sábado, 9 de outubro de 2010

Trilha dos Desejos.



Parecia ser uma manhã como outra qualquer no pequeno vilarejo Trilha dos Desejos, quando o sol estava para nascer as pessoas que acordam mais cedo começavam a caminhar com a calma que lhes era habitual pelas ruas de terra batida já há tanto conhecidas, só um de seus moradores tinha sido acordado quando ainda era madrugada.

Contrariado, após insistir em fazer seu carro funcionar sem qualquer sucesso resolveu desistir, pegou umas poucas ferramentas e se dirigiu à casa de um cliente conhecido, que o tinha acordado pedindo ajuda pois precisava ir à cidade e seu carro não estava funcionando, dizia não entender, pois no dia anterior não tinha qualquer problema.

Enquanto caminhava se questionava por não dar atenção ao seu próprio carro, do qual necessitava para seu trabalho, enquanto rotineiramente fazia manutenção, nos demais veículos do vilarejo, quando falou para si mesmo que em casa de serralheiro o espeto era de pau.

No caminho tinha sido parado por outros conhecidos com problemas semelhantes, e ficou se perguntando o que estava acontecendo, mas ficou satisfeito, afinal o trabalho era bem vindo.

Depois de chegar ao seu destino, após várias tentativas frustradas disse ao seu cliente que precisava levar o carro à oficina, para um exame mais detalhado e, quando conseguisse consertar o dele próprio viria buscar o outro para poder fazer o trabalho.

Inconformado, mas diante da necessidade, o cliente desistiu momentaneamente de ir de carro à cidade e como a maioria dos que moravam na Trilha dos Desejos, que não tinham carro, pela primeira vez resolveu ir à cidade com o único ônibus disponível no vilarejo.
 
 
Trilha dos Desejos é um pequeno vilarejo que mesmo quando ainda não constava nos mapas, já existia há muito tempo, uma cadeia de montanhas de difícil acesso o separa das pequenas cidades que o circundam ao pé da serra. Entre essas montanhas localiza-se um pequeno planalto, onde o vilarejo se formou.

Circundando o vilarejo pequenos sítios mantinham uma produção suficiente para aqueles que cuidavam da terra e o excedente era levado a Trilha dos Desejos onde seus habitantes se encontravam para realizar suas festas e trocar o que produziam.

Entre as muitas trilhas existentes na cadeia de montanhas, córregos de águas cristalinas corriam e formavam pequenas cachoeiras, descendo a serra os inúmeros córregos se juntavam formando um rio de águas límpidas que poderia suprir as pequenas cidades que rodeavam as montanhas, mas ao pé da serra as águas já se encontravam comprometidas, há muito não eram usadas pelas crianças para nadarem e se divertirem, dizia-se ser resultado do des-envolvimento.

Trilha dos Desejos também perdia suas características, nos finais de semana e feriados muitos vinham de longe conhecer suas cachoeiras e trilhas, os pequenos sítios estavam se tornando um lugar para esses que vinham à procura de distração nos finais de semana. Eram poucos aqueles que ainda iam ao vilarejo para trocar o que produziam, mas durante a semana tudo ficava muito vazio e podia-se andar tranquilamente, mesmo no meio das pequenas ruas.
 
 
Após percorrer uns poucos quilômetros, já nos limites de Trilha dos Desejos, o ônibus estava irremediavelmente cheio, as pessoas se apertavam em seu estreito corredor, parece que hoje todos tinham resolvido deixar seus carros e irem à cidade de ônibus.

É curioso essa necessidade de as pessoas precisarem se deslocar de um lugar para outro, será que elas sabem os por quês dessa rotina, enquanto realizavam trabalhos em outros lugares, nas cidades vizinhas, aos poucos seus próprios espaços iam ficando abandonados.

Pequenos sítios antes destinados à produção para a subsistência, aos poucos iam ficando perdidos no mato, outros se transformavam em pequenas vilas, com casas muito próximas umas às outras e nelas iam habitando um sem número de outras pessoas que também precisavam se deslocar para locais ainda mais distantes, para realizar rotinas de difícil compreensão, que provavelmente nem elas próprias tinham noção do que produziam nesses lugares distantes.

Outros ainda se transformavam em pequenos hotéis, principalmente aqueles que ficavam próximos às cachoeiras, que cercavam seus terrenos, só permitindo àqueles que lá se hospedavam desfrutar de trilhas, cachoeiras e córregos, que não lhe pertenciam, e que aos poucos iam perdendo sua vida.

Curioso que essas pessoas deixavam seus próprios espaços e não cuidavam deles, e se deslocavam por longas distâncias para chegar a esses pequenos hotéis, deixando atrás de si, quando iam e quando vinham, longas trilhas de abandono.

Ao chegar à estrada asfaltada, o ônibus estava ainda totalmente cheio, até então ninguém tinha descido e não havia mais nenhum espaço para outros que aparentemente desesperados faziam sinal para que ele parasse, mas simplesmente não havia nenhum espaço.

Felizmente não tinha transito e o ônibus ainda que em sua velocidade reduzida rapidamente cruzava a estrada, na qual nesse dia em particular parecia não haver um único carro trafegando, e pelas calçadas muitas pessoas caminhavam.
 
 
Na cidade os ônibus circulavam totalmente cheios, e nas ruas muitas pessoas caminhavam, os poucos carros que estavam nas ruas ou estavam estacionados ou com seus capôs abertos, denotando problemas, mas felizmente não tinha nenhum trânsito e assim os ônibus conseguiam andar com maior velocidade.

Em frente a uma vitrine dessas lojas de eletrodomésticos as pessoas se apinhavam tentando ver e entender a curiosa notícias, parecia que em todos os lugares os carros simplesmente tinham parado de funcionar.

Alguns mecânicos entrevistados não sabiam explicar o curioso fenômeno, não fazia sentido, não conseguiam determinar qual era o problema, e por mais que se esforçassem, a maioria na própria rua, ou na casa de seus clientes, nada do que fizessem dava resultado.

