domingo, 25 de setembro de 2016

Mundo dos Portais.



Franz com o pequeno Desconfiado no colo flutuou em direção ao portal, ao chegar à sua entrada o pequeno Desconfiado olhou espantado, ele estava repleto de estrelas, com os olhos arregalados e as orelhinhas empinadas se sentia incomodado no colo de Franz, ao fazer esforço para descer Franz o deixou no chão, mas continuava em transe, olhando o vazio.

No chão com os olhos arregalados o Desconfiado já não sentia frio e uivou bem alto, sem despertar do transe Franz se recordou do Freud-cão e ficou se perguntando onde ele estaria agora, achou que ele poderia estar em um desses mundos orbitando uma das infinitas estrelas que habitavam o interior do portal.

Quando estava a alguns passos no portal adentro despertou brevemente e olhou para traz, o Mundo das Plantas parecia estar diminuindo de tamanho, sentiu-se deixando aquele lugar mágico que, não fosse as grandes árvores poderia ter perdido a possibilidade de nele haver vida por muitas gerações.

Percebeu que sentiria saudades, das pessoas que aprenderam a conviver em equilíbrio com as florestas, de seus passeios nas trilhas, dos pássaros, dos infinitos seres mágicos que viviam entre as plantas, dos elefantes...

Ah! Os elefantes, seres dóceis, não fossem eles muitos dos que viviam próximos aos oceanos não sobreviveriam, mas primeiro eles avisaram, e depois deixaram uma trilha em direção às montanhas para que fossem seguidos, e assim os demais não se afogassem quando as águas geladas vindas dos extremos do planeta e das grandes montanhas congeladas que derreteram devido à tempestade solar.

Toda a costa do planeta tinha sofrido mudanças significativas.

Ao olhar o pequeno Desconfiado percebeu que ele estava todo envolvido pela luz azul, prestando mais atenção notou que ele também envolvido pela mesma luz, agora flutuavam no vazio, escuro, infinito.

Em um último olhar para traz observou que a entrada do portal não passava de um pequeno ponto brilhante, já não era possível identificar qualquer vestígio do Mundo das Plantas.



Franz e o pequeno Desconfiado flutuavam no vazio, sentiam estar juntos, bem pertinho, mas não conseguiam mais sentir seus corpos, ainda que enxergassem não podiam se ver e nem se tocarem.

Dentro do portal a única coisa que os diferenciavam do vazio era uma tênue luz azul sem forma, as estrelas muito distantes brilhavam intensamente.

Franz se sentiu em meio ao nada.

Percebeu que o Desconfiado estava assustado, desejou ampará-lo em seus braços, mas não os tinham, ele e o seu cachorrinho agora eram tão somente uma tênue luz sem forma, sem corpo, imersos no vazio, em um ponto muito distante de qualquer estrela.

Pensou em olhar em direção ao Mundo das Plantas, mas não tinha um corpo para poder se virar, lentamente a luz azul se contorceu mudando de forma, entretanto continuou sem noção de para onde tinha se virado.

À frente agora, uma estrela muito distante de luz branca, em seu redor, uma mancha vermelha se dissipava no vazio.

Não demorou a entender que era a tempestade solar que ocorrera no Mundo das Plantas em um passado muito próximo, foi levemente despertado por um uivo bem alto, sentiu ser o Desconfiado também olhando para aquela que tinha sido a sua casa.

A mancha de luz azul disforme daquilo que um dia tinha sido Franz e o Desconfiado, continuavam a se contorcer para todos os lados, no meio do vazio, envoltos pelo nada.

Já não mais conseguia distinguir entre as infinitas estrelas aquela que alimentava o Mundo das Plantas, agora não havia mais vestígios do que tinha sido a tempestade solar, só tinha o vazio.



O vazio agora era tudo o que Franz tinha, entretanto não se sentia só, tinha a si mesmo, todas as suas lembranças, suas histórias.

A doce voz de Valkíria reverberou em todo o seu ser.

O Desconfiado achou ter empinado suas orelhas, ele também ouviu.

“Meu amor deixe-se levar, a nossa estrela vai nos colocar pertinho, é só pedir que no sonho se realiza.”



Como em um sonho, mas sem sair do transe, um mundo intermediário entre o dormir e o estar acordado, Franz ouviu passos no corredor externo de uma de suas antigas casas, ao olhar para os lados se deparou em um quarto escuro, mas sentiu que havia mais alguém muito próximo.

Ao se recordar do que acontecera lembrou-se ter chegado em casa com dor de cabeça e deixou a porta aberta para que o dócil Bill entrasse.

Era o entardecer, em pouco mais de uma hora o sol iria se pôr, cedendo seu espaço à noite que se avizinhava.

Tudo que queria naquele momento era um analgésico e se deitar, o que o fez logo após uma leve carícia nas orelhas do Bill-cão.

Teve um sono agitado, não se sentia como parte do Mundo dos Preocupados, desejava apenas que a dor passasse e sonhar com seus mundos de magia.

Depois de algumas horas, agora aliviado de sua dor despertou, seu quarto estava imerso no escuro, olhando para o vazio, depois de alguns momentos sentiu a respiração daquele que sempre o esperava no portão quando saia.

Ainda no escuro ao olhar para o lado da janela, sentiu a cabeça do dócil Bill apoiada na cama, olhando para ele, o Bill-cão tinha ficado ali o tempo todo depois de sentir o mau estar de Franz, com a cabeça apoiada na cama, cuidando.

Um leve sorriso despontou na face de Franz, que se sentou na cama e aparou a cabeça de seu companheiro entre as mãos, no quarto escuro, tudo o que conseguia ver era o brilho dos olhos do dócil Bill, ficou assim acariciando a face e as orelhas dele e apreciando o brilho de seus olhos.

Era apenas um ponto em seus olhos refletindo uma luz azulada, tênue.

Quando pensou em acender a luz para comer e oferecer algo ao Bill, sentiu o corpo inerte, não conseguia se mexer e, uma vez mais se viu no vazio, uma mancha azulada disforme, junto com o pequeno Desconfiado.

A brilho nos olhos do Bill permaneceu em sua mente e se sentiu mergulhar no vazio em direção a ela, em meio ao vazio tudo o que sentia era aquele tênue brilho azul nos olhos do Bill-cão.



Nos pensamentos de Franz tudo que permanecera era aquele pequeno brilho de uma tênue luz azul nos olhos do Bill cão.

E assim persistiu flutuando com uma velocidade cada vez maior na direção desses dois pequenos pontos brilhantes azuis.

