sábado, 28 de novembro de 2015

Nas Montanhas.



Franz sentia que fazia horas que se revirava na cama, mas o sono parece que se recusava a retornar, ao olhar para a janela notou que ainda estava escuro, despertou sentindo calor e quando levantou brevemente os cobertores sentiu o ar frio que dominava todo o quarto.

Assim por uns instantes desistiu de se levantar, ainda que se sentisse atraído por um café bem forte e o pão de milho que trouxera para casa quando estava quase anoitecendo.

Só que ao mesmo tempo que não despertava o suficiente para se levantar também o sono parecia tê-lo abandonado pelo menos por aquela noite.

Como estava escuro não fazia idéia de que horas eram, experimentou ligar a televisão, quem sabe assim pelo menos conseguisse descobrir quanto faltava para o dia amanhecer, mas o controle remoto que mantinha próximo ao travesseiro tinha desaparecido.

Apenas com a face descoberta tentou uma vez mais ver Além da Janela, mas estava totalmente escuro, foi ai que percebeu que as luzes da rua também estavam apagadas.

Sentiu-se cansado e lentamente os olhos foram ficando pesados, quando estava praticamente adormecido ouviu passos no corredor de seu quintal, mais precisamente o som de unhas de quatro patas resvalando na calçada do corredor.

Despertou imediatamente sentiu que o dócil Bill também tinha despertado e estava andando à toa.

Dessa vez o frio da noite não o conteve, mas enquanto descia a escada veio a lembrança de que seu dócil companheiro já não vivia na mesma casa, sentiu uma imensa saudade, já fazia algum tempo que ele tinha ido habitar o Mundo dos Cristais, todavia ele viveria para sempre em seu coração.

Ao chegar no piso inferior reconheceu os passos de um ser Desconfiado caminhando pelo quintal, Franz sentia que ele tinha vindo a pedido do dócil Bill para fazer companhia, trazendo consigo muita alegria.

Ao abrir a porta o Desconfiado estava à espera e, com seus passos lentos subiu a escada que dava acesso à rua e ficou esperando no topo, abanando o rabo.

Franz estranhou desde que ele viera não conseguia passear com ele, tentou muitas vezes, mas o máximo que conseguia era chegar até à calçada enfrente à sua casa, onde agora a vegetação estava crescendo além do esperado, estava diferente.

Retornou ao interior da casa, não iria sair sem antes apreciar um bom café e aquele pão de milho que parecia o estar convidando.

Assim que terminou o café procurou pela guia talvez nesse dia o pequeno Desconfiado se resolvesse por um breve passeio, mas curiosamente não a encontrou, estava escuro e até o momento as luzes ainda não tinham se resolvido a acender.

Sentiu que a guia seria desnecessária, o pequeno Desconfiado continuava aguardando no topo da escada e quando uma vez mais viu Franz voltou a abanar o rabo.

Na linha do horizonte um clarão denunciava que logo o sol iria nascer, o céu ainda estrelado denotava uma tonalidade azul bastante escura, não havia nenhuma nuvem, prenunciava um dia bastante agradável.

Ao chegar ao portão que dava acesso à rua e procurar pela chave de sua casa, ainda com a mão no bolso, sentiu que o chaveiro estava diferente, tinha uma única chave e aparentemente tinha uma pedra lisa junto a ele.

Quando retirou o chaveiro do bolso viu preso à chave um lindo cristal azul, sabia que aquele não era seu chaveiro habitual, mas a beleza do cristal desviou a sua atenção a ele, era lindíssimo, ficou apreciando por alguns minutos.

Já do lado de fora continuava apreciando o cristal, diante da demora, o Desconfiado se sentou ao seu lado e ficou aguardando com ansiedade, os olhos arregalados e tentando empinar as orelhinhas.

Franz sentiu que era um presente do Bill, sua saudade amenizou, sentiu ele pertinho, junto ao coração.

A rua estava deserta, do lado oposto onde o sol nasceria uma única estrela ainda brilhava intensamente, mas logo cederia o seu lugar à claridade do dia que o sol estava anunciando.



No topo da escada Franz sentou-se ao lado do Desconfiado e assim ficaram um longo tempo partilhando a presença, mas o dia não se resolvia a nascer, parece que o Desconfiado tinha esquecido de acordar o sol.

Sentindo um pouco de frio Franz resolveu voltar à cama e desfrutar um pouco mais o calor dos cobertores, o pequeno Desconfiado o seguiu e se deitou no tapete, ao lado de Franz.

Quando achou que tinha despertado o dia estava claro, teve a impressão de que já havia adentrado o período da tarde, alguns raios de sol atravessavam a janela, ao olhar ao lado da cama notou que o Desconfiado não estava mais lá.

O pão de milho que tinha trazido no dia anterior chamou a atenção de Franz que preguiçosamente se levantou para apreciar a iguaria, o Desconfiado estava no corredor apreciando o sol e ao perceber que Franz preparava o café também veio em busca da parte dele.

Foi quando Franz ouviu o portão da frente se abrir, com seu barulho característico, interrompeu brevemente o seu café para olhar quem havia chegado e, no topo da escada viu sua amada Valkíria chegando, ficou parado por uns instantes em frente à porta observando seu grande amor, mas ela não o havia notado, assim Franz retornou ao seu café, enquanto aguardava.

Curiosamente o pequeno Desconfiado parecia nada ter percebido, não tinha saído para o quintal latindo como gente grande, o que fazia habitualmente sempre que alguém chegava, continuava embaixo da mesa, se escondendo, apreciando a sua parte do pão de milho.

Como Valkíria demorava para descer Franz ficou curioso e assim que terminou seu café foi ver o que tinha acontecido e se deparou com o portão da entrada da casa fechado, como tinha deixado anteriormente e o quintal estava vazio.

Sentiu-se confuso e depois de algum tempo se deu conta de que estava dormindo e tudo não tinha passado de um sonho.

Ainda dentro do sonho resolveu voltar à sua cama, tinha a intenção de compensar a insônia que tivera durante a madrugada, uma vez mais o pequeno Desconfiado o acompanhou e também se deitou no tapete ao lado da cama.

Depois de transcorrido horas ao menos em sua percepção Franz sentiu sua Valkíria se sentar ao seu lado na cama, ainda não tinha despertado, mas o doce perfume de lavanda sem dúvida revela a presença dela.

Quando ela se sentou também sentiu o movimento na cama e a mão de sua sempre namorada acarinhando levemente o seu ombro, o toque suave o despertou.