Diziam aqueles que tinham oficinas mais aparelhadas que precisavam levar os automóveis para elas, afim de um exame mais detalhado, pois só conseguiam chegar nos lugares andando e assim só podiam levar umas poucas ferramentas, mas também não sabiam explicar pois alguns desses que estavam em suas oficinas já prontos, depois de uma revisão também não estavam funcionando.

Enquanto isso uma repórter tentava sem sucesso contatar os responsáveis pela indústria automobilística, mas não conseguiam chegar a eles, uma vez que esses moravam em condomínios distantes e não havia transporte público que pudesse nesse momento chegar a eles.
 
 
Nesse meio tempo na indústria automobilística, os únicos que conseguiam chegar a seus postos de trabalho eram os operários, entre eles poucos tinham automóveis e estavam acostumados com o uso de transporte público, interpelados por repórteres que conseguiram chegar às portas das fábricas nada tinham a dizer, além das queixas de que os ônibus estavam mais cheios do que o habitual.

Nesse dia nenhum daqueles que faziam parte da administração conseguiram chegar aos seus trabalhos, curioso que além do estranho fato que estava ocorrendo todos os setores produtivos da sociedade funcionaram normalmente, exceto na indústria automobilística, as máquinas utilizadas na confecção de carros parece que se recusavam a funcionar. Por outro lado os setores que produziam caminhões, ônibus, tratores, etc., funcionavam normalmente.

No final da tarde os jornais noticiavam que esse era um fenômeno mundial, equipes de engenheiros de todas a indústria automobilística estavam tentando se unir para resolver os problemas, mas até o momento, todas as suas tentativas tinham sido frustradas.
 
 
Meses se passaram e nenhuma solução foi encontrada, aqueles que tinham adquirido veículos recentemente tentavam colocar na justiça seus casos para que fossem ressarcidos, mas era inútil, não conseguiam dar andamento a nenhum processo pois desde o início do curioso fenômeno, aqueles que deveriam dar encaminhamento a esses processos não iam trabalhar, pois não aceitavam usar os transportes públicos.

No princípio diante da percepção que a produção de veículos destinados ao transporte público funcionava normalmente, algumas pessoas tentaram adquirir esses para uso particular, diante dessa possibilidade os empresários da indústria automobilística se entusiasmaram, pois esses veículos tinham um valor individual muito maior e se destinassem a produção para esses, os lucros atingiram patamares nunca antes vislumbrados.

Essa tentativa foi rapidamente frustrada, diante de qualquer iniciativa no sentido de transformar veículos públicos para atender necessidades particulares imediatamente as máquinas paravam de funcionar.

Diante de inúmeras frustrações os setores produtivos da sociedade começaram a se mobilizar para se adequar, ao menos momentaneamente, a esse novo jeito de o mundo funcionar.
Pairava no ar a impressão de que grandes transformações estavam para ocorrer.


Enquanto isso em Trilha dos Desejos, a vida transcorria com a tranqüilidade que lá era habitual, os pequenos hotéis estavam totalmente vazios, mas aqueles que viviam do que produziam não estavam tendo nenhuma dificuldade.

A vida pacata em Trilha dos Desejos parecia ser tão pacata quanto o era antes de ser procurada pelos turistas, inda que com o quase total fim do turismo a vida parecia melhorar por lá, do único ônibus antes existente, agora haviam cinco e locais antes abandonados pois seus donos tinham se voltado a atender os turistas, agora voltavam às suas atividades, plantando e cuidando de suas terras.

Os pássaros, peixes e outros animais silvestres que vinham rareando nas proximidades, dado a grande circulação de pessoas e dos carros que antes os assustavam fazendo com que se afastassem, agora estavam voltando e conviviam bem com as pessoas de Trilha dos Desejos, esses sabiam partilhar os seus espaços.

Alguns poucos turistas continuavam a freqüentar o vilarejo, mas esses como os moradores, animais, plantas, pedras, águas..., sabiam partilhar o espaço, eram pessoas que apreciavam caminhadas, outros que usavam bicicletas e ainda aqueles que usavam os ônibus, como os demais moradores.

A circulação de dinheiro tinha diminuído muito, mas curiosamente as pessoas que lá trabalhavam aumentaram seus rendimentos.

Acontece que os donos dos hotéis, restaurantes, comércio..., que lá estavam se fixando não eram residentes do vilarejo, e o lucro que tinham acabavam sendo desviados para os bancos e, em Trilha dos Desejos não havia nenhum, ainda as pessoas tinham deixado de trabalhar a terra e manufaturar o que precisavam pois se voltaram para o turismo que aparentemente pagava melhores salários, mas assim tinham que comprar alimentos, roupas..., das cidades vizinhas, e assim contraiam dívidas, pois acabavam gastando mais do que ganhavam.

Muito em breve dinheiro deixaria de ser um problema para todos.
 
 
Nas grandes cidades as manchas de fuligem que acompanhavam todo o horizonte, aos poucos começavam a dissipar, a produção industrial tinha diminuído vertiginosamente e consequentemente o volume de dinheiro em circulação também tinha diminuído, em proporções ainda maiores, ainda o desemprego estava assolando o mundo todo.

A imprensa escrita e falada já não se interessava mais pelos carros que não mais funcionavam, agora se ocupavam da crise econômica.

Ainda que os setores voltados ao transporte público estivessem precisando de trabalhadores, o desemprego estava crescendo vultuosamente, mas curiosamente parecia que as pessoas estavam vivendo melhor pelo menos economicamente, se por um lado a economia estava em recesso, por outro os gastos estavam se tornando irrisórios, uma vez que antes as pessoas gastavam a quase totalidade do que tinham para manter seus carros, agora esse dinheiro estava sendo desviado para atividades mais sadias.

Enquanto isso as delegacias apresentavam os mais baixos índices de criminalidade já registrados em sua história, os casos de roubos e assaltos praticamente tinham desaparecido, também os setores de segurança estavam com excesso de gente para trabalhar pois não precisavam mais cuidar da segurança do trânsito e assim podiam destinar essas pessoas para garantirem outros setores que necessitavam de segurança.