No vazio se formara um pequeno corredor onde Franz e o pequeno Desconfiado deslizavam, muito ao longe em todas as direções, infinitas estrelas iam ficando para traz.

Depois do que na percepção de Franz tinha transcorrido muitos anos, na contagem dos Preocupados, Franz sentiu que a velocidade diminuíra, junto ao seus pés o Desconfiado tinha acordado e emitiu um leve gemido.

Franz se abaixou e acariciou as orelhas dele, que ficou com um olhar enigmático, fitando Franz, o cachorrinho tinha a expressão de gente agradecida.

Uma vez mais sentiu os pés no chão, estava pisando em uma grama rala, também dava para sentir a terra e pequenas pedras soltas, o Desconfiado estava correndo alegremente em volta de Franz, desejava andar e correr livre no gramado.

Ao olhar para traz Franz viu um pequeno corredor com grandes árvores dos dois lados e, além do corredor, o vazio, frio, escuro.

À frente se desenhava uma Trilha, com grandes árvores e os seus galhos se cruzando por cima dela, quase não era possível ver o céu, mas dava para distinguir a escuridão acima e dos lados, além do que parecia ser uma mata fechada.

A tênue luz azul iluminava brandamente a Trilha.

Ao olhar para si próprio Franz se reconheceu, mas estava muito diferente da imagem que estava habituado, uma vez mais era uma criança, um menino com não mais que cinco anos, caminhando por uma Trilha há muito conhecida, em um tempo quando essa história começou a se desenhar.

Quando olhou em volta o Desconfiado não mais estava junto dele, refletindo lembrou-se que o pequeno não era parte dessa história.



A Trilha era longa e silenciosa, tudo estava muito quieto, não havia nenhum vento movimentando as folhas, sequer era possível ouvir os passos de Franz resvalando a grama rala e as pedras soltas, ele deslizava lentamente flutuando, muito pouco acima do chão.

No alto entre os galhos e folhas das grandes árvores igualmente pairava o silêncio, a quietude.

Franz sentia saudades de seu tempo de criança, caminhando nessa mesma Trilha, a trilha que se desenha junto com os desejos.

Eram poucos os que caminhavam por ela, alguns achavam que nela se perdiam, mas ela era única, sem desvios, seu único e pequeno entroncamento só era mostrado àqueles que viviam na Casa do Gramado.

Muitas vezes a Trilha era uma longa linha reta, monótona, ladeada por grandes árvores, outras era sinuosa, iluminada por uma tênue luz azul.

Alguns dos que nela caminhavam às vezes tinham a impressão de ver vultos próximos às árvores, outras vezes tinham a impressão de ouvir crianças brincando.

E, invariavelmente ela terminava no mesmo local em que essa pessoas entraram e, alguns que voltavam a procurá-la, tudo o que encontravam era uma mata fechada.

A Trilha era um caminho destinado àqueles que vieram da Grande Estrela Azul.

Dessa vez a Trilha desapareceu aos pés de Franz que agora caminhava por uma relva mais densa, sentia os pés afundando na grama a cada passo, quando ouviu o pequeno Desconfiado emitir um uivo baixinho, depois de acarinhar as suas orelhas, ao olhar para o céu uma vez mais se deparou com o vazio, aos seus pés não havia mais Trilha, gramado ou árvores, só o vazio.

Muito distante no vazio infinito só havia os dois pontos brilhantes, azuis, dos olhos do Bill-cão que o estavam guiando.



Ao despertar Franz se viu no jardim de uma casa muito antiga, abandonada. Estava com uns papéis e lápis, fazendo esboços da casa, do jardim, e de tudo que havia à sua volta.

Quando terminou ficou observando a casa, sentiu que em um passado longínquo ela teria sido magnífica, deve ter sido muito apreciada quando foi construída, e ficou imaginando as pessoas que nela viveram e o porque de ter ficado dessa forma, abandonada.

Imaginou ser uma pena ela ser demolida para dar lugar a mais um prédio sem personalidade, que abrigaria um sem número de pequenos cubículos apertados para abrigar um outro sem número de pessoas.

Pensou que ao invés de participar da construção desses prédios despersonalizados seria mais agradável recuperar essas casas, para que elas pudessem contar as suas histórias.

Desanimado e sem nenhum interesse naquilo que estava por fazer sentou-se no único banco de concreto, ainda inteiro no jardim que ficava em frente à casa.

Estava entardecendo e o sol já não aquecia o jardim, estava muito frio e logo iria anoitecer, mas permaneceu olhando a entrada da grande casa por horas.

Uma música vinda do interior da casa chamou a sua atenção, aparentemente alguém estava aprendendo a tocar um piano, mas ao olhar com atenção já não via mais as ruínas, parecia que ela tinha acabado de ser construída, era esplêndida.

Do jardim conseguia ver uma linda moça no interior da casa sentada em um pequeno sofá lendo um livro e olhando para o jardim, mas teve a impressão de que ela não o via.

O nome Valkíria se desenhou em sua mente, sentiu que a conhecia desde sempre, sempre estiveram juntos, eram feitos da mesma essência, um dia tinham se desprendido da Grande Estrela Azul e viajado pelo Universo infinito, quando foram divididos e caíram nesse mundo, mas em tempos diferentes.

Agora através da janela podia sentir a sua doce Valkíria com aproximadamente um século os separando.

Um vento gelado soprou em sua face e, uma vez mais tudo o que viu foram as ruínas, se levantou e caminhou até a entrada da casa, foi preciso só forçar um pouco a porta para que ela cedesse e abrisse um pouco, mas em seu interior tudo o que viu foi o escuro, ainda dava para distinguir o sofá em que a sua Valkíria estava lendo, só que estava todo envelhecido, desgastado pelo tempo.

No limite da sala que dava acesso à escada que levava ao piso superior uma vez mais se desenhou os olhos com o brilho de uma tênue luz azul do dócil Bill, mas agora não havia nem o sofá, a casa ou o jardim, estava flutuando ao lado do pequeno Desconfiado que emitiu um leve uivo, no escuro, infinito, Universo.



Franz se sentiu confuso, não compreendia o que estava acontecendo, era como se muitas vidas estivessem se passando simultaneamente.

Sua lembrança mais nítida era do Mundo das Plantas, a tempestade solar ainda estava presente em sua mente, mas não se recordava mais nem de quando, nem como deixara aquele mundo, e estar agora no vazio, infinito, lhe parecia uma impossibilidade, achou que talvez estivesse sonhando.