Foi quando a ouviu dizer baixinho, só para que ele ouvisse:

- Dorme meu amor, sei que está cansado, descanse bastante.

A doce fala o fez despertar, mas ao olhar à sua volta o quarto estava vazio, apenas a luz do sol adentrava o quarto.

Franz continuou deitado, ainda tinha duvidas se sua doce Valkíria tinha estado ao seu lado ou se tudo ou parte dos últimos momentos tinham sido um sonho.

Quando se resolveu levantar já estava escuro, ainda que parecesse estar frio sentia que a temperatura estava agradável.

Dessa vez não sentia qualquer necessidade do café, ao chegar no quintal se deparou com o Desconfiado no topo da escada, esperando, abanando o rabo, pensou em pegar a guia para passear com ele, mas sentiu que dessa vez isso não seria necessário.

Ao chegar enfrente ao portão com o Desconfiado ao seu lado uma vez mais se deparou com um chaveiro diferente do seu, o mesmo que tinha encontrado anteriormente com uma única chave junto a um cristal azul, sentiu que aquele cristal era um presente do dócil Bill.

Parou por uns instantes na calçada da casa, o dia ainda não tinha se decidido a amanhecer, um clarão alaranjado no horizonte denunciava que o Desconfiado tinha acordado o sol e, do lado oposto a Estrela Azul brilhava intensamente.

Franz sentiu que dessa vez não tinha necessidade de trancar o portão, retirou a chave do chaveiro junto ao cristal azul e a deixou meio que escondida entre as plantas que brotavam nas rachaduras da calçada, as quais tinham crescido muito nos últimos dias e agora mostravam as suas flores.

Estava deixando lá como um presente, mas seria para alguém que apreciasse as plantas, a pessoa tinha que gostar delas para encontrar a chave da casa em que por muitos anos Franz vivera e tinha sido feliz, mas agora sentia que esse não era mais o seu lugar.

Franz e o Desconfiado caminhavam lentamente, não desejava olhar para traz, o pequeno cachorro seguia alguns passos à frente, só às vezes olhava para ver se Franz o acompanhava.

A rua ainda escura, estava totalmente deserta, nem os passarinhos tinham despertado. Franz e o Desconfiado andavam em direção à Estrela Azul, deixando o Mundo dos Preocupados para traz.



Franz teve a impressão de ter caminhado por horas ao lado do Desconfiado, mas não se sentia cansado, e o pequeno cachorro também continuava andando, aparentemente alegre.

Permaneceram assim por mais um tempo, a madrugada estava mergulhada no silêncio, só interrompido pelos passos rápidos do cachorrinho.

Franz permaneceu assim, só prestando atenção no barulho que seu pequeno companheiro fazia ao andar, os leves ruídos o distraiam.

Lembrou-se do dócil Bill que sempre despertava ao menor barulho e saia correndo para pegá-lo.

Já fazia algum tempo que tinha notado que o dia já deveria ter amanhecido, mas a escuridão da madrugada persistia, tentava desviar o pensamento, porém persistia a impressão de que o tempo tinha parado.

Ainda que não olhasse para traz sentia o clarão do sol que em breve iria surgir às suas costas, por outro lado a escuridão do céu não combinava com esse clarão, se o dia estivesse para nascer o céu não poderia estar tão escuro.

À sua frente a Grande Estrela Azul brilhava intensamente, pouco acima da linha do horizonte, desenhando o contorno de imensas montanhas aparentemente pouco à frente dela.

Sentiu que as coisas não estavam da forma como conhecia, mas a diferença trazia um sentimento de paz, serenidade, temia ficar pensando e despertar no Mundo dos Preocupados.

Sentia não mais pertencer a ele.

Agora os ruídos do caminhar do pequeno Desconfiado estavam diferentes, ele estava alguns passos à frente, andou um pouco mais rápido para ficar ao lado dele, foi quando notou que o chão estava diferente, não caminhava mais no asfalto, a rua agora parecia mais estreita e era de terra com algumas pedras soltas.

Também, diferente de onde morava já não havia prédios, nem casas umas coladas às outras, dividindo as mesmas paredes, havia espaços vazios entre elas e muitas árvores dividiam o espaço com a vegetação.

Sentiu que tão logo não iria ver o dia amanhecer.

As montanhas na linha do horizonte pareciam maiores.



Franz se sentia entorpecido, já não percebia seus passos era como se flutuasse pouco acima do chão, simplesmente deslizando, também não ouvia mais os passos apressados do pequeno Desconfiado.

Estava entrando em transe, agora habitava um lugar que não pertencia nem aos Acordados e nem ao Mundo dos Sonhos.

Achou que os Acordados habitavam um mundo que ainda não conhecia, não era o Mundo dos Esquecidos que em algum momento não mais podiam dormir por terem que ficar olhando para céu, pois a região em que viviam era repleta de pequenos asteróides que estavam sempre caindo do céu, assim precisavam permanecer acordados olhando para cima na expectativa de poderem se afastar de locais onde poderia cair algum deles.

Esses, tão logo conseguiram mudar seu planeta para um local pouco sujeito a esse tipo de acidentes voltaram a dormir e a visitarem o Mundo dos Sonhos e assim puderam voltar a contar as suas histórias nos imensos mosaicos de pedras coloridas.

Mas essas eram outras histórias.

Franz agora pensava em sua antiga casa desejava que alguém que gostasse de plantas encontrasse a chave que deixara em sua calçada e a habitasse e que permitisse a elas crescerem a partir de seu pequeno quintal e ocupassem o Mundo dos Preocupados mostrando a eles que seu mundo também era das plantas.

E à medida que se dessem conta disso talvez percebessem que o mundo não era deles e sim, que eles pertenciam àquele mundo, podendo assim simplesmente existir e deixarem de ser preocupados.



O céu escuro e o sol nascendo no sentido oposto ao qual caminhava já não mais ocupava o pensamento de Franz, nem do pequeno Desconfiado.

Efetivamente o tempo havia parado, à frente a Grande Estrela Azul brilhava intensamente desenhando a silhueta das montanhas no horizonte.

Agora a grande estrela já não parecia tão próxima às montanhas, à medida que se aproximava delas a estrela se mostrava mais acima no céu.

A rua de terra batida e pedras soltas também tinha ficado para traz, no momento Franz e seu pequeno cachorro flutuavam em uma trilha estreita, sinuosa e plana. As árvores e a vegetação estavam muito próximas.

Franz tinha a impressão de estar caminhando já há alguns dias, na contagem do tempo dos Preocupados.