Termo estranho esse “Segurança”, o que será que isso significa? Logo esse termo precisaria de novas definições nos dicionários...
 
 
No final da tarde de domingo um sentimento de angústia se espalhava em todos os cantos, no último dia útil, na sexta feira, curioso esse termo “dia útil”, será que isso significa que o final de semana é inútil, estranho isso, em princípio as pessoas trabalham para que possam desfrutar de seu trabalho, e justamente os dias aos quais foram destinados a isso, são considerados inúteis, será que o conceito de utilidade está vinculado à capacidade de as pessoas ganharem dinheiro, chegando ao ponto de que os dias destinados a um descanso sejam considerados inúteis.

Oras se a finalidade do trabalho é podermos desfrutar dele, esse conceito deveria ser invertido, assim efetivamente os dias úteis seriam justamente os feriados e fins de semana, já os outros, os denominados “úteis” só teriam a finalidade de suprir aqueles aos quais são destinados ao descanso, lazer, passeios, convivência, etc.

Essa inversão de conceitos leva a inferir que a finalidade do trabalho não é levar as pessoas a desfrutarem de seus resultados, então, afinal qual seria a finalidade do trabalho.

É falso pensar que sua finalidade é suprir as necessidades humanas, para isso não seria necessário tanto trabalho e igualmente não seria produzido tantas coisas sem finalidade. Qual seria afinal a finalidade do trabalho.

Será que a angústia presente nos domingos à tarde teria ligações com esse trabalho que realizamos e parece que desconhecemos a sua finalidade.
 
No início da semana a sensação de mau estar presente até então parecia se concretizar, pela manhã nas cidades maiores, um grande número de pessoas parecia andar desorientada, de um lado para outro, sem saberem o que fazer, ou para onde ir, uma sensação de vazio parecia tomar conta de muitos.

Aqueles que deixaram para comprar o pão e o leite logo cedo sequer estavam conseguindo tomar o seu café matinal.

Os primeiros que chegaram às padarias e eram conhecidos conseguiram levar para casa o necessário para o seu café da manhã, mesmo sem poderem pagar, mas logo perceberam que não poderiam continuar com essa rotina, parece que nesse dia todos acordaram sem dinheiro.

Os ônibus que até então circulavam estavam parados, os funcionários não sabiam o que fazer.

Nesse dia as pessoas acordaram e todo o dinheiro que tinham nos bolsos, carteiras e bolsas, tinham se transformado em papel comum e estavam em branco, o mesmo tinha acontecido aos pequenos estabelecimentos comerciais, as cédulas que até o domingo à noite eram dinheiro, agora não passava de um papel em branco.

O mesmo tinha ocorrido com os cheques e os cartões eletrônicos, estavam todos em branco, sem nenhuma indicação, espaço para especificar valores, a data e a assinatura, não tinha restado nem a identificação da instituição financeira.

Instituição Financeira? O que seria isso? Não me recordo de ter ouvido uma definição do que isso viria a ser. Talvez seja só uma definição existente nas Universidades, nos cursos de economia e similares.
 
 
Com muita dificuldade umas poucas pessoas conseguiram chegar aos seus trabalhos, entre esses praticamente só aqueles que conseguiam chegar aos seus destinos sem o uso dos transportes públicos, nesse meio tempo um outro transporte estava se tornando popular, as bicicletas, que agora podiam circular pelas ruas e avenidas, sem os riscos que antes o trânsito representava, e aqueles que as usavam estavam conseguindo se locomover mais rapidamente que os automóveis mais potentes.

As notícias eram desencontradas, ninguém sabia explicar esse novo fenômeno.

As portas dos bancos estavam rodeadas por repórteres, aos poucos os funcionários que lá chegaram logo perceberam que não era um fenômeno isolado, os cofres estavam cheios de papel comum, no tamanho de cédulas, mas em branco.

Alguns chegaram a cogitar que teria ocorrido um grande assalto, porém essa hipótese logo foi descartada, não havia qualquer sinal de que isso pudesse ter ocorrido, ainda todos os dados, listagens, documentos..., estavam em branco, como as cédulas.

Os repórteres em volta aos bancos, insistiam em obter alguma explicação, mas desde que os carros tinham parado de funcionar, os responsáveis pela administração dessas “instituições” não iam trabalhar, e não havia ninguém com autorização para dar explicações ao público.

Instituição? O que seria essas instituições? Qual seria o seu papel? Muito estranho. Na ausência de uma denominação a partir daqui será denominada de “Paradoxo”.

Nesse dia os funcionários dos Paradoxos estavam desorientados, não sabiam mais os que fazer, não paravam de chegar queixas e os clientes exigiam explicações, alguns exaustos e já sem saberem mais como agir, estavam solicitando aos clientes que trouxessem ou últimos extratos que receberam para poderem atender às queixas, mas esses também estavam em branco.
 
Nas horas que se seguiram aqueles que antes tinham deixado de sair de suas luxuosas casas por se recusarem a utilizar os transportes públicos: administradores, banqueiros, fiscais, empresários, políticos; fizeram-se notar, estavam furiosos, queriam culpados e começaram a oferecer vultuosas recompensas a quem fornecesse informações que levassem a encontrar quem estava provocando esses fenômenos.
 
 
Em Trilha dos Desejos a vida pacata transcorria como se nada estivesse ocorrendo, a ausência dos carros e agora do dinheiro pouco ou nada tinha alterado a rotina dos residentes.

Os poucos políticos que por lá passavam, quando os carros pararam de funcionar não mais apareceram no vilarejo, o mesmo ocorreu com os empresários e administradores, já os fiscais antes do fenômeno não tinham o que fazer por lá e, desde então, sumiram de vez.

Fiscais! Ocupação estranha essa, será que existe alguma finalidade para essa ocupação? Para que eles servem? A quem servem? Será que o mundo precisa disso?