Refletindo percebeu que se fosse um sonho era diferente de todos que já conhecera, do Mundo das Plantas ficou pensando nos elefantes, eles tinham chegado às montanhas deixando uma trilha para que muitos outros seres encantados os seguissem, não fossem eles esses seres poderiam ter perecido quando o gelo existente nos extremos do planeta e no alto das montanhas derreteram, mudando toda a geografia daquele mundo.

No vazio olhou para si mesmo e para o pequeno Desconfiado, mas não conseguia se reconhecer, de tudo o que sentiu, não sabia dizer nem se era uma visão, mas era tão somente uma tênue luz azul disforme flutuando no vazio.

Sabia que o pequeno Desconfiado também estava ali, era uma parte daquela luz azul.

Assim permaneceu flutuando e se questionando sobre as formas, as pessoas no Mundo das Plantas tinham essa necessidade de se reconhecerem. Aparentemente isso não tinha uma importância maior, seja para as plantas ou para os outros seres que habitavam aquele mundo de magia.

Quando percebeu estava se perguntando se aquela parte da luz azul que achava ser suas mãos se refletiriam em um espelho, tentou tocar o que pensava ser a sua face, mas tudo o que conseguiu foi alterar a forma da luz.

Com seus movimentos o pequeno Desconfiado soltou um leve gemido, parecia estar tentando compreender o que Franz fazia, notando a ansiedade do seu companheiro acarinhou o que pensou ser as orelhas dele.

Muito distante um conjunto de estrelas começou a surgir no campo daquilo que achava ser a sua visão.

Não demorou a perceber que era uma galáxia, muito distante, de onde estava essa aparentava ter um tamanho muito pequeno, menor que a mesa de sua casa no Mundo das Plantas que habitualmente usava para se alimentar.

Nesse pequeno espaço depois de observar atentamente viu se desenharem infinitos pontos brilhante, sentiu ser as estrelas brilhando no espaço vazio, infinito, frio, escuro.

Sem se dar conta mentalmente começou a unir aqueles pequenos pontos luminosos, quando notou que esses pontos estavam desenhando a face de sua amada, sua doce Valkíria.

Em sua mente, enquanto flutuava em direção a essa galáxia, lentamente uma frase começou a se desenhar.

“Meu amor estou com muitas saudades, vontade de estar pertinho, entrelaçados.”



Depois do que teve a impressão de ter corrido uns poucos instantes Franz se viu sentado no banco do vagão de um trem, estava na janela e, no acento ao seu lado o pequeno Desconfiado dormia tranquilamente.

Ao olhar para a janela se viu em meio à escuridão, mas não estava mais flutuando no vazio, percebeu que o trem andava rapidamente dentro de um túnel.

Não demorou e uma tênue luz azul começou a brilhar à frente, mas ao sair do túnel uma vez mais se viu no vazio, flutuando, só que agora dentro a trem.

A galáxia na qual tinha visto a face de sua amada desenhada agora lhe parecia imensa, a face de Valkíria ocupava todo o seu campo visual, sentia muitas saudades, vontade de tocar, de leve e acariciar.

Ao seu lado o Desconfiado despertou, percebeu que o cachorrinho estava ansioso, queria ficar junto à janela e apreciar a paisagem, as estrelas.

Gradualmente o trem foi reduzindo a sua velocidade, estava adentrando a atmosfera de um planeta, ao olhar para cima se encantou com a beleza da estrela de luz lilás que alimentava esse mundo.

Agora o trem deslizava lentamente em uma estação imensa, eram muitos trens chegando e partindo, com plataformas cheias de pessoas.



O trem deslizou lentamente pelos trilhos até parar totalmente na plataforma, após o blim-blom característico as portas se abriram, Franz e o pequeno Desconfiado eram os únicos passageiros.

Depois de alguns instantes Franz se deu conta de que deveria descer, mas ainda desconhecia onde estava e qual seria o seu destino.

É curiosa a percepção das pessoas de que elas têm um lugar ou um destino, muitas vezes se apegam a isso como se esse lugar ou destino pudessem dar sentido às suas vidas.

E só quando é tarde é que se dão conta de que não há um lugar nem destinos.

Passam quase que totalmente todo o tempo lutando contra os caminhos que a vida lhes traçam e despendem uma enorme energia para atingir aquilo que acreditam ser seus destinos e invariavelmente a vida acaba por arrastar essas pessoas para distante do que acreditam ser seu lugar de chegada, ainda, outras vezes quando conseguem tocar aquilo que acham que procuravam, esse toque faz com que as coisas se desfaçam, desapareçam, percam seu sentido.

Outros ainda por falta de energia para ir nos sentidos contrários que as forças da vida as levam ficam simplesmente à deriva, sendo jogados a todos os lados, sem que nunca cheguem a lugar nenhum, essas invariavelmente acabam afogadas ou sufocadas por aquilo que acham ser seus desejos que nunca são alcançados.

O Desconfiado e Franz não sabiam nem onde estavam nem para onde estavam indo, mas mesmo sem se darem conta eles simplesmente estavam, e isso era tudo o que precisavam.

Era a vida que os estava levando, mas em nenhum momento ficaram à deriva.



Ao deixarem a plataforma na qual desembarcaram e adentrarem a Grande Estação Franz e o Desconfiado se viram em corredores e plataformas movimentadas, o pequeno cachorro se sentiu assustado com tanta gente.

Inda que não soubesse o que fazia naquele lugar, logo Franz se viu seguindo caminhos, o chão dos corredores estava repleto de mosaicos desenhados com minúsculas pedras coloridas, mesmo sem se dar conta aos poucos esses mosaicos descreviam uma história, e nessa um caminho a ser seguido.

Depois de apreciarem um café bem forte com pão de milho, o pequeno Desconfiado e Franz seguiram um longo corredor que desembocou em uma pequena plataforma, nessa um trem com uma única composição estava à espera.

Uma vez mais eles eram os únicos passageiros.

O Desconfiado fez questão de ocupar um lugar junto à janela e Franz sentou-se ao seu lado, quando sentiu que logo o trem iria partir, uma moça entrou na composição com uma bandeja nas mãos, nessa havia algumas guloseimas, que foram deixadas no fundo da composição.

Assim que a moça saiu Franz ouviu o blim-blom característico e o trem começou a se locomover lentamente.

Logo o pequeno cachorro se interessou pelo que havia na bandeja. Franz não resistiu ao café cujo cheiro exalava da bandeja que há pouco tinha sido deixado na composição, o Desconfiado estava mais interessado nas guloseimas.

Depois de pouco mais de uma hora que o trem tinha deixado a Grande Estação, ele estava escalando lentamente uma montanha muito íngreme e, depois que tinha terminado de escalá-la continuou subindo em direção ao vazio, ao escuro.