Esses tinham o hábito de contar o tempo para todas as suas atividades, tinham horário para tudo, inclusive para as coisas que não tinham hora certa para serem executadas.

Rapidamente pensou no tempo em que ainda estudava lembrou-se que havia algumas disciplinas que eram optativas, gostou da maioria delas, mas na formação tinha que completar um certo número de créditos nas disciplinas optativas, ou seja, mesmo aquilo que era optativo no Mundo dos Preocupados, não deixava de ver obrigatório.

Ficou imaginando como os Preocupados se sentiriam se seus relógios fossem subtraídos, se começassem a andar para traz, ou ainda se simplesmente parassem de se mover.

O que aconteceria aos Preocupados se em algum momento o dia não amanhecesse e nem permanecesse na escuridão.

Seu pensamento foi interrompido pelo doce perfume de lavanda, lembrou-se de Valkíria, sua sempre amada.

Estava em um campo de lavandas que se estendiam até onde seus olhos podiam alcançar, até o infinito.

Sentiu estar o ponto mais alto da Trilha, nitidamente ela se acabava aos pés das montanhas que ainda estavam muito distantes, em seu ritmo de caminhada sabia que ainda levaria alguns dias até chegar a elas.

O perfume da lavanda trouxe um aperto em seu coração desejou estar junto à sua doce Valkíria, parou por uns instantes, o pequeno Desconfiado ainda deu alguns passos e também parou esperando por Franz.

O pequeno cachorro voltou seu olhar à grande estrela e uivou bem alto.



O cheiro de lavanda ocupou todos os pensamentos de Franz, traziam em si lembranças de sua doce Valkíria.

O pequeno Desconfiado também estava apreciando o cheiro, sentado nas pernas traseiras esticou o quanto pode seu focinho e uma vez mais uivou bem alto.

Dessa vez despertou Franz de seu transe, que deixou de flutuar e lentamente desceu até o chão.

Um sorriso brotou de sua face, lembrou-se do Freud-cão, quando viviam no mundo dos Preocupados, nas noites de lua cheia tinha o hábito de subir no último degrau da escada da casa onde moravam e uivava bem alto, nessas ocasiões depois de ele se pronunciar, por alguns instantes reinava um grande silêncio, até onde os ouvidos podiam alcançar.

Ele estava chamando a atenção para um belíssimo espetáculo que acontecia à noite, por alguns dias consecutivos, todos os meses, mas eram poucos os Preocupados que se davam conta do que estava acontecendo, só os cachorros que moravam na região, além de Franz e uns poucos é que sabiam do presente que a vida estava proporcionando a todos.

Uma vez mais antes de reiniciar sua caminhada Franz olhou para traz, o clarão do sol anunciando um novo dia ainda estava lá, mas o céu continuava mergulhado na escuridão.

Acarinhou ternamente a cabeça do Desconfiado, apertando de leve suas orelhas e depois disso ambos voltaram a caminhar em direção às montanhas.



Depois de atravessarem os campos de lavanda a Trilha mergulhou em uma floresta permeada por grandes árvores, atrás deles o clarão da luz do sol anunciando o nascimento de mais um dia ficou mergulhado na escuridão.

À frente do pequeno Desconfiado e de Franz apenas a luz da Grande Estrela Azul conseguia passar por alguns pequenos vãos entre os galhos e folhas das árvores.

Exceto por essa pouca luz a Trilha estava totalmente mergulhada na escuridão.

O pequeno Desconfiado caminhava apreensivo ao lado de Franz, depois que adentraram a Trilha ele não mais quis caminhar à frente, seguia tentando não fazer barulho pouco atrás de Franz, mas sua tentativa de manter o silêncio era constantemente frustrada pelo crepitar de folhas secas e pequenos gravetos que se quebravam quando pisava neles.

Notando a apreensão de seu pequeno companheiro Franz voltou a acarinhar ternamente a cabeça dele, e a partir daí flutuaram em silêncio, seguindo o caminho desenhado pela Grande Estrela Azul, pouco acima do chão.

Franz seguia sem pressa, desejava apreciar cada trecho da Trilha, tão bem conhecida em uma de suas inúmeras infâncias.

Sabia que ela se desenhava de acordo com o seu desejo.

A presença de sua amada Valkíria se fazia presente em cada curva, árvore ou arbusto.

Ainda que o campo de lavandas tivesse já algum tempo ficado para traz, o perfume de sua sempre namorada ainda se fazia presente.



Quando chegou a um pequeno entroncamento Franz parou e olhou por um tempo prolongado em seu interior, grandes arbustos e árvores impediam que sua visão fosse além de uma curva acentuada pouco à frente no entroncamento.

O pequeno Desconfiado olhava para cima, fitando os olhos de Franz, aguardava apreensivo.

Continuou a caminhada com passos lentos.

Sabia que pouco à frente encontraria a casa de Valkíria, a sua casa. A Casa do Gramado.

Como imaginou depois de alguns passos o gramado com a casa no centro se desvelou.

A Grande Estrela Azul brilhava intensamente, iluminando toda a varanda, porém tudo estava em silêncio. A casa estava vazia.

Sentou-se no banco onde tantas vezes quando ainda criança tinha ficado na companhia de Valkíria vendo os irmãos menores dela brincando descontraídos no gramado.

A imagem da pequena irmã de Valkíria veio à sua mente quando assustada não quis adentrar o entroncamento, em um de seus passeios pela Trilha, lembrou-se de que nesse dia voltou com ela no colo, ainda que fosse pouco menor que ele naquele tempo, ela estava em prantos.

Quando entrou no gramado, Valkíria logo percebeu o choro da irmã e a acolheu, levando-a ao interior da casa.

Naquela época Franz ainda não entrava na casa, sua presença naquele mundo de encantos se limitava ao gramado e à varanda, lembrava ser aqueles um dos poucos momentos em que não se sentia só no mundo.

Enquanto essas lembranças povoavam a sua mente, sentado no banco da varanda, o pequeno Desconfiado pulou no banco e deitou a cabeça no colo de Franz.

Franz sentiu que estava na hora de prosseguir a sua caminhada, mas aguardou um pouco mais até que o pequeno cachorro que o acompanhava despertasse.

Enquanto olhava a Trilha viu que ela se desenhava, um longo trecho sinuoso, floresta adentro em direção às montanhas azuis à frente da varanda.

A Grande Estrela Azul brilhava intensamente, iluminando a Trilha.



