão onde tomava café Angélica se encontrou uma moça que estava terminando de apreciar o dela, lembrou-se de sua fisionomia, nesse tempo tinha estado próxima a ela algumas vezes, mas tinha tido um contato mais próximo quando houve a festa no dia em que retornou à caverna e tinha encontrado os quatro cristais.

Lembrou-se que na festa essa moça, que não sabia o nome tinha ficado maravilhada com os cristais que Angélica e o dócil Bill tinham encontrado, ela não conseguia se afastar deles.

Quando Angélica se sentou com uma porção de pão de milho e o seu café essa moça se aproximou e sentou-se junto a ela.

Ainda tinha alguns pedaços de pão e outras guloseimas em um pequeno prato, que gentilmente ofereceu ao Bill.

Olhando os olhos de Angélica retirou de um pequeno bolso no interior de sua roupa uma corrente de um metal branco brilhante e a colocou na mão de Angélica, que sentiu a gratidão estampada nos olhos da moça.

Em retribuição colocou os cristais em um prato vazio na mesa e uma vez mais deixou que ela os apreciasse.

Nos olhos Angélica estampou o desejo de que ela encontrasse o seu cristal e que fosse muito lindo para que ela pudesse apreciar o brilho da estrela dela sempre que fosse ao Mundo dos Sonhos.

Um sorriso se estampou na face das duas e se despediram.

Angélica sentiu que aquela corrente de metal branco prateado seria para colocar o cristal do dócil Bill no pescoço dele.



Depois que tomou o seu café Angélica se dirigiu à entrada da caverna. No Mundo dos Cristais a noite estava em seu auge, mas o brilho se tornava intenso à medida que se aproximava do mundo exterior, o reflexo da luz das estrelas nos cristais deixava esse mundo de magia todo iluminado.

Ao perceber que Angélica se afastava o dócil Bill disparou atrás dela.

Assim que chegaram do lado de fora da caverna procuraram um lugar para se sentarem, e na seqüência colocou os quatros cristais no chão, com um gesto de leve, com as mãos o Bill cão ficou apreciando cada face dos cristais, mas uma vez mais pegou o azul que tinha escolhido anteriormente e o trouxe entre as mãos. Olhava com fascinação para ele.

Angélica segurou nas mãos a corrente que ganhara há pouco, ficou olhando para ela pensando em uma forma de atar o pingente a ela.

Ao deslizar uma das mãos pela corrente, em sua extremidade sentiu que estava preso quatro fios metálicos, praticamente transparentes, não demorou a perceber a sua finalidade.

Eram resistentes e ao mesmo tempo maleáveis.

Gentilmente pegou o cristal azul que estava entre as mãos do Bill, foi o bastante para ele despertar, ele estava em transe.

Angélica ficou se perguntando o que ele via no interior do cristal.

Olhando em seus olhos Angélica sentiu que neles estavam estampadas muitas saudades.

Os pequenos fios metálicos transparentes eram fáceis de serem trabalhados, quando estava terminando de prender o cristal nele sentiu que já havia pessoas retornando à caverna.

Olhou para cima e notou um brilho mais intenso no horizonte, sabia que logo o dia iria amanhecer.

Assim que terminou o seu trabalho pendurou a corrente ao redor do pescoço do Bill, a felicidade estava estampada em seus olhos. Angélica adorou apreciar ele brincando, sabia que estava ansioso para mostrar o seu colar a todos.

Ao se levantar pegou os outros três cristais nas mãos, antes de entrar na caverna, ao olhar para as estrelas, notou que uma delas, bem pequena, estava se movimentando, aparentemente se aproximando.



Assim que deu os primeiros passos para o interior da caverna Valkiria sentiu que o dócil Bill tinha ficado para traz e retornou à sua entrada.

O Bill cão estava em transe uma vez mais, olhava fixamente para a estrela que há pouco achou que se movia em direção ao Mundo dos Cristais e, ao olhar novamente teve a impressão de que ela estava mais próxima.

Fez uma leve carícia em suas orelhas, foi o bastante para ele despertar e entrar correndo em direção ao interior da caverna.

Angélica também apressou os passos, já não havia ninguém no mundo exterior, em muito pouco tempo o dia amanheceria.

Foram direto ao lago no interior da caverna.

O Bill estava especialmente feliz, desejava mostrar a todos o seu cristal. 