Agora que o dinheiro tinha desaparecido os ônibus que transportavam as pessoas até as cidades vizinhas, não mais foram até Trilha dos Desejos, deixando o vilarejo ainda mais isolado.

Agora só aqueles que gostavam de caminhadas é que iam para Trilha dos Desejos, alguns que visitavam o vilarejo e ficaram sem os ônibus para voltarem aos seus lugares de origem, resolveram ao menos momentaneamente ficar por lá mesmo, com o esvaziamento dos hotéis, estavam sobrando locais para as pessoas ficarem.

Em pouco tempo, esses começaram a se misturar com a população residente e a participar da vida produtiva do vilarejo, sobrava tempo para a convivência e para as pessoas se conhecerem.
 
 
As pessoas que habitavam o mundo que rodeava Trilha dos Desejos no geral estavam desorientadas, perplexas. A produção industrial tinha reduzido a índices até então desconhecidos, dizia-se que beirava a produção existente na Idade Média.

Por outro lado em alguns sentidos parecia que o mundo tinha melhorado muito, os índices de poluição não se tinha conhecimento desde que começaram a medi-la, de estarem tão reduzidos, a quantidade de árvores aumentava significativamente e com elas pássaros e animais que há muito não eram vistos reapareceram, inclusive às vezes andando livremente pelas ruas menos movimentadas.

Muitos que antes passavam quase o tempo todo trabalhando, agora se dedicavam a cuidar de si próprios, daqueles que os rodeavam e ainda do ambiente como um todo.

Talvez esse tenha sido um problema do mundo antigo, os governos aumentavam significativamente os impostos, dizendo que com a finalidade de cuidar do meio ambiente, como era meio, só o cuidavam pela metade, e provavelmente ninguém sabia o que era feito da outra metade que arrecadavam.

Agora com tempo disponível, pois não havia mais o por que de se trabalhar tanto sobrava tempo para cuidar do ambiente todo.
Estava tudo muito confuso, mas as pessoas, como a natureza; aliás, a própria natureza essa distinção pessoa/natureza é um outro paradoxo, nós só somos parte dela, como qualquer outra parte, nem mais nem menos que as demais partes; estavam se ajustando, só uns poucos estavam furiosos, recusavam o que estava ocorrendo, queriam culpados.
 
Desde que os automóveis pararam de funcionar ficou evidenciado três tipos de personalidades, no que se refere ao setor produtivo da vida, no antigo mundo.

A primeira delas, dizia respeito às pessoas que produziam pelo prazer, para melhorarem a sua própria condição e a do mundo que as rodeava, para essas, os lucros alcançados eram uma conseqüência de suas atividades. Essas pessoas não estavam tendo dificuldades maiores com as mudanças, e pouco ou nada tinha alterado em suas rotinas.

Um segundo tipo de personalidade era constituído por pessoas que tinham o lucro como um fim, viviam em função disso, essas estavam tendo dificuldades em conviver após as mudanças, estavam desorientadas, não sabiam o que fazer, praticamente tudo que produziam antes, não tinham qualquer finalidade, além de gerar lucros para elas próprias e, como o dinheiro tinha desaparecido, estavam perplexas e sem nada para fazer, parte dessas pessoas já estavam se engajando com o primeiro grupo e encontrando coisas mais úteis para fazer na vida, mas uma parte significativa delas ficavam vagando de um lado para o outro, procurando caminhos para que o mundo voltasse ao que era antes.

O terceiro grupo, era composto por pessoas que tinham um funcionamento muito parecido com o das parasitas, essas nada produziam, mas viviam criando artifícios para ficar com a maior parte do que demais faziam, sua especialidade era criar rotinas inúteis e altos tributos para alimentar seus luxos desnecessários. Essas estavam furiosas.
 
 
Aparentemente na natureza tudo tem uma função, até mesmo as parasitas. Em um corpo doente, enfraquecido, rapidamente as parasitas tomam conta dele e se fortalecem, enfraquecendo e adoecendo ainda mais o corpo enfermo, levando-o a uma morte rápida, aliviando assim o seu sofrimento, mas depois que o corpo morre, as parasitas também morrem, uma vez que elas não têm autonomia suficiente para sobreviver sem um corpo que as alimentem.

Em proporção semelhante se o corpo reage fortalecendo as suas defesas, ele começa a atacar as parasitas, levando-as à morte, em um corpo são há pouco ou nenhum lugar às parasitas.

Antes das mudanças, as pessoas que tinham funcionamento semelhante ao das parasitas, representava uma parte muito poderosa da população, praticamente eram elas que determinavam os caminhos que a sociedade deveria seguir, mas dado o seu funcionamento estavam levando o mundo a sucumbir.

Felizmente parece que as pessoas estavam encontrando uma nova forma de ser e, aos poucos todos estavam curando as suas feridas e, assim, as parasitas já não mais dominavam o mundo que se curava e fortalecia, as parasitas iriam se extinguir.
 
 
Entre aqueles que tinham funcionamento semelhante ao das parasitas também havia três tipos de personalidades bem específicas.

Os primeiros, e menos poderosos eram um tipo de capacho, a mando de outros saiam às ruas procurando por falhas nas rotinas daqueles que produziam, sua finalidade era aplicar multas, para aumentar arrecadações e financiar os luxos desnecessários de outras parasitas, mas como também eram parasitas não se limitavam a isso e para amenizar as multas recebiam altos valores daqueles que produziam para não enxergarem as falhas existentes, isso fazia com que as outras parasitas não recebessem tudo que almejavam assim essas estavam sempre criando novas rotinas inúteis e tributos para aumentar as arrecadações.

Isso criava um ciclo vicioso, mais multas, mais tributos, mais as parasitas do tipo capacho faziam vistas grossas às falhas para receberam mais indevidamente, consequentemente mais multas e tributos eram criados.

Um segundo tipo de personalidade com funcionamento parasita era composto por pessoas que operavam sempre dentro de leis institucionalmente criadas para favorece-los, detinham praticamente todos os valores que eram produzidos, mas como parasitas, nada produziam, só ficavam com os valores.