Quando o pequeno Desconfiado acordou, ficou em cima do banco abanando o rabo e olhando nos olhos de Franz, que ainda que estivesse com os olhos abertos, não se poderia dizer que estivesse acordado, mas também não estava dormindo.

Franz estava em transe à sua frente tudo que via era a longa Trilha sinuosa, as Montanhas e a Grande Estrela Azul, brilhando intensamente.

No sentido oposto um clarão denunciava que em mais alguns momentos o sol deveria nascer, mas o tempo continuava parado, como no dia em que Franz deixou a chave de sua casa no Mundo dos Preocupados entre os arbustos que cresciam demasiadamente, enfrente ao seu portão.

Se desviasse o pensamento Franz não saberia dizer há quantos dias tinha iniciado essa sua longa caminhada na companhia do pequeno Desconfiado, mas agora tudo que havia em sua mente era: A Trilha, As Montanhas e A Grande Estrela Azul.

Franz flutuou pouco acima do chão, o Desconfiado emitiu um pequeno gemido ao sentir seu companheiro sair do banco, olhava nos olhos de Franz aparentemente sem compreender.

O gemido chamou momentaneamente a atenção de Franz que se voltou ao seu companheiro, e ele flutuou de leve para que  não se assustasse, em direção aos braços de Franz.

Apreensivo o pequeno cachorro se aninhou junto ao peito de Franz, partilhando o calor e sentindo o pulsar do coração, lento e firme, em compasso com a respiração, depois de uns poucos instantes o Desconfiado também pulsava no mesmo ritmo de Franz, agora igualmente em transe.

Lentamente seguiram a Trilha em direção às Montanhas.



Não demorou e o pequeno Desconfiado adormeceu, sentia-se confortável nos braços de Franz, sua respiração e o coração pulsavam juntos, no mesmo compasso.

A luz da estrela envolvia ambos, que flutuavam pouco acima do chão pela Trilha, em direção às montanhas.

Depois de um longo tempo a Trilha deixara de ser plana, uma tênue subida começava a se desenhar.

O Desconfiado acordou um pouco agitado, sentia falta de ter os pés no chão, com isso momentaneamente Franz saiu do transe.

Agora ao lado da trilha corria um pequeno filete de água cristalina, abaixo da água inúmeras pedras brilhavam intensamente. Franz parou a caminhada por uns instantes sentou-se em uma pedra que estava próxima a uma grande árvore.

Logo o som da água escorrendo entre as pedras chegaram aos seus ouvidos. O pequeno Desconfiado entrou na água e bebeu muito, estava com sede.

Franz também desceu da pedra e com as mãos apanhava porções generosas da preciosa água em um primeiro momento molhou os braços e depois o rosto, depois como o Desconfiado bebeu em abundância, eles estavam se deliciando.

Sentiu que a vida sempre nos dá tudo o que necessitamos com abundância, lembrou-se brevemente dos Preocupados e do sentimento de necessidade que sempre os acompanhavam e eles não se davam conta de que essa necessidade era o resultado de retirarem da natureza mais do que precisavam, era isso que gerava a falta de recursos e a conseqüente necessidade.

Em sua ausência de lógica consumiam e guardavam tanto que as coisas se desgastavam e estragavam antes mesmo de serem usadas e assim a cada dia o Mundo dos Preocupados se aproximava do colapso.

Depois de saciar a sede o Desconfiado sentou-se aos pés de Franz que agora se alimentava com uma fruta que a árvore ao lado da pedra cedera a ele e agora partilhava com o pequeno Desconfiado o que ainda restava.



Assim que terminou de se deliciar com a fruta Franz fez uma leve carícia nas orelhas do Desconfiado e voltou a caminhar pela trilha.

Ao perceber que Franz se distanciava o pequeno cachorro disparou em direção a ele e depois continuou sempre alguns passos à frente, ainda que fosse uma única Trilha sentia a necessidade de mostrar o caminho a ser seguido.

Franz se distraia olhando os passos apressados de seu dócil companheiro.

À medida que se aproximavam das montanhas aquele pequeno filete de água que corria ao lado da Trilha se avolumava assumindo as dimensões de um pequeno rio.

Agora estavam tão próximos das montanhas que ao olharem para cima não mais era possível ver o topo delas.

Ainda levaria algumas horas para chegar aos pés delas, eram gigantescas, seus cumes estavam acima das nuvens e à frente formavam um imenso paredão.

O pequeno filete de água do qual se deliciaram a pouco agora formava um imenso lago com águas transparentes, a trilha margeava o lago que formava um espelho refletindo o céu, as nuvens e as grandes montanhas à frente.

Pararam por alguns instantes. Franz quis ver o caminho até então percorrido à direita da Trilha o lago se desenhava e à esquerda uma imensa floresta com grandes árvores.

À frente as montanhas tocando o céu.

Ao olhar para traz percebeu que do lago fluíam inúmeros pequenos córregos que se espalhavam por toda a floresta, percebeu ser essa a mesma água que chegava ao Mundo dos Preocupados, mas lá tinha uma outra aparência em sua maioria lá os rios tinham águas escuras impregnadas de tudo aquilo que eles não desejavam.

Eles estavam envenenando algo muito precioso, fonte da vida.

Os preocupados tratavam suas águas da mesma forma que o mundo que os rodeava, como uma propriedade algo a ser usado até o limite de sua potencialidade, quando então era descartada como algo inútil, sem qualquer finalidade, não se davam conta de que ao extirpar a vida do mundo em que viviam estavam dando o mesmo destino a si próprios.

Franz se aproximou o quanto pôde do lago, mesmo ao lado da Trilha suas águas eram profundas e transparentes, sua cor era levemente esverdeada, reflexo das árvores da floresta ao lado e das que cobriam as encostas das montanhas.

Quando estava pertinho pôde ver seu reflexo e o do pequeno Desconfiado na água, no fundo havia muitas pedras que brilhavam intensamente refletindo a pouca luz que havia no momento.

O Desconfiado queria beber mais, mas se sentia assustado diante da profundidade do lago, ao perceber Franz pegou a preciosa água nas mãos para saciar o dócil cachorrinho e, antes de voltar a caminhar em direção às montanhas também se deliciou com a água.



Se continuassem caminhando como estavam em poucas horas chegariam aos pés das montanhas, a Trilha agora se desenhava em linha reta levemente íngreme.

A beleza era tanta que Franz e o Desconfiado preferiram caminhar lentamente a flutuar em direção às montanhas, desejavam apreciar todos os detalhes.