Não ter a mesma linguagem dos humanos aqui no Mundo dos Cristais não fazia muita diferença, as pessoas não conseguiam compreender mais que algumas poucas palavras que outros falavam.

Curiosamente ainda assim a comunicação não era um problema maior entre eles e o Bill cão se comunicava com todos sem maiores dificuldades.

Era aqui no interior dessa caverna, que até então mais conseguiu ser compreendido, e igualmente compreender os demais, só havia mais um mundo, que muito em breve ele descobriria, no qual iria conseguir se comunicar com igual facilidade.

É curiosa a qualidade de as pessoas, mesmo de mundos diferentes conversarem, mesmo quando não compreendem a fala dos outros, às vezes Angélica conversava por horas com o dócil Bill e, ainda que ele não pudesse retribuir com palavras, em seu olhar era possível observar todos os significados necessários.

Haviam muitos outros que ocupavam a caverna que também apreciavam conversar com ele.

O Bill cão é um excelente ouvinte, e em seus olhos transbordam palavras que acalentam a alma de todos.

Angélica pensativa disse a si mesma, a maior parte das palavras que proferimos são para nós mesmos, uma pena que muito pouco de nós tem a percepção do que isso significa, achou que esse era um grande aprendizado que tinha conseguido internalizar aqui, no Mundo dos Cristais.

Com muita alegria o dócil Bill continuava a mostrar seu cristal a todos, era lindíssimo.



Angélica e o Bill cão descansavam sentados em uma grande pedra estavam deixando que o tempo os secassem depois de terem se banhado no lago da caverna.

A água morna deixava na pele um leve perfume de lavanda. O dócil Bill naturalmente demorava um pouco mais para se secar.

Ao olhar nos olhos de seu companheiro Angélica sentiu que estava chegando o momento de deixar esse mundo de encantos, ainda que não soubesse como se daria a sua partida, sentiu uma ponta de angustia, teve a percepção de que ao partir também teria que se despedir de seu amigo.

Enquanto aguardava que o Bill se secasse um pouco mais ficou pensativa, lembrou-se de seus primeiros dias no Mundo dos Cristais, quando ainda estava cega, pela intensidade da luz que a surpreendeu ao chegar a esse mundo, da mulher que cuidou dela até que o Bill chegou e ela partiu.

Ficou se perguntando se em algum momento voltariam a se encontrar, sentiu que ainda partilhariam a companhia.

Ainda olhando nos olhos do dócil cão sentiu vontade de abraçá-lo, saindo de seu transe ele colocou as mãos ao redor do pescoço dela, com um sorriso na face Angélica o abraçou com força, seus pelos já estavam secos.

E falou baixinho nos ouvidos dele: “Vamos comer um pouco daquele pão de milho gostoso e algumas outras guloseimas.”

Assim que se soltaram o dócil Bill disparou em direção ao salão de onde vinha o cheiro de café que acabara de ser feito.

Angélica caminhou em passos lentos, sentindo que muito em breve iria se despedir de seu dócil companheiro.



Enquanto apreciava o seu chá com pão de milho Angélica colocou os três cristais que segurava em uma das mãos entre o pratinho que continha o pão e a xícara.

O dócil Bill emitiu um pequeno uivo, baixinho, que só quem estava pertinho conseguiu ouvir.

Angélica desviou seu olhar em direção ao seu companheiro e viu que o seu pequeno prato já estava vazio, um sorriso brotou em sua face, logo depois separou mais uma porção generosa de guloseimas para ele.

Depois voltou seu olhar para as pedras à sua frente, sentiu que o seu chá estava esfriando e apreciou lentamente o que ainda restava na xícara.

Estava observando atentamente os cristais à sua frente, apreciou cada uma de suas faces calmamente, e sentiu que o azul no centro apresentava um brilho mais intenso, ao colocá-lo na mão em um primeiro instante viu o reflexo de seus olhos, mas ao observar mais atentamente, em seu centro surgiu um brilho intenso.

Foi nesse instante que sentiu que aquele era o seu cristal, a sua estrela brilhava intensamente em seu interior.

E ali sentada à mesa com o Bill-cão sonolento aos seus pés com muita calma modelou a corrente e a presilha com fios transparentes que sustentaria o cristal.