Eram aqueles que administravam os paradoxos, difícil de serem identificados, viviam sob muralhas da burocratização, ainda que operassem dentro de leis estabelecidas, essas eram moralmente indecentes.

O terceiro tipo era facilmente identificável, esses estavam sempre na mídia, dividiam o poder com os que administravam os paradoxos, composto por aqueles que criavam leis e tributos para financiarem os próprios luxos, também eram responsáveis pela aplicação dessas leis e tributos, cumpridas pela ação das parasitas tipo capacho, sendo que os valores eram administrados nos paradoxos.

Constantemente estavam na mídia pelos escândalos em que se envolviam, sempre para financiarem seus luxos desnecessários, mas invariavelmente nada acontecia, uma vez que eram eles mesmos que faziam as leis e determinavam o seu cumprimento.

Os caminhos para Trilha dos Desejos estavam se fechando, a antiga estrada de terra batida que ligava o vilarejo às cidades aos pés da serra agora não passava de uma trilha, para aqueles que por nela caminhavam.

Depois que o dinheiro deixou de circular os ônibus deixaram de subir a serra, igualmente os caminhões que levavam mantimentos aos hotéis, como não haviam mais turistas, também deixaram de ir ao vilarejo, agora a trilha só era usada por aqueles que caminhavam ou andavam de bicicleta, em pouco tempo a trilha iria se fechar totalmente.

Aqueles que viviam em Trilha dos Desejos e outros que por lá se fixaram não estavam sentindo nenhuma falta da ligação com as cidades maiores, muitos que iam a pé acabavam por se fixarem por lá mesmo, esses também não estavam sentindo falta das cidades de procedência, alguns que iam à procura daqueles que por lá estavam se fixando às vezes também acabavam ficando.

Os poucos automóveis que existiam ou que ficaram em Trilha dos Desejos foram empurrados para junto dos inúmeros morros que por lá existiam, esses estavam sendo cobertos pela vegetação e perdendo as suas características, alguns deles tinham até árvores brotando dentro deles.

Alguns animais acharam uma utilidade mais importante para eles e os usavam como abrigos, representavam um bom lugar para novas ninhadas se protegerem, enquanto eram pequenos.

O rio que se formava dos inúmeros riachos existente em trilha dos desejos, chegava ao pé da serra, agora com águas cristalinas, era possível ver muitos peixes, que voltaram a habitar essas águas, muitos que tinham deixado de usar o rio para brincar e até para o uso doméstico voltaram a utilizá-lo.
 
 
Nas cidades, cumprindo ordens, as parasitas do tipo capacho saíram às ruas, pareciam transtornadas, ameaçavam a tudo e a todos, como eram poucos os estabelecimentos abertos, sejam comerciais ou industriais, afinal agora só se produzia o que era necessário e as pessoas se limitavam a trocar aquilo que produziam por outras coisas que tinham necessidade, essas parasitas passaram a ameaçar as pessoas que andavam pelas ruas.

Diziam que as pessoas tinham armado um complô, que elas estavam escondendo o dinheiro e recusando-se a pagar os tributos, mas ao mesmo tempo prometiam ser generosas e reduzir as multas se as pessoas concordassem em colaborar com elas.

Diante da frustração e às vezes incompreensão das pessoas, ameaçavam ir à polícia e à justiça. Só que não existiam mais policiais, depois que o dinheiro deixou de circular a criminalidade praticamente tinha desaparecido, assim, esses começaram a procurar outras ocupações.

E justiça, esse também era um outro termo estranho, o que seria isso, quem seriam as pessoas que a representam, para que e a quem servem... Perguntas difíceis de serem respondidas, parece que no mundo antigo esse era um termo muito usado, ainda que aparentemente poucos conheciam o seu significado, mas agora tudo indicava que aqueles que a representavam estavam buscando outras ocupações, ou talvez também fizessem parte do grupo das parasitas. Há uma dificuldade significativa em identificar o sentido desse termo.

Nesse dia um outro fato curioso aconteceu, depois de ameaças infrutíferas as parasitas do tipo capacho pegaram seus blocos de multas e diziam que aplicariam multas pesadas a todos, mas quando olharam os blocos, ficaram perplexas, seus formulários tinham se transformado em papel em branco, diziam que iam aplicar as multas assim mesmo só que suas canetas não escreviam.

Entre aqueles que assistiam as cenas que as parasitas faziam, algumas pessoas ficavam com pena, tentavam conversar e convencê-las a fazer algo útil na vida, mas era inútil, tudo que queriam era se apropriar daquilo que não lhes pertencia. Outros as tratavam com indiferença, e havia ainda aqueles que as tratavam com deboche.

Depois de alguns dias de sucessivas frustrações elas começaram a retornar às suas casas, ficaram melancólicas e posteriormente deprimidas.

Aos poucos o estado delas foi se agravando, estavam em melancolia profunda, primeiro chamaram os médicos para ajudá-las, quando esses já não sabiam mais o que fazer levaram-nas aos hospitais, mas nenhum tratamento parecia surtir efeito.

Nos hospitais elas ameaçavam os funcionários, médicos... Dizendo que os locais eram irregulares e que todos seriam multados e processados, e completavam dizendo haver maneiras de aliviar os processos se eles colaborassem.

Ainda que os médicos insistissem, os tratamentos eram inúteis, elas não metabolizavam os remédios, em um dado momento algumas delas emitiram um sinal de melhora, penalizado com a situação um dos funcionários mentiu, começou a oferecer valores, que não mais existiam, se elas ajudassem seus familiares a regularizarem alguns documentos.

Diante da proposta os olhos das parasitas brilhavam, mas logo os médicos perceberam o que estava ocorrendo e como a mentira não podia ser aceita como um procedimento no tratamento, esse funcionário interrompeu suas ofertas.

Na seqüência as parasitas começaram a entrar em estado de inanição e lentamente foram morrendo, a única causa que os médicos conseguiam apontar é que elas foram acometidas de melancolia profunda.
 