Franz continuava refletindo sobre a água, sentiu que ela era proveniente do coração das montanhas, deslizava entre pedras forjadas durante séculos para em seus pés formarem o lago.

Era um presente cedido pela vida para ser apreciado.

À medida que se aproximavam a Trilha se tornava mais íngreme e o lago mais profundo.

O volume de água era mais que suficiente para alimentar não só os Preocupados como também os inúmeros povos que viviam ao redor das montanhas, bastava que aproveitassem o que a vida lhes fornecia em abundância.

Porém os Preocupados viviam no limite em alguns momentos sofriam com períodos de poucas chuvas e a conseqüente falta dessa preciosidade e em outros momentos eram assolados por enchentes, águas sujas invadiam as casas das pessoas, habitualmente as mais humildes, as mais necessitadas.

Não provocassem tantas alterações no mundo em que viviam teriam essa preciosidade em abundância e iriam desconhecer tanto o desconforto de sua falta, quanto os problemas causados pelo seu excesso.

A vida fornecia tudo o que era necessário, e a água estava entre os elementos mais importantes para manter a vida, tanto o excesso dela, quanto a sua falta eram conseqüências de retirar da natureza aquilo que não precisavam.

A subida se tornara íngreme agora os galhos das árvores cobriam totalmente a Trilha invadindo parcialmente as bordas do lago.

O pequeno Desconfiado estava cansado, uma vez mais pararam para descansar, mas o dócil cachorrinho não se aproximava do lago, parecia temer as profundezas dele.

Depois de molhar as mãos e a face Franz ofereceu, com as mãos, porções generosas da água ao seu companheiro e depois também se deliciou, saciando a sua sede.

À frente a Trilha continuava, muito íngreme.



Finalmente tinham chegado aos pés das montanhas, à direita, caminhando trilha adentro o lago se mostrava imenso, formando um espelho de águas cristalinas, refletindo a floresta que se desenhava do seu lado oposto e as montanhas, que de tão altas era impossível ver os seus topos, igualmente não conseguiam ver os limites do grande lago, que se alongava até o infinito, lá onde o Espaço se encontra com o Tempo.

Em uma pequena clareira Franz conseguia visualizar parte da Trilha que tinha percorrido, essa também se desenhava até o infinito.

Até onde seus olhos alcançavam pôde ver um campo ondulado com plantas arroxeadas. Franz identificou a plantação de lavandas a qual tinha atravessado alguns dias atrás.

A presença de Valkíria tomou conta de todo o seu coração e pensamentos, chegou a sentir o cheiro do perfume que dela exalava.

No lado oposto ao que caminhava um clarão denunciando que em breve o dia iria amanhecer, mas desde que deixara o Mundo dos Preocupados esse pequeno clarão não tinha alterado denunciando que o tempo havia parado.

Tudo que podia ver de onde estava era a floresta, as montanhas e o grande lago. Em seus pensamentos Franz imaginou haver uma estreita ligação entre os três.

Pensou que os povos que habitavam os arredores das montanhas eram sábios, mesmo com recursos limitados e conseqüentes dificuldades, viviam afastados do lago bem como da floresta e das montanhas, sentiam que com isso não afetariam a sua pureza, podendo assim desfrutar na medida certa aquilo que a vida lhes proporcionava, sem afetar a vida que proliferava em abundância.

Ficou imaginando se em algum dia os Preocupados aprenderiam a conviver com parcimônia com tudo que a vida lhes proporcionava.

À frente a Trilha se tornava íngreme, seria difícil ao Desconfiado continuar caminhando.

Um tênue raio de luz azul envolveu Franz e o pequeno cachorro e continuaram flutuando montanhas adentro.



Envolvidos pela luz azul Franz e o pequeno Desconfiado flutuavam pela Trilha montanha acima.

A subida era extensa e íngrime ambos estavam em transe com os olhos voltados para cima, mas continuava impossível visualizar o topo das montanhas.

À medida que avançavam o largo rio que desaguava no lago diminuía a sua dimensão, denunciando que nas montanhas havia um conjunto de pequenos rios que se uniam formando o maior que desaguava no lago.

Entre a vegetação nas encostas de pedras das montanhas várias pequenas quedas de água se formavam, algumas em forma de corredeiras e outras vezes desenhavam grandes cachoeiras.

A vegetação era exuberante os galhos das grandes árvores cobriam totalmente a Trilha, deixando o caminho forrado de pedras levemente escuro.

Ao chegarem a uma pequena clareira pararam para apreciar, ainda que não se sentissem cansados, uma vez que estavam sendo transportados pela luz da Estrela Azul que os envolvia.

O pequeno Desconfiado uivou baixinho ao tocarem o chão, à frente a Trilha já não era tão íngrime, mas só era possível ver um pouco à frente, ela era toda sinuosa e os galhos das árvores a cobriam totalmente.

Agora o rio que corria ao lado da Trilha não passava de um pequeno córrego, assim que tocaram o chão o dócil cachorrinho correu para o seu interior, aqui não havia as águas profundas que o amedrontaram dias atrás.

Bebeu abundantemente até saciar a sua sede.

Sentado em uma pedra Franz apreciava seu pequeno companheiro brincando na água.

A árvore ao seu lado estava carregada de frutas bastou esticar um pouco uma das mãos para apanhar uma delas, ao notar o Desconfiado veio correndo ao seu encontro, também desejava experimentar a iguaria.

Depois de se alimentar Franz se dirigiu ao córrego, também queria beber, dessa pequena clareira pôde ver o lago aos pés das montanhas, no limite de onde sua visão podia alcançar conseguiu identificar as bordas dele e a floresta que se desenhava logo além.

Sentiu que além dos locais onde sua visão podia alcançar, no interior da floresta havia inúmeros pequenos povoados, vilas, que desfrutavam a vida que fervilhava na floresta.

Aos poucos o Mundo dos Preocupados se tornava uma tênue lembrança.

Assim que terminaram de se alimentar e saciada a sede se voltaram à trilha diante da leve subida voltaram a caminhar.

Em seu coração Franz sentia a presença de Valkíria.



Depois de algumas horas de caminhada, a vegetação envolta da Trilha já não era tão exuberante, a densa vegetação deixara seu lugar a árvores de pequeno porte e grandes arbustos.

Os pequenos córregos forrados de pedras e águas cristalinas muitas vezes atravessavam a Trilha, quando isso ocorria a Estrela Azul emprestava a sua luz envolvendo Franz e seu pequeno cachorro e os levava flutuando, evitando assim que se molhassem.