À frente um outro portal começou a se desenhar nos olhos de Franz.



Depois que o trem mergulhou portal adentro tudo que era possível ser visto pelas janelas era o escuro, frio, infinito.

Transcorrido não mais que uma hora na percepção de Franz o trem saiu por um outro portal, agora a caminho de uma grande estrela vermelha.

Quando a luz começou a adentrar pelas janelas do vagão o Desconfiado despertou, a luminosidade o incomodava um pouco, ao sentir que começaria a lacrimejar procurou por um lugar embaixo do banco, junto aos pés de Franz.

Gradualmente o trem foi diminuindo sua velocidade até parar totalmente, estava no fim dos trilhos, no lugar sequer havia uma plataforma para o desembarque, Franz teve que pular para chegar ao chão e depois ajudar o Desconfiado a descer.

Estava em uma trilha pedregosa, em um lugar muito seco, mas o que mais chamou a atenção de Franz e do Desconfiado foi o céu, além do brilho intenso da Estrela Vermelha, ele estava repleto de pequenos asteróides, não se recordava de um dia ter estado em um mundo assim, mas lembrava imagens de algum sonho em um tempo distante.

Passados alguns instantes caminhando com o Desconfiado pela trilha de pedras ouviu o trem se movimentando, ao olhar para traz viu que ele já começava a flutuar em direção ao céu, indo ao lado oposto da grande estrela.

Ficou parado por alguns instantes olhando o trem diminuindo de tamanho até desaparecer no céu.

Quando começava a escurecer chegou ao final da Trilha e se deparou com uma grande cidade toda construída com pedras, nesse momento o que mais chamava a atenção era a beleza do céu forrado de pequenos asteróides, entre eles o brilho intenso da luz vermelha que alimentava esse mundo, a imagem era lindíssima.

Nas ruas de pedras se deparavam com inúmeras pessoas que caminhavam sempre olhando para o céu, outro detalhe que chamou a atenção é que as casas não tinham portas, todas estavam abertas, vez por outra observava pessoas entrando ou saindo delas.

Não demorou a perceber que nesse lugar as pessoas não conversavam, praticamente não emitiam nenhum ruído só às vezes ouvia os passos delas nas calçadas de pedra e, enquanto caminhavam não paravam de olhar ao céu.

Sentiu que não conseguiria conversar, mas quando se aproximava de alguém, essa pessoa olhava profundamente nos olhos, depois de passar por essa cena algumas vezes percebeu o quanto a fala era desnecessária.

Cansado, sentou-se na calçada, em frente a uma casa, com o Desconfiado ao seu lado, não demorou e uma pessoa que estava saindo da casa, olhou para eles aparentemente sem compreender porque tinham se sentado no chão.

Essa pessoa olhou fixamente nos olhos de Franz que se sentiu convidado a entrar.

A casa possuía um único cômodo grande com uma grande mesa em seu centro, nela não faltavam frutas e água.

Assim que entrou um lugar foi oferecido a Franz, enquanto uma outra pessoa levou ao pequeno Desconfiado uma pequena vasilha com água e algumas guloseimas para ele.

Todos descansavam em silêncio, apreciando a preciosa água e as frutas e, enquanto isso olhavam-se profundamente nos olhos.

Quando se sentiu descansado Franz seguindo o habito dos demais se dirigiu à rua e o Desconfiado disparou atrás dele.

Depois de passar por algumas casas, notou que a cena sempre se repetia.

Nitidamente esse era um mundo em que as pessoas não tinham um lugar ou um destino, eles pertenciam a esse mundo eram parte dele.

A propriedade ou o destino a ser seguido não fazia parte do Universo de significado deles.



Depois de alguns dias entre os Esquecidos, Franz e o Desconfiado começaram a caminhar em ruas mais movimentadas, ainda que houvesse mais pessoas, a rotina parecia ser sempre a mesma, as pessoas caminhavam ininterruptamente, sempre olhando para o céu, só quando se aproximava muito é que elas olhavam profundamente nos olhos por alguns instantes e na seqüência voltavam a caminhar aparentemente sem rumo.

Ao chegar no lugar que achou ser o mais movimentado até então uma construção chamou a atenção de Franz, no que em uma passado distante pareceu a ele ser uma praça.

Era um prédio de dimensões muito maior que as casas que estava acostumado a freqüentar, tinha um formato circular e vários andares, diferente de todas as casas compostas de um único pavimento, mas como elas também construído com pedras, nesse mundo havia muitas delas.

Seguindo sua percepção se dirigiu à Construção Circular, com o Desconfiado sempre ao seu lado, mas quando entrou em um primeiro momento sentiu-se decepcionado, além do tamanho maior não apresentava diferenças em relação às demais casas.

Em seu centro uma grande mesa, com frutas e água à vontade para quem desejasse.

Depois de se alimentar e oferecer algumas iguarias ao pequeno Desconfiado desejou subir aos andares superiores, achou que do alto conseguiria ter uma visão geral da cidade.

Ao subir os primeiros degraus, teve a impressão de que as pessoas há muito não iam aos andares superiores, o chão e as paredes estavam muito empoeirados e depois de subir o primeiro lance de escadas se viu sozinho com o Desconfiado.

Ao chegar ao último andar se surpreendeu, pois a construção não tinha cobertura, a visão do céu foi uma dádiva, já era noite e o céu estava lindíssimo, para onde olhava ainda dava para ver o céu avermelhado do sol desse planeta que já estava abaixo da linha do horizonte e, no lado oposto as montanhas de pedras, no centro e em todos os lados infinitas estrelas brilhavam intensamente.

De onde estava conseguia ver a cidade até os seus limites, mas nenhuma novidade, tudo que viu foram as casas, e as pessoas caminhando, sempre olhando para o céu.

Quando resolveu descer uma mancha na parede lhe chamou a atenção.



Ao se aproximar notou que não era uma mancha e sim um mosaico formado por minúsculas pedras coloridas que estavam totalmente cobertas pelas poeira.

Deslizou com cuidado a palma da mão naquilo que pareceu ser uma mancha, as pedrinhas eram muito lisas e frias, não teve dificuldades em retirar a poeira com as próprias mãos.

Logo percebeu que o desenho tinha dimensões significativas achou ser maior que uma pessoa, assim retirou sua camisa e com cuidado passou a bater com ela na parede para retirar o pó.

Aos poucos uma porta com um fundo escuro e com a parte superior formando um semicírculo se desenhou à sua frente, quando estava tirando a poeira da parte inferior surgiram umas pedrinhas de cor vermelha.

Parecia ser um tipo de assinatura, em letra cursiva se desenhou o nome “Valkíria.”, no canto inferior à direita.