 
A vida nas cidades estava se tornando difícil, tinham dificuldades em obter alimentos, mais indústrias estavam fechando pois o que eles tinham a oferecer àqueles que produziam alimentos tinham pouca ou nenhuma utilidade. A população estava diminuindo, as pessoas estavam se mudando para as zonas rurais.

Muitos vilarejos como Trilha dos Desejos estavam se formando, assim, com esses vilarejos também se constituíam um emaranhado de trilhas que os ligavam.

Aos poucos a vegetação ia tomando conta das construções, muitos galpões e fábricas tinham perdido a sua utilidade e agora não passavam de construções fantasmas, abandonadas.
 
 
Enquanto isso as parasitas que administravam os paradoxos mudaram-se para os seus lugares de trabalho. Estranho, o que elas consideravam como trabalho, o que produziam, para que e a quem serviam... Mais perguntas difíceis de serem respondidas, mas aparentemente o mundo não estava sentindo falta delas, ainda que tudo estivesse confuso e havia dificuldade em se conseguir alimentos nas cidades, aparentemente as pessoas estavam achando caminhos para resolver seus problemas, antes parecia que cada vez que se resolvia um problema, essa solução acabava por gerar uma série de outros problemas, e com isso as parasitas ficavam cada vez mais fortalecidas.

Essas parasitas tinham se mudado para os paradoxos, na expectativa de acharem uma solução para os seus próprios problemas, mas para isso tiveram que deixar suas luxuosas mansões, dado que elas estavam distantes das cidades e continuavam recusando o uso de transporte público.

Tentaram contratar seguranças para cuidar de suas casas, mas não tinham nada a oferecerem a quem fizesse esse trabalho. Pensaram em pagar com cheques, mas esses tinham se transformado em papel em branco, depois tentaram fazer promissórias dizendo que quando o dinheiro voltasse a circular pagariam aqueles que cuidassem de suas casas, mas suas canetas e exemplo da dos capachos, também não escreviam.

Com pesar deixaram suas casa vazias, uma vez que consideravam os paradoxos mais importantes.

Nos paradoxos tentavam insistentemente criar rotinas e burocracias que gerassem algo que as pessoas pudessem adquirir e que posteriormente se transformassem em valores para eles, mas todas as suas tentativas eram infrutíferas, nada nos paradoxos funcionava.

Um dia depois de uma ventania acompanhada de fortes chuvas faltou eletricidade e não mais retornou, assim, tudo nos paradoxos parou efetivamente de funcionar.

Como parasitas tentavam desesperadamente conseguir pessoas que trabalhassem para sanar os defeitos, mas ira inútil, nada tinham a oferecer às pessoas que estavam a procura de coisas úteis para fazer.

Os paradoxos, exceto pelas parasitas, estavam totalmente abandonados, quando não tinham mais nenhum alimento, essas parasitas começaram a se alimentar umas das outras, até que restou uma única, já sem energias, sem nada a oferecer a outras pessoas e temendo deixar o seu paradoxo abandonado, essa última parasita entrou em estado de inanição vindo a falecer.

Ninguém se deu conta do ocorrido, essas parasitas não tinham conhecidos, para elas as pessoas não passavam de mecanismos que tinham por finalidade gerarem lucros, para manterem seus luxos desnecessários.

Tempos depois os paradoxos não passavam de escombros, ninguém sequer queria se aproximar deles.
 
 
Trilha dos Desejos estava se tornando referência entre os vilarejos que se formavam, muitos iam para lá com a finalidade de aprenderem como eles lidavam com a natureza, como era a sua produção de alimentos e como confeccionavam objetos necessários à sua vivência.

As pessoas que lá viviam tinham tido pouco contato com a vida na cidade, muitas vezes diziam que pouco tinham a ensinar àqueles que os procuravam, estavam acostumados a aproveitar o que a natureza tinha a lhes oferecer.

Quando alguma árvore que produzisse algum tipo de alimento brotava naturalmente na terra, eles cuidavam para que ela crescesse, quando necessário a replantavam em algum lugar mais apropriado.

Aprenderam a usar galhos de árvores que caiam para transformá-los em madeira, assim construíam suas casas, móveis...

Sabiam que a melhor formula de conviver era interferir o mínimo possível com o ambiente que os rodeavam. Faziam parte desse ambiente, assim, cabia agir como tal, integrando-se a ele.
 
 
Na escola de Trilha dos Desejos estava na hora do intervalo, as crianças brincavam calmamente no parque que lá existia, trocavam olhares umas com as outras. Muitas vezes um olhar já diz tudo que é necessário.
 
 
As cidades continuavam a se esvaziar, o planeta precisa curar suas feridas.
 
 
Logo não mais chegariam alimentos, os sistemas que mantinham as cidades funcionando estavam entrando em colapso, muitos lugares já não tinham eletricidade, água...

As parasitas que antes diziam serem representantes da população continuavam reclusas em suas mansões, que aos poucos iam perdendo sua ostentação, não haviam mais pessoas fazendo manutenção nelas, começava a surgir infiltrações, as pinturas estavam desgastadas, a vegetação nativa tomava conta dos jardins, piscinas... Muito em breve entrariam nas próprias casas.

Nesse meio tempo elas reivindicavam para si os benefícios que as transformações tinham trazido, e pediam à população que fizessem trabalhos para elas, alegando que assim poderiam continuar a beneficiar aqueles que elas representavam, mas parasitas nunca beneficiam ninguém, nem a elas próprias, não percebem que ao sugar a energia do corpo que as alimentam estão destruindo o corpo que as mantém vivas.

Já em relação aos transtornos provocados pelas mudanças, as parasitas trocavam acusações entre elas próprias, alegando que esses transtornos eram conseqüência da má administração das parasitas opositoras.