Angélica estava em transe, ainda que confeccionasse o pingente com perfeição, estava enfeitiçada pelo cristal seus olhos estavam fixos no seu interior, o brilho que vinha dele a fascinava, permaneceu por um longo tempo na mesma posição, o brilho era tão intenso que não enxergava mais nada que estivesse à sua volta.

Só veio a despertar quando o Bill, cansado, depois de raspar as mãos em suas pernas sem sucesso, colocou-as  em seu colo e uivou.

Todos que estavam na caverna vieram ver o que estava acontecendo.

Não demorou para sentirem que Angélica tinha descoberto qual deles era o seu cristal.

Seria um dia de festa.



Angélica nesse momento era o centro das atenções todos a rodeavam, queriam ver o colar que estava em seu pescoço, o brilho de seus olhos podiam ser visto no interior do cristal.

O dócil Bill não a deixava sentou-se junto aos seus pés, se mantendo entre Angélica e os outros que habitavam a caverna.

Caminharam em passos lentos até a lagoa no interior da caverna, por uns instantes retirou o colar do pescoço e o deixou sobre uma grande pedra próxima à água, todos desejavam apreciá-la.

O Bill foi o primeiro a colocar as mãos em cima da pedra e olhar o interior do cristal, permaneceu assim por um longo instante, sentiu-se fascinado, em transe.

Depois que todos a observaram Angélica voltou a pendurar seu cristal no pescoço, ao olhar em seu interior sentiu que seu brilho estava ainda mais intenso, ao tocar a pele, pertinho do coração sentiu que estava levemente aquecido.

O movimento deixou a ela e o dócil Bill cansados, aos poucos as pessoas foram se dispersando e voltaram aos seus pensamentos.

É curioso como no dia a dia em nossos mundos as pessoas pouco se voltam aos próprios pensamentos. No Mundo dos Cristais, quando as pessoas não estavam à procura de suas pedras durante a noite, tudo que podiam fazer era ficar nas cavernas, pois durante o dia não era possível ficar no mundo exterior e, nas cavernas sempre tinham muito tempo.

O Mundo dos Cristais não deixava de ser um lugar destinado à busca de si próprio.

Cansados Angélica e o Bill cão se dirigiram ao canto da caverna onde costumavam dormir.

Estava se sentindo muito feliz, deitaram-se olhando nos olhos.

Entre eles Angélica colocou as duas pedras que ainda carregava nas mãos, pensou que tão logo o dia findasse ficaria na entrada da caverna fazendo as correntes para prender os dois cristais.

Ao acarinhar as orelhas de seu sempre companheiro sentiu que ele já tinha adormecido, olhando as pedras entrou em transe, no interior do cristal verde, antes de adormecer viu Valkiria em frente a uma pequena casa rodeada por um gramado.



Depois de alguns instantes Angélica acordou, a caverna estava em silêncio, o Bill continuava ao seu lado dormindo, respirando profundamente.

Em silêncio continuou olhando os cristais que tinha deixado à sua frente, ambos eram lindíssimos, mas o verde parecia ter um brilho mais intenso, desejou segurá-lo nas mãos.

Ao tentar esticar o braço para pegá-lo sentiu-se paralisada, o corpo não a obedecia, foi quando se deu conta que não estava acordada, era como se estivesse em um mundo intermediário entre os sonhos e o Mundo dos Cristais.

Sentia a caverna à sua volta, percebia o Bill dormindo à sua frente e o movimento que seu corpo fazia ao respirar.

Concentrou-se em sua própria respiração, e como o dócil Bill começou a respirar profundamente também, no mesmo compasso de seu sempre companheiro.

Seus olhos estavam fixos no cristal verde, e notou que gradualmente seu brilho diminuía a intensidade e agora podia ver em seu interior.

Primeiro viu um par de olhos em seu interior, teve a impressão de que era um reflexo dos dela, mas ao prestar maior atenção percebeu que tinham uma tonalidade diferente, lentamente aqueles lindos olhos foram se afastando, dando lugar à face de Valkíria.

Um respirar um pouco mais profundo do dócil Bill desviou a sua atenção, ele tinha acabado de acordar e rapidamente se levantou e correu em disparada ao salão onde costumavam se alimentar.

Angélica sentiu o cheiro de pão de milho que tinha acabado de sair do forno, mas permaneceu por mais uns instantes na mesma posição, percebeu que agora seu corpo a obedecia, sentada, se espreguiçou esticando longamente os braços, sentia-se descansada, bem disposta.