Franz entrou em transe apreciando o portal que se desenhara à sua frente, soube naquele momento que sua amada estivera nesse local em um tempo distante, o pequeno Desconfiado levantou uma de suas mãos tentando despertar Franz, mas tudo o que ele fez foi se abaixar e pegar o pequeno no colo, sentiu estar se despedindo daquele mundo que tão bem o recebera.

Ao adentrar o portal perguntas ficaram flutuando em sua mente: Por que os Esquecidos sempre caminhavam olhando para o céu? O que tinha acontecido com eles que os levou à condição que se encontravam? Por que será que não conversavam, o que os levou a se comunicarem com aquele olhar profundo?

Sentiu que teria muitas perguntas. A Grande Estrela Vermelha e os infinitos corpos celestes na redondeza do planeta também chamaram a sua atenção, ficou se perguntando o quanto isso seria um risco para eles.

Achou que em algum momento eles precisariam de ajuda para restaurar a sua história.

O não terem um lugar certo para viver e um destino também chamou a sua atenção, era uma forma diferente de viver, diferente de tudo que até então conhecera.

Cansado adormeceu no infinito, escuro, vazio. O Desconfiado se aninhou junto a ele e também adormeceu.

Depois do que pareceu ter transcorrido muito tempo despertou, estava em um automóvel no banco do passageiro, parecia que o dia tinha acabado de amanhecer, o vento frio batia em sua face.

Ao olhar para quem dirigia se deparou com sua amada. Valkíria dirigia, a estrada era deserta, ladeada por grandes árvores.

Bom dia meu amor vamos parar para apreciar um café assim que aparecer o primeiro posto e ai você me conta o seu sonho.



A estrada, o automóvel deslizando sob ela, as árvores que ladeavam a estrada, era tudo tão real e, principalmente Valkíria, a sua doce amada, com aquela doce voz convidando para um café.

Uma leve dor de cabeça, uma pequena pontada. Franz sentiu que a dor aumentaria.

Ao olhar para o banco de traz encontrou uma pequena maleta que lhe era familiar, sentiu que dentro dela haveria um comprimido.

Logo encontrou a caixa toda, no local onde costumava guardar, depois de engolir o comprimido voltou a fechar os olhos, temia que pudesse despertar e que esse momento fosse mais um sonho, mas tudo era por demais real, sentia até as ondulações e buracos da estrada.

Por uns instantes ficou naquele mundo intermediário entre os sonhos e o estar acordado, mas com os olhos semi cerrados continuou apreciando sua doce Valkíria, o cheiro doce de lavanda exalava do corpo dela.

Depois de um leve solavanco o automóvel reduziu a velocidade, já desperto e livre da pequena dor se viu entrando em um posto.

- Está melhor meu amor.

- Sim, a dor já passou.

- Depois de um café gostoso ficará bem.

- Desejo, com um pão de milho bem gostoso.

Ao se virar para trás para guardar a maleta da qual tinha pego o comprimido se deparou com o pequeno Desconfiado, ele estava com carinha de ansioso, e aquele olhar de quem quer um passeio por estar cansado de ficar na mesma posição, sem dúvida também ia querer uma guloseimas.



A idéia do que vem a ser real ficou pairando na mente de Franz.



Assim que adentrou a lanchonete do posto o cheiro de café que ainda estava sendo feito pareceu bem real a Franz, à Valkíria e ao pequeno Desconfiado que soltou um leve gemido.

A idéia de real continuava a pairar na mente de Franz, sabia que no lugar havia café, mas tudo que podia sentir era o cheiro dele. Valkíria também sentia o cheiro de café, mas nenhum dos dois jamais saberiam se o cheiro que sentiam era o mesmo, embora ambos se sentissem aguçados por aquele café.

O Desconfiado também sentia odores, além do café aquele local era permeado por várias outras guloseimas, todas muito atraentes, provavelmente essas estavam chamando mais a atenção do cachorrinho do que o café propriamente dito.

Em casa sempre que Franz ou Valkíria faziam o café, assim que a água começava a esquentar o Desconfiado costumava surgir, apressado à sua frente vinha correndo o pequeno José, mas nenhum dos dois parecia se interessar pelo café e sim pelo que acompanhava o café.

Franz gostava desses acompanhamentos, em especial do pão de milho, mas o odor do café espalhando pela casa o atraia especialmente e, também tinha a impressão de que Valkíria partilhava esse prazer, muitas vezes, apesar dos protestos do José e do Desconfiado, só faziam o café.

Além do odor Franz também se perguntava, será que o gosto que sentia era o mesmo que Valkíria sentia, era uma outra pergunta que não conseguia responder.

Franz apreciava mais o odor do café do que o café propriamente dito, pouco depois de apreciar sentia um gosto amargo, só possível de subtraí-lo com alguma guloseima. E ficou se perguntando será que minha amada também prefere o odor ao gosto do café, ou seria o contrário.

Enquanto pensava, olhando nos olhos de Valkíria teve a atenção desviada pelo Desconfiado que estava mais interessado nas guloseimas.

Sem trocarem palavras, olhando nos olhos de Valkíria, acariciando uma das mãos dela com a pontinha dos dedos e apreciando seu café e o pão de milho, Franz viu uma frase se desenhar nos olhos de Valkíria.

- Meu amor, é real.

Igualmente sem nenhuma palavra, no olhar Franz respondeu.

- Quero você.



Assim que terminaram o café e as guloseimas depois de pagarem pelo que pediram no caixa se dirigiram para o lado de fora da lanchonete.

A idéia de pagar, trocar aquilo que consumiram por alguns papéis mal cheirosos ficou perambulando pela mente de Franz, sentiu que aquela atitude era totalmente descabida, sem qualquer propósito.

Ainda, ao se levantarem deixaram as xícaras e pequenas migalhas na mesa, isso fazia menos sentido ainda de terem que pagar pelo que comeram.

A obrigação de limpar a mesa era deles, que tinham desfrutado aquelas iguarias, se saíram deixando a mesa desarrumada, significava que alguém teria que fazer aquilo que era obrigação deles.

Em qualquer mundo que se valorizasse a vida isso seria inaceitável, que houvessem pessoas para cuidar e limpar o que outros deixavam para traz.

- Meu amor não se preocupe essas coisas ainda vão se resolver, esse mundo é muito primitivo, as pessoas ainda não sentiram qual a razão da existência, essas injustiças se dão porque insistem em procurar respostas, ao invés de simplesmente tentarem sentir o que se passa.