Algumas vezes nessas ocasiões o Desconfiado emitia um pequeno uivo e voltava atrás, queria experimentar todas as águas e aparentemente também gostava de molhar os pés e brincar na água.

Agora as árvores já não impediam que Franz visualizasse o céu, o tempo continuava parado no meio caminho entre a madrugada e o amanhecer.

Mesmo com uma claridade branda inúmeras estrelas brilhavam no céu, entre elas a Grande Estrela Azul se destacava, do lado oposto, na linha do horizonte agora podia ver uma pequena parte do sol que deixava a linha do horizonte vermelha, brilhante.

As margens do grande lago se confundiam com a floresta, sabia que além da floresta estava o Mundo dos Preocupados com seu mundo permeado de imensas construções de concreto cinzentas, mas seus olhos já não podiam enxergar esse mundo que por anos tinha habitado.

Os pequenos córregos de águas cristalinas chamavam a sua atenção sentia que eram muito preciosos, sentiu que esse mundo todo era entrelaçado por essas águas que representava a fonte de toda a vida.

Sentiu-se perplexo com a displicência dos Preocupados em relação a essa preciosidade, a vida deles perdia seu valor na medida em que desprezam a fonte dela.

A angustia que habita seus corações tinha uma profunda relação com a displicência que tratavam a fonte de suas vidas, mas estavam sempre preocupados demais com afazeres que desconheciam a finalidade para darem qualquer valor à fonte da vida, isso representava em parte o aperto que sentiam em seus peitos.

O silêncio do dia que se avizinhava e que ao mesmo tempo não chegava se alastrava por toda a montanha, sabia que se o dia amanhecesse esse silêncio seria quebrado pelos pássaros que agora estavam no Mundo dos Sonhos.

Até o córrego que ladeava a Trilha corria em silêncio.

Franz sentiu a presença de Valkíria, ela estava em cada pedra, árvore, arbusto... E até mesmo em cada gota de água.



Agora caminhavam por um trecho plano da montanha, ao redor apenas pequenas árvores e arbustos, ainda que tivesse a impressão de ser uma leve subida, alguns dos pequenos córregos não corriam em direção à floresta lá embaixo, aparentemente estavam subindo a montanha e em algum lugar desaguavam em suas entranhas.

Era a primeira vez que Franz conseguia ver o topo das montanhas, sentiu que logo, talvez apenas mais algumas horas, conseguiria chegar ao topo delas, no ponto mais alto.

Conseguia sentir a pureza do ar, mas às vezes a respiração se tornava difícil, sabia que estava muito acima dos pés das montanhas onde habitava o grande lago e a floresta.

O pequeno Desconfiado parecia cansado, a cada pouco ele parava e depois de apreciar a preciosa água ou alguma fruta, se sentava e só corria atrás de Franz quando ele começava a se afastar.

Ao sentir a dificuldade de seu dócil companheiro Franz se sentou ao lado dele, junto a uma pequena corredeira.

Enquanto apreciava uma fruta, o dócil cachorro brincava na água e com as pedras no fundo do córrego, tinha encontrado uma muito brilhante e tentava pegá-la, mas estava lisa e não conseguia segurá-la.

Percebendo a dificuldade Franz caminhou até ele, a pedra era lindíssima pegou-a na mão e a deixou secar, ficou imaginando que poderia ser feito com ela um colar, ficaria muito lindo junto ao coração de Valkíria.

O pequeno Desconfiado também queria apreciá-la, depois de seca ficou ainda mais linda.

Enquanto Franz e o pequeno cachorro apreciavam a pedra, agora em uma das mãos de Franz, um raio de luz da estrela azul refletiu nela e envolveu os dois e os levou flutuando bem devagarzinho, até o cume das montanhas.



Quando chegaram ao topo das montanhas Franz permaneceu em transe, já o pequeno Desconfiado desejou conhecer o lugar, era lindíssimo.

Agora não havia mais nenhum vestígio de plantas, o chão era coberto de pedras pequenas soltas, muitas delas coloridas, outras transparentes, essas eram cristais, mas o dócil cachorrinho ainda não as conhecia, eram parecidas com a que deixara na mão de Franz para secar.

Ao redor do topo das montanhas inúmeros córregos corriam em direção ao seu interior, dava a impressão que a preciosa água subia pelas encostas de pedra.

Com a dificuldade em respirar devido a altitude o Desconfiado se cansou logo voltou para perto de Franz, que continuava imóvel, flutuando pouco acima do chão com os olhos voltados para a Grande Estrela Azul.

Quando emitiu um uivo bem alto Franz despertou do transe e em sua mente se desenhou a imagem do Freud-cão.

Franz sentiu um aperto no coração sentia falta de seu antigo companheiro, também lembrou-se do Bill-cão, do dia que ainda pequenino, cabia na palma de sua mão e o tinha encontrado em frente ao portão de sua casa no Mundo dos Preocupados.

Quando o abriu o pequeno Bill entrou no quintal e procurou por um canto para ficar, estava muito assustado, foi nesse momento que o dócil Bill o tinha adotado.

Agora desperto do transe ao olhar em volta percebeu estar muito próximo ao céu, sentiu que se esticasse um pouco mais os braços talvez pudesse tocar as estrelas.

A ausência de plantas e o céu límpido contrastavam, entre as pedras brancas que forravam o chão haviam muitos cristais transparentes, coloridos, sentia-se encantado.

Estava com sede, muito próximo havia um pequeno córrego que corria em direção ao interior das montanhas, não se recordava de um dia ter tocado uma água tão límpida, assim que saciou a sua sede o pequeno Desconfiado se aproximou, também desejava beber aquela água preciosa.

Depois de saciado o pequeno cachorro procurou pela mão de Franz, no princípio não tinha compreendido, mas logo percebeu que ele desejava a pedra que ele tinha encontrado algumas horas atrás.

Franz tinha pensado em fazer um colar à sua Valkíria com ele, mas agora percebera que essa era a pedra do seu pequeno cachorro, o colar era para ser feito para ele.

Ao mostrar a pedra ao Desconfiado o reflexo dos olhos dele brilhou no interior da pedra.

Em passos lentos caminharam para o interior das montanhas, Franz sentiu a presença de Valkíria em seu coração assim que deu os primeiros passos.



Enquanto caminhava Franz olhou para o horizonte em todas as direções, mas estavam em um lugar tão alto que não era possível ver nem a floresta que rodeava as montanhas, nem o grande lago aos seus pés.

Tudo que conseguia diferenciar era uma mancha esverdeada na parte debaixo das montanhas formando um degrade com as pedras brancas na parte superior delas.