Ao tocar o coração sentiu o seu cristal.

Ao pegar o cristal verde que tinha deixado à sua frente uma vez mais viu a face de Valkíria, mas ao continuar olhando tudo o que percebeu foram os reflexos das luzes em seu interior.

O Bill cão retornou correndo e ficou ao seu lado abanando o rabo. Sentiu que ele a estava chamando para partilhar o café que tinham acabado de fazer.

O sol do Mundo dos Cristais estava começando a desaparecer no horizonte.



Com a iminência do anoitecer o movimento na caverna aumentou, aqueles que estavam dormindo despertavam aos poucos e se dirigiam à entrada da caverna, ficavam à espera que a luminosidade amenizasse para voltarem a procurar os seus cristais.

Angélica já não tinha essa motivação, ficou descansando por mais alguns instantes, aguardando que o Bill cão também desejasse se levantar.

Quando o movimento na caverna tinha diminuído, em passos lentos se dirigiu à entrada da caverna, ao ter se afastado uns poucos passos o dócil Bill disparou em sua direção.

Assim que chegou à entrada da caverna percebeu algumas pessoas desaparecendo no horizonte, na sombra das montanhas que envolviam a caverna.

Essa noite ainda que refletisse inúmeros brilhos estava levemente mais escura que as habituais.

Ao olhar para o céu viu o que pensou na noite anterior ser uma estrela se aproximando. Ela estava realmente mais próxima, mas não era uma estrela, não tinha luz própria e projetava uma sombra justamente à frente da entrada da caverna.

O céu estava lindíssimo, assim como o Mundo dos Cristais, a menor intensidade luminosa permitia a ela apreciar ainda mais as belezas desse Universo.

Angélica sentia-se grata por desfrutar a existência nesse Universo.

Voltou-se assim a terminar os colares para os cristais que ainda carregava nas mãos.

Dessa vez conseguiu concluí-los mais rapidamente, deu um toque pessoal em cada um deles, primeiro fez aquele que era destinado à Valkíra, o cristal verde, ao prendê-lo junto à corrente uma vez mais viu os olhos dela em seu interior.

Quando terminou a sua tarefa sentiu que Franz e Valkíra estavam próximos, e com isso estava chegando o momento de se despedir do Bill cão.

Antes de voltar ao interior da caverna uma vez mais olhou para o céu e nitidamente teve a impressão de que a Casa do Gramado estava ainda maior.

Dessa vez o Bill não a seguiu, estava em transe apreciando o corpo celeste que se aproximava.

Ainda em transe uivou bem alto.

Todos que estavam nas proximidades ouviram e voltaram à procura de entender o que estava acontecendo.

Angélica caminhava em passos lentos em direção ao lago no interior na caverna, sentia o desejo de se banhar.

Deixou os dois cristais em cima da grande pedra, para que todos pudessem apreciá-los.

Em seu coração brotou um grande sentimento de saudades, desejou estar em seu pequeno vilarejo junto à estação, queria ver, tocar as plantas e, uma vez mais apreciar o vai e vem das pessoas.



Depois de se banhar por um longo tempo sentou-se próximo à pedra onde tinha deixado os cristais, ao olhar mais atentamente no interior deles pôde ver nuances de uma trilha que chegava à Casa do Gramado.

Sentiu-se encantada pelos cristais, junto à entrada da casa, na varanda viu um cachorro semelhante ao Bill, mas ligeiramente maior, estava com as orelhas empinadas, prestava atenção em tudo à sua volta.

Ficou com a impressão de já ter visto aquele lindo cachorro em algum momento, mas agora não conseguia se recordar.

Em passos lentos se dirigiu ao salão onde costumava tomar seu lanche, pelo que se recordava era a primeira vez que fazia isso sozinha.

Quando chegou a esse mundo, nos primeiros dias teve a companhia da mulher que cuidara dela, enquanto não tinha recobrado a visão e, depois que ela partiu o dócil Bill sempre esteve ao seu lado.

Dessa vez estava só com seus pensamentos, refletindo sobre o tempo que estivera junto a todas essas pessoas nesse mundo maravilhoso.

E, desde que tinha chegado, era a primeira vez que o Bill cão não estava ao seu lado.