Não demorou muito e, a exemplo do que ocorreu nos paradoxos, começou a faltar alimentos. Como outras, essas parasitas nada produziam, viviam sugando a energia de outros, sem alimentos e sem quem trabalhasse para elas, suas mansões estavam imundas e apodrecendo, haviam dejetos espalhados em todos os lados de suas antigas luxuosas casas, assim, começaram a se alimentar de seus próprios dejetos, vindo a apodrecerem com o luxo desnecessário que durante eras subtraíram daqueles que as alimentavam.
 
 
Nos meses que se seguiram ao entardecer começava a cair uma densa garoa que perdurava até o meio da noite, quando o céu limpava e esfriava muito provocando uma geada que matava todas as pragas que haviam na terra, ao amanhecer a luz do sol destoava com o azul do céu, logo nas primeiras horas da manhã a temperatura subia muito, impossibilitando as pessoas de ficarem sob o sol.

Nesse período as pessoas só conseguiam sair de suas casas nas primeiras horas da manhã, quando o sol ainda não estava muito quente, depois disso só era suportável ficar dentro das casas ou na sombra.

A garoa e o frio no final da tarde e à noite também era intenso, levando as pessoas a se afugentarem em seus abrigos.

O planeta estava limpando as suas impurezas, as condições climáticas adversas, ainda que provocasse desconforto, também fortalecia a vida, que se tornava cada vez mais abundante.
 
 
As antigas cidades estavam totalmente desertas, uma densa vegetação se formava nas ruas e já invadia as construções, todos os rios estavam limpos, muitos animais andavam livremente nos espaços antes ocupados pelas pessoas, que agora ocupavam os campos.
 
 
Nos pequenos vilarejos, as pessoas tinham aprendido a produzir só o que era necessário, não havia mais espaços para desperdício e destruição, era preciso conviver com o que a natureza tinha a oferecer, facilitar para que ela curasse as suas feridas.

Ainda assim havia excedente, na natureza a vida se tornara abundante e consequentemente nada faltava, sobrava tempo, assim as pessoas podiam se voltar a outras ocupações, ao cuidarem do ambiente que as rodeava automaticamente estavam cuidando de si próprias.

Havia muito a aprender, no mundo antigo as pessoas desperdiçavam seu tempo aprendendo a criar coisas, tinham a falas impressão de que criando coisas, isso acarretaria mais conforto a elas e, nesse processo não perceberam que ao criarem coisas também estavam se coisificando, assim ao invés de essas coisas servirem ao homem, era o homem que estava servindo a essas coisas.

Aos poucos no novo mundo estava-se percebendo que nem as coisas serviam ao homem, e nem o homem servia as coisas, todos, sejam os seres vivos ou inanimados, somos parte de um mesmo mundo. Um Universo, infinito, vivo, pulsante.
 
 
Gradualmente as adversidades climáticas foram cedendo, a garoa, o frio e o calor já não eram tão intensos, as estações do ano começariam a se definir a primavera estava se avizinhando.
Já não garoava mais todos os dias, uma densa vegetação se espalhava rapidamente, as águas dos rios e dos oceanos estavam cristalinas, praticamente não se percebia mais os vestígios da industrialização do antigo mundo.

Com as conseqüências das adversidades climáticas ficou evidenciado que era desnecessário alterar a natureza para subtrair dela o que era preciso para a sobrevivência, percebeu-se ser muito mais sábio se integrar a ela e partilhar o que ela tinha a oferecer, nessa nova forma de produzir pouco havia a se fazer, ainda assim quase tudo era excedente.

Trilha dos Desejos tinha se firmado como um foco de conhecimentos sobre como lidar com a natureza, lá muito antes de as grandes cidades ao redor existirem, não se distinguiam as diversas espécies, a vida era integrada ao ambiente.

Na escola, estava na hora do intervalo, as crianças brincavam calmamente e em silêncio no parque enquanto olhavam as poucas pessoas que passavam pela estreita rua de terra batida coberta por pedras.

Uma criança que estava com adultos, que anteriormente tinha vivido em uma das cidades próxima a Trilha dos Desejos e que haviam se mudado para um dos vilarejos que haviam se formado, olhava fixamente para as outras da escola que brincavam nos balanços, sentiu-se convidada pelos demais, separou-se dos adultos e ocupou um dos brinquedos do parque da escola.
 
 
No mundo antigo havia muitos ruídos, parte significativa deles era reflexo da industrialização que foi criada, esses ruídos faziam com que as pessoas falassem cada vez mais alto, aumentando ainda mais o nível de ruídos, ainda a cada dia criavam mais produtos industrializados para que houvesse mais comunicação e isso aumentava ainda mais os ruídos.

A maior parte dos animais se afugentavam para locais cada vez mais distantes, em parte por não poderem suportar tantos ruídos, curiosamente parece que esses animais conseguem se comunicar facilmente com o seu próprio ambiente.

Já no mundo que os homens tinham criado a comunicação cada vez mais entrava em extinção, primeiro começaram a reduzir as falas, substituindo-as por ruídos, muitas vazes resultado da aglutinação das palavras, depois as palavras escritas também começaram a ser aglutinadas.

Com a tecnologia criada todos falavam tanto e ao mesmo tempo e assim praticamente já não se sabia mais o que era ouvir.

A natureza tem muito a nos falar, mas a sua fala é acompanhada de uma pausa, expressa em um instante de silêncio, essa pausa tem a finalidade de permitir àquele que fala e àquele que ouve entender o significado da palavra dita.

Quanto todos falam muito e ao mesmo tempo, sem essa pausa, tudo se torna uma sucessão de ruídos desconexos, e a comunicação se torna falha e igualmente desconexa, dessa forma nenhuma tecnologia que se possa criar irá propiciar a comunicação.

Na maior parte das vezes, a simples presença, um olhar, já dizem tudo que é necessário.
 
 
A única escola de Trilha dos Desejos era diferente das existentes nas demais cidades, lá só havia o que chamavam de ensino fundamental, entre as diferenças, não havia divisão em salas, o espaço fechado era um grande galpão, onde todas as crianças ficavam juntas.