No topo, entre as montanhas se formava um imenso vale, que parecia tocar o infinito, forrado por pedras brancas soltas e inúmeros cristais coloridos, todos lindíssimos.

O tempo continuava parado, como no momento em que tinha saído do Mundo dos Preocupados, Franz tinha a impressão de que tinha se passado muito tempo, tudo o que restava de sua vida anterior eram vagas lembranças.

Sentiu não pertencer mais ao Mundo dos Preocupados.

Enquanto Franz refletia o pequeno Desconfiado brincava com as pedras no fundo de um pequeno córrego, onde em seu fundo inúmeros cristais brilhavam entre as pedras brancas, o dócil cachorrinho parecia desejar pegar todas, mas ao notar seu companheiro brincando na água Franz pegou a pequena pedra que anteriormente tinha guardado em seu bolso, ao estende-la na palma de uma das mãos o pequeno cachorro correu em sua direção e ficou em transe olhando o interior de sua pedra, que refletia os seus olhos e brilhava intensamente.

Franz se sentia cansado, tinha dificuldade em respirar, sentou-se em uma grande pedra para descansar, em um dos lados do horizonte a luz alaranjada do sol brilhava, de onde estava era possível ver a metade do sol despontando.

Lembrou-se de quando caminhava pela floresta, tudo que podia ver era o brilho alaranjado do dia que estaria amanhecendo, mas desde que iniciara sua caminhada o sol permanecia abaixo da linha do horizonte.

Do lado oposto, na linha dos seus olhos a Grande Estrela Azul também brilhava intensamente.

Ao perceber que Franz estava descansando o pequeno Desconfiado se deitou ao seu lado, a luz da Estrela Azul os envolveu enquanto sonhavam.



Franz e o pequeno Desconfiado adormeceram.

A tênue luz azul que os envolvia aumentou sua intensidade à medida que adentravam o Mundo dos Sonhos.

Seus corpos não tocavam o chão, flutuavam brandamente pouco acima dele, como que se espreguiçando o dócil cachorrinho ficou com as pernas voltadas ao céu, mas logo se aninhou junto a Franz, gostava de sentir o calor do corpo dele.

Franz sonhava.

Sentia-se flutuando pela Trilha, de mãos dadas com Valkíria, eram crianças ainda, estava fascinado pela Casa do Gramado, pensava em se mudar para lá.

Quando chegou ao centro do gramado, em frente à varanda se viu sentado com uma pequena enxada de jardim e um vaso com uma planta com flores amarelas, aquele vaso tinha se tornado pequeno demais para a planta.

Agora se via cavando um pequeno buraco no gramado, desejava replantar o Hibisco que já não tinha mais espaço para as suas raízes no pequeno vaso.

Enquanto cavava a pequena Valkíria tinha surgido, como se tivesse vindo do nada e estava sentada no banco da varanda apreciando atentamente.

Franz teve a impressão de que essa cena perdurara por horas, mas ao olhar para o céu viu na linha do horizonte a mancha alaranjada do sol, que não nascera desde que tinha deixado a sua casa no Mundo dos Preocupados.

O silêncio foi quebrado pelo apito de um trem que estava muito distante.

Nesse momento dos arbustos no limite do gramado surgiu o dócil Bill que veio correndo, ele desejava pegar o apito, lembrou-se que quando ele ouvia algum barulho ele empinava as orelhas como se estivesse disposto a pegá-lo, mas ao ver Franz no gramado com a planta, mudou o seu rumo e veio correndo, como sempre fazia para recepcionar Franz.

Como fazia habitualmente ele queria participar ajudando a cavar o pequeno buraco no gramado para receber o Hibisco.

Franz trazia esse presente no coração para o seu dócil Bill, sentiu que logo o Hibisco cresceria e da varanda, com sua doce Valkíria e seus anjos poderiam apreciá-lo, coberto de flores amarelas.



Meu amor acorde, você precisa acordar. Sussurrou Valkíria no ouvido de Franz, mas ele não a ouvia, estava dormindo profundamente.

Por favor, acorde. Não é mais seguro ficar aqui.

Franz continuava dormindo profundamente, a voz em seu ouvido soava como uma leve brisa balançando um pouquinho os galhos das árvores que estavam às suas costas no limite do gramado.

Se sentia cansado, era difícil de respirar, finalmente o buraco que cavara no gramado estava de bom tamanho para receber o hibisco, o dócil Bill olhava atento ao que ele fazia, queria ajudar a cavar, mas não havia espaço suficiente para ele e Franz fazerem esse trabalho.

Impaciente o Bill aguardava por vezes tocava o braço de Franz na esperança que ele cedesse algum espaço para que ele pudesse ajudar a cavar.

Ao perceber Franz se afastou um pouco e cedeu o lugar para que seu companheiro cavasse um pouquinho mais.

Com muito cuidado puxou pelo tronco o hibisco que estava no vaso, lentamente a terra cedeu e a planta saiu do vaso com praticamente toda a terra envolta às suas raízes.

Ao olhar para além da Casa do Gramado apreciou longamente a mancha alaranjada do sol, que ainda não tinha surgido na linha do horizonte.

Voltou seus olhos para a planta que estava em suas mãos, em seu topo quatro pequenos botões denunciavam que em breve a planta iria florescer para presentear àqueles que desejassem apreciá-la.

As raízes tinham ocupado todo o interior do vaso, nele já não teria mais espaço para ela crescer e muito em breve a planta se sentiria sufocada.

Com muito cuidado colocou as raízes no buraco que o Bill terminara de ajudar a cavar, tinha ficado um pouco mais profundo que o necessário, mas Franz sentiu que seria bom esse pequeno espaço poderia reter um pouco da água que a planta precisaria até que se adaptasse ao seu novo lugar.

Cobriu as raízes com um pouco de terra que tinha retirado do chão. O dócil Bill olhava tudo atentamente.

Franz se sentia feliz, estava com muitas saudades de seu sempre companheiro.

Quando voltou seus olhos novamente para a planta, já não havia vestígios da terra que tinha retirado para plantar o hibisco, a grama apresentava um verde intenso, estava totalmente limpa e entre ela e o Bill havia um pequeno balde com água.

Depois que molhou ao redor da planta notou que a grama com seu verde intenso já rodeava o fino tronco o hibisco e cobria totalmente a terra.

Teve a impressão de que nesse meio tempo a planta crescera ainda mais, um dos botões de suas flores já estava parcialmente aberto.