Tomou o seu café com umas poucas guloseimas, as saudades do pequeno vilarejo onde morava antes de vir ao Mundo dos Cristais traziam um aperto ao seu coração.

Sentia falta da companhia do Bill, ele sempre trazia alegria ao seu coração, quando terminou caminhou em direção à entrada da caverna, mas não estava encontrando seu sempre amigo.

Uma preocupação surgiu em seu coração e apressou os passos, o dia já tinha amanhecido temia que o Bill saísse para o mundo exterior e perdesse a visão, como tinha ocorrido a ela.

Como não o encontrava andou ainda mais rápido, ao chegar próximo à entrada da caverna viu o dócil Bill sentado do lado de fora olhando para o céu, inicialmente se assustou, mas ao perceber que ele estava parado, diminuiu os passos.

Logo percebeu uma luz azul o envolvendo.

Com medo aproximou-se lentamente da entrada da caverna, havia uma sombra azulada, que diminuía a intensidade luminosa do reflexo das luzes nos cristais. O Bill estava em transe, olhando para o céu.

Ao chegar no limite da entrada da caverna com o mundo exterior se deparou com um mundo flutuando acima do chão projetando uma sombra, na qual o dócil Bill estava em seu centro, imóvel.

A Casa do Gramado estava envolta por uma densa luz azul escura projetando sua sombra em uma grande área junto à entrada da caverna.



Lentamente a Casa do Gramado desceu, enfrente à entrada da caverna.

A luz azul que projetava à sua volta era tão intensa que o interior da caverna se tornou uma penumbra, não era possível enxergar nada ao redor.

As pessoas inicialmente ficaram desorientadas e, aos poucos, começaram a procurar pela entrada da caverna. Angélica estava bem próxima.

De onde estava podia ver o dócil Bill olhando para traz, ele estava a sua espera.

Ao se aproximar se abraçaram ternamente por um longo tempo. Enquanto esteve no Mundo dos Cristais o dócil Bill sempre foi seu companheiro, esteve o tempo todo junto, pertinho do coração, pulsando juntos.

A luz azul escura que se espalhava ao redor era lindíssima um presente a todos que no momento habitavam esse mundo de encantos.

Em passos lentos, com o Bill ao seu lado caminharam em direção à Trilha que dava acesso à Casa do Gramado.

Ao chegarem à entrada da Trilha uma vez mais olharam para traz, estavam se despedindo.

Lentamente a Casa do Gramado começou a se erguer do chão, quando estavam uns poucos metros acima do solo a luz intensa do dia impedia que os demais saíssem da caverna.

Angélica e o dócil Bill já tinham dado os primeiros passos, adentrando na Trilha. As grandes árvores se fechavam impedindo que o brilho intenso do Mundo dos Cristais não os permitissem enxergar o caminho.

Ao olhar para cima a densa luz azul que envolvia a Casa do Gramado dava a impressão de ser uma noite escura, como as que Angélica estava habituada quando vivia no Mundo das Estações.

O dócil Bill uivou bem alto e parou por um instante a sua caminhada.

Angélica sentiu estar voltando à sua casa.



Após caminharem por alguns momentos trilha adentro; andavam bem devagarzinho, não tinham pressa, desejavam apreciar cada momento dessa caminhada, logo depois de uma curva acentuada; se depararam com um trem, com uma única composição que estava à espera.

Enfrente à entrada do vagão Angélica e o dócil Bill pararam, junto a uma grande árvore tinha pedra, na qual era possível aos dois se sentarem.

Descansaram nela por um longo tempo, olhavam-se nos olhos, ficaram assim, em transe, para eles o tempo havia parado.

O tempo tem suas peculiaridades, às vezes um instante pode parecer uma eternidade, assim como a eternidade pode se esvair em uns poucos segundos.

Angélica não saberia quanto tempo permaneceram se olhando e isso não fazia qualquer diferença a nenhum dos dois, foi um sentimento que os despertou, um sentimento mútuo, os dois sentiam saudades.

Ela de sua vida no vilarejo e o Bill de Franz, Valkíria, e outros anjos e, havia um pequeno anjo que se esgueirara próximo à Casa do Gramado, que conseguia permanecer invisível a quase todos, inclusive ao Freud-cão, que mesmo tendo sentido a sua presença, ainda não tinha conseguido vê-lo; esse pequeno anjo precisava da ajuda dele.