- Na busca de explicações essas pessoas esqueceram de sentir e é ai que reside a quase totalidade das problemas e injustiças pelas quais eles vivem.

Ao ouvir Valkíria lentamente Franz voltou a sentir a vida fervilhar e a presença de sua amada.

Já não tinham mais o que fazer naquele lugar, o incomodo por não poder fazer o que era certo ainda os incomodaria por algum tempo, mas esses eram problemas que os preocupados teriam que resolver por si próprios.

Ao perceber que Franz e Valkíria estavam indo embora o pequeno José e o Desconfiado dispararam à frente deles.

Quando Franz e Valkíria atravessaram a porta da lanchonete uma vez mais Franz se viu sozinho, estava flutuando o vazio, escuro, infinito.



Inicialmente Franz se sentiu angustiado há um instante estava saindo daquela lanchonete de mãos dadas com a sua amada e agora flutuava sozinho no vazio, nem o pequeno Desconfiado estava mais com ele.

Lentamente entrou em transe, estava com a face voltada para a Estrela Azul, envolto por sua luz.

Quando despertou estava sozinho em seu minúsculo apartamento, com o corpo imóvel sentado em sua cama olhando pela janela.

Não sabia dizer, mas tinha a impressão de que estava por muito tempo na mesma posição, pensou em um café, porém não conseguia se mover, o corpo não o obedecia, chegou a pensar que estava sonhando.

Com esforço conseguiu mover um pouco os olhos para a esquerda da janela, onde ficava seu relógio de parede, estava marcando três horas, como Além da Janela estava escuro deduziu que só poderia ser da madrugada.

Teve a impressão de ter ficado por um longo tempo na mesma posição, como os ponteiros do relógio não se moviam achou que a pilha tinha acabado, muitas vezes esquecia de trocá-las. 

Franz gostava muito de relógios, muitas vezes ficava apreciando eles em vitrines de lojas, mesmo em casa tinha vários, mas não se importava com as horas, os seus sempre marcavam horários diferentes de forma que habitualmente tinha dificuldades em saber as horas.

E agora o único que tinha alguma confiança estava parado.

Quando uma vez mais decidiu voltar os olhos para a única janela de seu minúsculo apartamento o ponteiro do relógio se moveu.

Em um primeiro momento ficou confuso, teve a impressão de que o ponteiro dos minutos tinha voltado para traz, seu primeiro pensamento era de que aquilo seria uma impossibilidade, mas ao olhar a janela notou que em breves instantes a claridade do dia e a escuridão da noite se alternavam.

Agora novamente olhando para o relógio teve a certeza de que ele se movimentava rapidamente no sentido anti-horário.



Lentamente o relógio foi diminuindo a sua velocidade, até que parou totalmente.

Franz já não estava em seu apartamento, acabara de acordar sentindo a luz do sol refletir em sua face, estava em um outro lugar, uma casa em que vivera há muitos anos.

Sentiu que estava atrasado, apesar de ser um sábado, sabia que tinha algo para fazer, algo que na noite anterior soava como ser muito importante, mas ainda que não soubesse a explicação, agora ela perdera toda a sua importância.

Ao olhar para o espelho reconheceu um Franz de décadas atrás, desperto desejou um café, mas não aquele muito ruim que havia em sua faculdade.

Ao refletir sobre as lembranças da noite anterior pensou na prova que deveria estar fazendo, mas pelo brilho do sol sabia já estar totalmente atrasado para ela, porém os sonhos que tivera tinham deixado muito claro que aquelas provas já não tinham a menor importância, de qualquer forma sentiu que deveria se apressar para chegar à faculdade.

A idéia do café porém não saia de sua mente, no caminho sabia haver um que era perfeito, o nome era curioso “Floresta”, e para chegar a ele, inda que fosse pelo interior de um grande edifício tinha que passar por um corredor sinuoso, parecido com uma Trilha.

Trilha, Floresta, tudo isso assumia em minha mente uma grande importância, a ansiedade fazia o coração disparar, e o cheiro do café inda que contraditório amenizava a sua ansiedade.

Era muito bom, tinha alguém muito especial que desejava convidar nos próximos instantes para um outro café, enquanto apreciava o coração gradualmente diminuía a sua pulsação.

Assim que cheguei ao corredor da faculdade soube que a prova já acabara há algumas horas, como sempre os colegas comentavam que tinha sido muito difícil, efetivamente soube que não perdera nada, a importância daquele lugar agora era outra.

Não quis nem entrar no prédio o jardim era mais atrativo, e o sol estava convidando.

Pouco depois de se acomodar num dos bancos, já no fim das aulas daquele sábado, saiu do prédio e veio em sua direção aquela que era minha melhor companhia.

Valkíria estava deslumbrante.



Enquanto apreciava Valkíria se aproximando a palavra “importância” ficou reverberando em minha mente.

Em um primeiro momento fiquei pensando na prova que perdera, mas sentia que não se tratava disso. Foi nesse momento que percebi que aquela faculdade já tinha cumprido o papel dela em minha vida.

As provas, os corredores, as raras aulas, os colegas... Tudo agora assumia um significado menor.

Senti que o motivo de estar ali estava representado em Valkíria que acabara de se sentar ao meu lado.

- E então, não veio para a prova,

- Acho que perdi a hora,

- Não creio que perdeu algo importante, estava muito difícil,

- Sei, já imaginava,

- A maior parte das pessoas entregaram nos minutos iniciais, desistiram,

- Já imaginava algo parecido, preferi dormir um pouco mais,

- E porque veio?

- Queria um café, vem comigo. Vamos ao Floresta.

Saímos juntos, desejei ir de mãos dadas, mas Valkíria não deu indícios de desejar essa aproximação, desde que iniciei o curso era minha melhor companhia, sempre conversamos muito, mas tinha dúvidas de que ela desejasse uma aproximação maior, sempre acabávamos seguindo caminhos diferentes.

Fiquei surpreso quando aceitou o café.

Seguimos em silêncio, eram apenas algumas quadras.

Durante o café nossos olhares não paravam de se cruzar, senti que eles bastavam, era como se sempre tivéssemos estado juntos, muitas vezes um simples olhar, a presença, trazem em si tudo o que é necessário.

Depois do café segui pelo corredor sinuoso do prédio, Edifício Copan, e minha doce Valkíria foi pelo caminho oposto, para a casa dela.

Naquele momento decidi pela não continuidade da faculdade, já não tinha mais qualquer importância, ainda que aquele lugar, em especial o jardim, sempre esteve presente em minha história.

Não me recordo do momento em que sai dos corredores sinuosos do Copan, mas parece que no momento seguinte estava outra vez flutuando no vazio, escuro, frio e infinito, com a face voltada para a Grande Estrela Azul.