Sua atenção foi desviada por um apito de trem que parecia vir do infinito, lá onde o Espaço se encontra com o Tempo.

O dócil Bill empinou as orelhas e correu para a interior da Trilha. Franz ficou imaginando ele pegando o som o apito.

Ao ficar em pé notou que a planta agora estava um pouco maior que ele e as flores em seu topo agora estavam totalmente abertas, no corpo da planta muitos outros botões tinham surgido, e logo ela estaria toda florida.

Olhou atentamente para a varanda, sua amada agora era uma pequena criança, mas ao se ver próximo a ela percebeu a si próprio e notou ser um pouco menor que ela, sentiu-se confuso, mas ao olhar a expressão da pequena Valkíria sentiu que ela queria lhe dizer algo.

Mais uma vez ouviu a leve brisa balançando as árvores e arbustos no limite do gramado, teve a impressão de que estavam muito distantes.

A brisa soava como uma voz que lhe trazia imensa ternura.

Meu amor, você precisa acordar.



Franz despertou com o pequeno Desconfiado puxando uma de suas mãos, o cachorrinho parecia estar ansioso, mas ainda sentia seus olhos mareados, como se não tivesse dormido o suficiente, não conseguia enxergar direito.

O céu continuava parcialmente escuro, sentiu a luz da Estrela Azul o envolvendo, quando conseguiu se sentar notou uma vez mais a luz alaranjada do sol iluminando a linha do horizonte, como no dia em que tinha deixado o Mundo dos Preocupados.

Depois de se espreguiçar e conseguir abrir totalmente os olhos entendeu a ansiedade do Desconfiado, agora a voz de Valkíria soava claramente em seus ouvidos.

Ainda que entorpecido pelo sono compreendeu o porquê de no sonho Valkíria ter-lhe dito que onde estava não era mais seguro.

O vale entre as montanhas estava sendo tomado pelas águas que vinham dos inúmeros córregos que serpenteavam elas.

Não mais conseguiria retornar ao topo do vale para poder descer a grande montanha.

A água se espalhava rapidamente por todos os lados, era límpida e cristalina, mas sentia que não deveria retornar, pela primeira vez pensou no porquê de estar no topo das montanhas, não sabia responder, mas sentia que era nesse lugar que deveria estar.

Desorientado não sabia o caminho a seguir, o Desconfiado continuava ansioso, por vezes levantava uma das mãos tocando Franz, como se o estivesse apressando para escolher um caminho.

Depois de dar dois passos estava junto a um dos córregos que desenhava seu caminho para o interior das montanhas, quis lavar o rosto para despertar, a água cristalina estava muito fria, mas ao se lavar sentiu uma sensação de prazer.

Sentiu um aperto no estômago, percebeu estar com fome, imaginou que seu pequeno companheiro também deveria estar faminto, mas ao redor não havia nada além da preciosa água e das pedras.

Ficou por um breve instante refletindo sobre o mundo à sua volta, sentiu o sagrado existente nas montanhas, nas águas e nas pedras, as águas que vertiam para o interior das montanhas eram filtradas e purificadas pelas pedras, em algum lugar mais abaixo percebeu que essas mesmas águas purificadas alimentariam o grande lago aos pés das montanhas que além de servir a toda a floresta e rios da região, igualmente era abundante a todas as pessoas que habitavam os vilarejos que ocupavam as clareiras da floresta.

A sensação de fome já não o incomodava sentiu que a natureza sempre nos presenteava em abundância com tudo o que nos era necessário, muito em breve encontraria alimentos para ele e para o pequeno Desconfiado.

A falta de recursos que os Preocupados pareciam sempre nutrir estava relacionado ao fato de eles retirarem muito mais do que necessitavam, não só da natureza como de seus próprio semelhantes, esse uso indiscriminado de recursos é que produziam a falta deles.

O seu companheiro estava assustado com as águas que estavam cada vez mais próxima, com ternura Franz o pegou no colo, ao olhar para cima sentiu a luz da Estrela Azul os envolver com maior intensidade.

Uma trilha muito estreita se desenhou entre as águas, depois de caminhar por alguns instantes conseguiu ver a entrada de uma caverna no lado oposto de onde estava, em um lugar onde as águas não alcançavam.

Era o único caminho a seguir.



À medida que caminhava com o pequeno Desconfiado no colo, uma fala com a voz de Valkíria se desenhava em seus ouvidos, como uma pintura que surge em uma tela pelas leves pinceladas de sua amada.

Meu amor, estava com muitas saudades.

Em sua mente se desenhou a resposta.

Você me encontrou, minha doce Valkíria, e eu estava te esperando.

Andando lentamente, em direção à entrada da caverna o pequeno Desconfiado pediu para descer, não gostava de ficar no colo, apreciava sentir seus pequenos pés e mãos tocando o chão.

A estreita Trilha que se desenha estava iluminada por uma densa luz azul, às costas deles a luz alaranjada do sol mantinha seu brilho tênue.

Franz sentiu que deixaria de ver, muito em breve, a luz da estrela que alimentava esse mundo, se sentia grato por essa dádiva, mas manteve seus passos sem se virar.

Atrás deles as águas se fechavam, não havia mais um caminho para retornarem.

O Desconfiado que estava alguns passos à frente se sentou nas pedras e deu uma última olhada para trás, ao ver o caminho fechado pelas águas, uivou bem alto.


Franz despertou levemente de seu transe, ao ouvir o cachorrinho se lembrou do Freud-cão, mas ao ver seu pequeno companheiro o esperando um pequeno sorriso se desenhou em sua face.

Agora estavam a poucos passos da entrada da caverna, seu interior parecia ser muito escuro, para chegar a ela havia uma pequena subida, ela estava no ponto mais alto da montanha, não havia como as águas chegarem até a sua entrada.

O chão era coberto por uma imensa pedra, depois que iniciou a subida era a primeira vez que pisava em chão seco desde que acordara.

No meio da subida sentiu a entrada da caverna se alongar até eles, a cada passo se tornava mais escuro, apreensivo o Desconfiado uivou uma vez mais, mas dessa vez Franz não despertou do transe.

Ao ser acarinhado por uma mão macia na cabeça e nas orelhas de guarda-chuva o pequeno cachorro se acalmou e como Franz também entrou em transe.

Na entrada da caverna Franz sentiu os braços de Valkíria o envolvendo, em um tenro abraço, o interior da caverna estava totalmente escuro.

Já não era mais possível ver a luz alaranjada do sol, tinham atravessado o portal para um outro mundo.

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