Angélica despertou primeiro e, ao olhar nos olhos de seu sempre companheiro sentiu que ele ainda olhava o vazio, provavelmente o infinito, lá onde o Espaço se encontra com o Tempo.

Depois de fazer um carinho em suas orelhas ele despertou e correu em volta dela, estava feliz, sentia-se em casa.

Depois de uns poucos passos pararam enfrente à porta do vagão e uma vez mais segurou a cabeça de seu amigo entre as mãos, como um gesto de carinho.

Angélica se abaixou para ficar frente a frente com o dócil Bill e retirou de seu pescoço os dois colares com os cristais que fizera com tanto carinho para Franz e Valkíria, e os colocou no pescoço de seu companheiro.

Ela sentia que os dois estavam próximos, mas que ainda não tinha chegado o momento de encontrá-los, talvez em breve, no vilarejo no Mundo das Estações.

Quando subiu no vagão uma lágrima escorreu de seus olhos.

No momento em que a porta se fechou o dócil Bill seguiu trilha adentro e desapareceu logo depois da primeira curva.



Angélica se dirigiu ao último banco do vagão e ficou olhando pela janela. O trem permanecia imóvel, mas onde estava sentia uma leve trepidação ocasionada pelos motores que estavam ligados.

O Tempo estava permitindo a Angélica que se despedisse do Mundo do Cristais e, principalmente do dócil Bill.

Ao sentir uma nova lágrima escorrendo pela face, a única porta da composição se fechou.

Ela ficou observando os detalhes do vagão, sentiu que era o mesmo que a tinha trazido a esse mundo de encantos, em sua percepção há muito tempo.

Gostava especialmente dos tons da madeira envelhecida da qual o vagão tinha sido construído. Um cheiro forte de café que tinha acabado de ser feito tomou conta do vagão. Até então não tinha notado, ao lado do banco onde se acomodara tinha uma pequena mesa, na qual havia café, chá e algumas guloseimas.

Lembrou-se das inúmeras vezes em que tinha preparado uma porção generosa para o seu anjo, que a acompanhara por um longo tempo, mas dessa vez não havia um prato a mais para que ela deixasse um agrado para ele, assim no único prato disponível depositou um pão de milho e mais algumas guloseimas e deixou no chão, junto à mesinha.

Lentamente o trem entrou em movimento, com os seus barulhos característicos.

Olhando pela janela enxugou a lágrima e ficou apreciando um pouco do café.

Depois de alguns instantes o trem emitiu seu apito característico, ao olhar pela janela, na Trilha, junto aos arbustos viu o Bill, correndo livre ao lado do trem.

Ele estava tentando pegar algum barulho, provavelmente o apito que tinha acabado de ser soado.

Ao ver seu companheiro o coração de Angélica disparou e um leve sorriso tomou conta de sua face.

Gradualmente o trem foi se desprendendo do chão, estava flutuando, já não era possível sentir a trepidação dos motores, quando estava acima as árvores do dócil Bill já não conseguia acompanhá-lo.

Ele parou em uma clareira e ficou olhando o trem se dirigindo às estrelas, ao ver ele se afastar diminuindo de tamanho na escuridão, esticou o pescoço e uivou bem alto.

Ao ouvir Angélica sentiu que o aperto em seu coração diminuía, ao colocar a xícara vazia em cima da mesinha, olhou para o chão e viu que o pequeno prato com as guloseimas que tinha deixado para seu companheiro estava vazia.

O sorriso voltou a estampar em sua face.

Agora Angélica pensava em sua vida, lá no pequeno vilarejo no Mundo das Estações, e sentia que em algum momento o Bill viria visitá-la.

Na varanda da Casa do Gramado, o Freud-cão foi o primeiro a despertar, seguido de Franz e Valkíria.

Antes ainda de despertar Franz reconheceu aquele uivo, seu coração disparou. Levantou-se junto com Valkíria e seguiram Trilha adentro para encontrarem com seu dócil anjo.

Um comentário:

  1. Nos presenteia com mais um belíssimo conto, um misto de sentimentos, vivências, imaginação e reflexões.
    Deliciei me com os encantos trazidos pelo nosso Bill, desse mundo fascinante de pura magia.
    Você sempre nos surpreende com textos lindos! Parabéns!

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