Estava sozinho.



Em um primeiro momento o estar sozinho me incomodou, mas logo percebi que esse sentimento era muito diferente de solidão: Valkíria, os anjos, toda a Casa do Gramado; eram feitos da mesma essência, todos viemos da Grande Estrela Azul, e estávamos esperando o momento de voltarmos juntos, de mãos dadas.

Ainda assim senti a falta do pequeno Desconfiado que desde o momento que atravessamos o primeiro portal tínhamos estado juntos, mas os ponteiros do relógio tinham se movido para trás, voltamos para um tempo que o pequenino ainda não tinha nascido, o mesmo ocorria com o dócil Bill, que em um tempo que estava por vir iria morar no Mundo dos Cristais, ele ia ajudar muitos a encontrar a sua pedra.

Aquela que tinha vindo com os seres quando se desprenderam de sua estrela, que era feita da mesma essência.

Esse era o lugar do Mundo dos Cristais, unir os seres às suas pedras, para assim poderem voltar à sua estrela, e o Bill estaria por lá para auxiliar aqueles que desejassem ajuda.

Mesmo o Freud-cão naquele momento estava por nascer, e vir a cuidar de Franz, estava para chegar o dia em que ele, ainda muito pequenino, mas praticamente impossível de conter, e só na palma da mão, junto ao coração de Franz, parava de chorar e de procurar por aconchego.

Todos éramos da mesma essência.

Minha doce Valkíria, estava tão perto, ao alcance de minhas mãos, mas ela tinha seguido por um portal diferente.

No vazio senti, que em algum portal ela me encontraria e enquanto a esperava também a estava procurando, mesmo sem saber.



O vazio tem suas peculiaridades, é o lugar do não ser, do não existir.

Franz flutuava no vazio, muito distante de tudo, tão distante que seja para onde olhasse não era possível ver o brilho de nenhuma estrela.

Só um pequeno ponto azul, brilhando no infinito, iluminava brandamente a face de Franz, deixando que sua luz o envolvesse.

Pensava em seu encontro no café, era sua última lembrança, mas parecia ter passado muito tempo desde que esse encontro no Café Floresta ocorrera.

Valkíria tinha estado tão perto, ao alcance de seus dedos, mas desaparecera lentamente seguindo o corredor do edifício sinuoso.

Estava com muitas saudades.

Quando uma frase começou a reverberar em seu ouvido.

“Só o vazio pode ter a mesma dimensão do infinito.”



Sem se dar conta Franz se tornou o próprio vazio, já não era mais possível discernir um do outro, só uma tênue luz azul invisível se dividiu e, através do vazio, chegou a todos os Mundos em que ele e Valkiria estiveram.

A Casa do Gramado, Trilha dos Desejos, Essência: Um Caminho para as Estrelas, O Mundo dos Preocupados, o Mundo dos Perplexos, O Mundo das Estações, O Mundo dos Cristais, O Mundo das Plantas.

Os Portais estavam ali deixando aqueles que eram feitos da mesma essência bem pertinho, para se tocarem, com a pontinha dos dedos.

Uma voz suave tirou Franz do vazio e o deixou em transe.

- Meu amor, eu te encontrei.

- Nossos anjos estão esperando.

- Toque a sua pedra, aquela que o nosso Bill te presenteou.

- Ela está junto ao seu coração.

- E a magia do Mundo dos Cristais nos colocará bem pertinho.

- Para que possamos nos tocar.

- Com a pontinha dos dedos.

- Com muito amor.



Uma vez mais Franz se viu no meio de uma grande cidade, os barulhos o tiraram do transe.

Estava com a mão direita junto ao coração, segurando uma pequena pedra, presa a um colar.

Sentia-se confuso, não conseguia entender o que estava acontecendo, retirou o colar cuja pedra segurava nas mãos, se deparou com um cristal azulado, translúcido, em seu centro formava-se um desenho, mas era pequeno demais para ser discernido, só com algum tipo de lente conseguiria ver os detalhes.

As ruas estavam tomadas pelos carros, todos parados, em um  imenso congestionamento, as buzinas tocavam incessantemente, mas era inútil, o transito estava totalmente parado, as pessoas estavam irritadas. Perplexas.

A história lhe parecia familiar, mas não conseguia lembrar os detalhes, lembrou-se do vazio, frio, infinito, e não compreendia como pôde ter sobrevivido no vácuo, pensou que talvez tivesse sido um sonho, que sentia ter sido real demais.

Lembrava dos detalhes, flutuando no vazio, envolvido por uma tênue luz azul, praticamente imperceptível, distante demais de qualquer lugar.

Uma frase se desenhou em sua mente: “Só o vazio tem a mesma dimensão do infinito.”

Lembrou-se de ter formulado essa frase, mas era em um tempo localizado em um futuro muito distante.

A idéia desse paradoxo o incomodava, como podia se lembrar de uma frase que formulou no futuro, como o vazio podia ter a mesma dimensão do infinito.

Como os demais estava ficando perplexo.

Alguém tocou um de meus ombros, mas demorei para responder.

- Franz, o que faz ai parado.

Ao olhar quem se dirigia a mim, reconheci o amigo de há muito tempo, um tempo em que ainda não imaginava descrever a Casa do Gramado, ainda que ela sempre estivera em minha mente.

- Gaguejando respondi: O que está acontecendo?

- Cara está dormindo, há dias não se falam de outra coisa, ainda ontem nos divertíamos com isso tudo.

- Sabe me dizer que dia é hoje?

- Nossa! Quando você bebeu? Sexta feira...

- Mas, o que estão todos fazendo na rua, está tudo parado.

- Cara, o mundo parou, faz uma semana já, não será mais possível ficarmos aqui, os alimentos estão rareando, estão todos voltando ao campo, às montanhas, às trilhas...

- Mas que dia é hoje?

- Sexta-feira, abril, 1990... Bom dia.

1990! Fiquei pensando por uns instantes tinha-se passado uma década desde que tinha me encontrado com Valkíria pela última vez, no Café Floresta. As saudades apertaram meu coração, mas desde então tudo o que lembrava era do vazio, do infinito, senti que minha cabeça ia começar a doer.

- Vamos, já devem estar nos esperando, lembra-se que ficamos de encontrar com todos, antes de decidir para onde iríamos, a Valkíria também estará no encontro.

- Vamos sim, só preciso de um comprimido, minha cabeça está doendo um pouco.

- Sabia que o nome dela ia te entusiasmar.