A escola ocupava o maior terreno existente no vilarejo, ao redor do galpão havia um gramado, sempre muito bem cuidado, e algumas árvores espalhadas ao acaso sobre ele, não havia um muro ou uma cerca delimitando, assim a escola se misturava com as casas vizinhas. Ainda no gramado alguns brinquedos de uso coletivo formavam um pequeno parque.

Lá não havia registros de matrículas, mas todos que nasceram no vilarejo começavam a freqüentá-la ainda muito jovens, como não havia matriculas, também não tinha reprovações e também não tinha formaturas.

Aqueles que lá entravam, continuavam freqüentando as suas atividades indefinidamente.

A formatura lá não tinha sentido, afinal somos seres em formação, sempre.

Aqueles que vinham de outros lugares aprenderem o modo de produção de Trilha dos Desejos eram encaminhados à escola, ainda não tinham percebido, mas não eram os agricultores ou os adultos que os estavam ensinando. Afinal, “ninguém ensina nada a ninguém, o homem aprende com o contato com o seu semelhante”(Paulo Freire).

Aos poucos se aprendia que semelhantes éramos todos, sejam os seres vivos ou inanimados.
 
 
Na escola de Trilha dos Desejos não haviam salas, o único espaço fechado era composto por um grande galpão, suas paredes tinham por única finalidade proteger aqueles que a freqüentavam das intempéries do tempo, as portas e janelas estavam sempre destravadas.

Aqueles que a conheciam continuavam a freqüentá-la indefinidamente, mesmo que fosse para visitá-la.

Como não tinha muros, os seus limites se confundiam com os limites de outras construções existentes no vilarejo, curiosamente as construções mais antigas de Trilha dos Desejos também não tinham seus limites definidos. Esses limites só começaram a surgir quando os hotéis e comerciantes de outros lugares começaram a explorar as belezas do vilarejo.

Originalmente Trilha dos Desejos se constituiu como um ponto de encontro para atender as necessidades daqueles que cuidavam das terras ao redor do vilarejo e a escola tinha sido a sua primeira construção.

Os hotéis e os pontos de comércio constituídos por aqueles que visavam explorar o lugar foram abandonados quando os automóveis deixaram de funcionar e o dinheiro deixou de existir e, aos poucos foram sendo ocupados por aqueles que se encantaram pelo lugar e para lá se mudaram, aos poucos os muros e divisões dessas construções foram substituídos pelas árvores e vegetação, restando apenas vestígios desses, assim essas construções mais recentes começaram a ficar parecidas com a escola e as mais antigas lá existentes.

Aqueles que vinham a Trilha dos Desejos aprender o meio de ser dos que lá habitavam internalizavam as tênues diferenças de seus lugares de origem, sem que se dessem conta, os limites entre o vilarejo e as cidades vizinhas começaram a se esvanecer e, igualmente seus muros e divisões começaram a ceder, a propriedade já não tinha qualquer sentido.

No continente, principalmente nas cidades maiores ainda havia aqueles que se encontravam desorientados, mas brevemente até essa divisão em continentes deixaria de ter qualquer sentido.

Há milhões de anos atrás o que conhecemos e desconhecemos fazia parte de uma pequena célula compacta, densa e que continha toda a energia do Universo, um dia esse Universo se expandiu, mas nunca deixaremos de ser partes desse todo, de um Universo, infinito, vivo, pulsante.

4 comentários:

  1. Lindo Conto, George!
    Muito bem escrito e interessante, sobretudo pelas abordagem de cariz social e de intervenção.
    Termina a dizer que somos partes de um Universo, infinito, vivo, pulsante.
    Isto alerta para a nossa responsabilidade, e a importância de nossos actos para o Universo.
    A mudança começa em nós.
    Então, que façamos a diferença de forma positiva!
    Parabéns pelo excelente trabalho!
    Espero em breve, poder apreciar mais um conto.
    Adorei, lindo demais!

    Um beijo em tua alma.

    Marion

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  2. Muito bom o conto, bastante original e muito bem escrito, parabéns e tudo de bom.

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  3. Olá George(se me permites chamar pelo nome).
    Parabéns pelo seu conto, sinto que será a nossa futura realidade.
    Trilha dos desejos é como uma colônia espiritual, sua descrição me remeteu a lugares que de vez em quando sonho.
    Adorei as claras e objetivas explicações sobre "dias úteis" concordo plenamente com tudo que foi falado.
    Nestes dias conturbados que vivemos, não temos mais tempo para nada e principalmente para olharmos para dentro de nós. Não damos valor para a Natureza, acabando com tudo, com a grande desculpa que precisamos para a nossa sobrevivência.
    Voltando para o texto, achei fantásticas as descrições das três personalidades das pessoas e principalmente da personalidade dos parasitas, muito atual, é o que mais vemos no nosso dia a dia.
    E fico imaginando todo impacto que a humanidade terá se realmente acontecer a falência da indústria automobilistica e a desvalorização do dinheiro, aqueles que não fizerem sua transformação interior, perecerão e muito com conseqüências que você descreveu brilhantemente.
    Sinceramente, este conto descreve em detalhes toda a nossa realidade, mas, Graças a Deus nos mostra o maravilhoso futuro que nos espera.
    Acredito sim, que ainda existem pessoas de Luz, Seres que estão trabalhando ao nosso favor, para juntos podermos transcender nesta Era de Paz e Amor.
    Parabéns! Adorei seu conto, muito atual e espiritual.
    Desejo muita Luz e grande inspiração.
    Lú.

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  4. Olá George!
    Adorei seu novo conto!
    Parece-me mesmo uma visão do futuro, e tomara tenhamos muitas pessoas decididas a provocar essa mudança tão necessária em nossas vidas.
    Coragem de voltar às origens, e redescobrir o verdadeiro valor da vida, o respeito à natureza, e o respeito a si próprio, o que como ressaltou, acaba sendo o mesmo. Tomar consciência dos atos que muitas vezes nos levam a ter perfil de parasitas, e acordar a tempo de mudar e reconhecer que somos parte desse todo chamado Universo.
    Parabéns!

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