Segui caminhando, só não sabia ainda para onde, mas não demorou para reconhecer o caminho que desembocava no Café Floresta.

Muitas coisas estavam diferentes no percurso, enquanto uma infinidade de outras pareceram estar intactas.

Pelo que estava entendendo tinha transcorrido uma década, desde que trilhara esse caminho pela última vez, mas desse tempo todo só me lembrava de dois momentos específicos, o café naquela tarde de sábado com minha amada e depois o vazio, mas em minha percepção só havia passado alguns instantes.

No fim de um corredor já conseguia avistar as mesas do Café Floresta e alguns amigos sentados em uma delas, como era um costume, ao menos em minha percepção até o dia de ontem.

Imediatamente reconheci minha doce Valkíria, estava linda, como sempre, a única diferença que podia notar em relação ao nosso último encontro eram as roupas, ainda que permanecesse com o mesmo estilo.

Estavam nos esperando, parece que todos já tinham se decido por ir caminhando até as Trilhas, só Valkíria estava relutante, ainda esperava por algo, que ela mesma não sabia explicar.

Depois de ouvir uma breve conversa daqueles que sempre são amigos, não foi difícil compreender o que estava acontecendo.

Parece que por algo que ninguém sabia explicar todas as pessoas há uma semana atrás tinham saído de suas casas ao mesmo tempo com seus carros.

Isso tinha ocorrido simultaneamente em todo o mundo, vindo a provocar um congestionamento nunca antes conhecido, o trânsito tinha parado em todo o mundo e nem as pessoas que estavam em seus automóveis conseguiam retornar às suas casas e nem os mantimentos que vinham de regiões agrícolas chegavam às cidades.

Em um tempo muito pequeno os alimentos começaram a rarear e muito em breve a vida nas cidades ficaria inviabilizada.

Muitos já tinham abandonado tudo e estavam caminhando às Trilhas, Montanhas, ou Litoral.

E ali estávamos nós, nosso antigo círculo de amigos decidindo o que fazer, seguir o caminho das trilhas era um consenso.

Enquanto conversavam a cada momento me sentia mais hipnotizado pela minha Valkíria, os colegas falavam ao nosso lado, mas suas vozes pareciam vir de muito longe.

Valkíria igualmente olhava profundamente em meus olhos.

Terminado o café as pessoas à nossa volta nos despertaram, nos balançando pelos ombros e nos tirando do transe.

Naquele momento se levantaram, meio que nos puxando, para irmos às trilhas.

Em um aceno, concordando, respondi que iríamos, mas pedi que fossem à frente, logo os seguiria.

Todos se levantaram e seguiram, eu e Valkíria ficamos nos olhando nos olhos.

Entramos em transe.



Quanto todos tinham se afastado e já não mais ouvíamos as suas vozes, nos vimos sentados ainda no Café Floresta.

Já não havia ninguém à nossa volta, a galeria estava vazia, não se deram nem ao trabalho de fechar o café, até os três únicos funcionários tinham ido embora.

Creio que deixaram o lugar aberto em respeito à nossa presença, e aparentemente aquele lugar perdera o sentido até àqueles que lá trabalhavam.

Tudo ao nosso redor estava em silêncio.

Em transe, igualmente permanecemos em silêncio, nos olhando nos olhos, de mãos dadas, com os dedos entrelaçados.

Lentamente flutuamos, o dia estava se findando, entre os prédios a Estrela Azul brilhava intensamente, a nossa estrela.

Do lado de fora da galeria, a pouco mais de uma dezena de metros de altura, conseguíamos visualizar as grandes avenidas à nossa volta, totalmente congestionadas, praticamente todos os automóveis tinham sido abandonados, só alguns poucos motoristas insistiam em ficar apegados a eles.

O silêncio denunciava que seus motores tinham parado de funcionar, alguns danificados por terem superaquecidos por permanecerem tanto tempo parado, e a maioria por que o combustível de seus tanques tinha se esgotado.

Muito ao longe ainda era possível ouvir algumas buzinas que tocavam inutilmente, denunciando a perplexidade daqueles que se recusavam a deixar seus automóveis.

Agora flutuando pouco acima dos prédios foi possível perceber que nem todos tinham abandonado a cidade, dava para ver pessoas andando no interior deles e se aproximando das janelas, curiosas, alguns possivelmente pela cena insólita de duas pessoas de mãos dadas flutuando.

Quem nos via se sentia perplexo.

Muito acima dos prédios, no horizonte o sol com sua luz avermelhada estava se pondo, nos limites da cidade era possível ver grupos de pessoas chegando às Montanhas e às Trilhas, sentimos que nossos amigos antes que o dia voltasse a clarear já teriam chegado às Trilhas.

Lentamente continuamos flutuando, cada vez mais alto, já não era mais possível identificar as ruas e avenidas, os prédios mais altos eram apenas pontos brandamente iluminados que se destacavam dos demais.

Nos limites da cidade uma densa escuridão se destacava, eram as Montanhas e o Mundo das Trilhas e além delas o oceano, onde as pessoas começaram a se dirigir por sentirem que não mais seria possível sobreviver nas cidades, mas parte das pessoas insistiram em ficar, os Perplexos.

De onde estávamos agora era possível ver o planeta inteiro, diminuindo de tamanho, estávamos envolvidos por uma tênue luz azul.

- Meu amor, para onde estamos indo, não compreendo.

- Não sei ao certo, acho que estamos sendo atraídos pela Estrela Azul, sinto que é a nossa estrela.

- Meu amor, deixa eu pedir.

- Sim, claro.

- Não me deixe.

- Eu não vou te deixar, somos feitos da mesma essência. É para ficarmos juntos.

Muito distante da Terra, agora com o sol ficando cada vez menor inúmeros Portais começaram a se desenhar em nosso caminho.

- Meu amor, vamos voltar à nossa estrela.

- Sim, de mãos dadas.

- Desejo.

- Mas no caminho quero conhecer outros mundos de magia.

- Vamos voltar bem devagarzinho, namorando, trocando olhares.

- Do outro lado de uma dessas portas está o Mundo dos Cristais, é lá que está o nosso anjo.

- Vamos procurar por ele, o nosso Bill irá adorar voltar à nossa estrela com a gente.

2 comentários:

  1. Mundo dos Portais nos permite abrir uma brecha no Espaço-Tempo para qualquer dimensão que se consiga acessar, mundo de encantos, sonhos e magia. Lindo demais! É a nossa história.

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  2. Mundo dos Portais nos permite abrir uma brecha no Espaço-Tempo para qualquer dimensão que se consiga acessar, mundo de encantos, sonhos e magia. Lindo demais! É a nossa história.

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