domingo, 20 de fevereiro de 2011

Além da Janela. - Parte I






Enquanto permanecia sentada no canto da sala, no pequeno sofá que ficava de frente à janela, com vistas ao jardim, o movimento monótono da festa que ocorria na casa pouco me chamava a atenção, a música e os ruídos produzidos pelos demais produzia-me um leve sono, um estado intermediário entre o estar acordada e o mundo dos sonhos.
 
Estava em devaneio, como se estivesse vivendo em outro tempo, sabia que logo me chamariam, iriam querer ver-me dançar nessa minha passagem de uma adolescente para a vida adulta, mas tudo que queria era continuar divagando em meus pensamentos, como se o mundo atrás do sofá em que estava confortavelmente instalada não mais existisse.
 
Não me recordo da continuidade dessa minha festa, que ao olhar do conceito daquelas que tinham minha idade estava entre os eventos mais importantes de uma vida, quando tudo o que queria era continuar apreciando o mundo que se desenrolava além da janela.
 
 
 
Esse dia vinha sendo planejado há pelo menos dois anos, diferente de outras famílias em que os mais velhos escolhiam aqueles com quem passaríamos os demais dias de nossa vida, na minha havia a possibilidade de que eu escolhesse alguém, ou ainda que sequer fizesse uma escolha, por outro lado, ainda que tivesse uma posição ativa, diferente das demais que conhecia, cabia saber lidar com as expectativas daqueles que até então participaram de minha formação.
 
É curioso como a liberdade sempre anda de mãos dadas com a responsabilidade, as outras pessoas de idade semelhante à minha que conhecia, nenhuma delas tiveram a liberdade de passar por essa escolha, seriam felizes, tristes, teriam uma boa vida ou uma vida de sofrimentos, mas em momento nenhum se sentiriam responsáveis pelo que iria ocorrer em suas próprias vidas, uma vez que essa caberia àqueles que as estavam determinando.
 
Efetivamente não me sentia preparada para essa escolha e, quando me chamaram para a dança tão esperada pelos demais que participavam da festa, meus músculos não respondiam, assim permaneci estagnada frente à janela, apreciando o jardim que há muito conhecia.
 
Percebia e ouvia os demais à volta, dizendo que estava desmaiada, que era necessário a presença de um médico, queria dizer que tudo estava bem, mas meu corpo não obedecia.
 
 
 
Quando acordei há muito os convidados já tinham ido embora, já era manhã e a casa voltara a funcionar segundo suas rotinas habituais, quando me trouxeram o café da manhã.
 
É curioso que mesmo quando aparentemente somos acometidos por alguma doença, ainda temos ganho, mesmo no dia posterior ao meu aniversário, continuava sendo o centro das atenções, aqueles que pretendiam uma dança na noite anterior, a qual simbolizava o início de um comprometimento vieram me visitar, mas preferi que falassem que ainda não estava bem e por enquanto permaneceria em meu quarto.
 
À noite decidi que iria conversar com meus pais e explicar que minha escolha não ia corresponder à expectativa deles.
 
Enquanto tomava o meu café a lembrança mais nítida que tinha da festa da noite anterior era a presença do estranho que tinha andado ao redor da casa e depois pelo jardim com grandes papeis nas mãos, nos quais fazia desenhos e algumas anotações, era a mesma pessoa que já há algum tempo via nos sonhos, quando ficava descansando no mesmo sofá da noite anterior, em frente à grande janela com vistas ao jardim.
 
 
 
Foi um grande desconforto conversar com meus pais sobre o que pretendia, felizmente eles denotaram me conhecer mais do que eu imaginava, e assim facilitaram muito o dialogo.
 
Eles perceberam que pelo menos nesse momento eu não tinha interesse em me casar e constituir família e, também nesse novo continente não havia muita escolha para uma mulher solteira da classe à qual pertencíamos, exceto é claro se me dedicasse à vida religiosa, o que me atraia ainda menos que o casamento.
 
Assim, como queria estudar e conhecer outras coisas, a única opção seria me mudar para o mundo antigo, no qual outras com escolhas semelhantes à minha não eram tão cerceadas pelos olhos dos preconceitos.
 
Estávamos na primavera da primeira década desse novo século, o mundo passava por um período de paz, mas pairava a sensação de que grandes transformações estavam por ocorrer.
 
Exceto pelos mais próximos e daqueles que me cuidaram até então, só me sentia confusa pela presença dessa pessoa que na noite de minha festa de aniversário tinha visto andando em redor da casa e depois pelo jardim.
 
Até então tinha tido a impressão de que era só um personagem de meus sonhos, mas na noite em que ocorreu a festa ele tinha parecido ser muito real, tive a certeza de que quando me senti imobilizada, divagando no sofá, ele tinha me acenado do outro lado da janela, quando estava no jardim, fazendo os seus desenhos.
 
 
 
Preferi não conhecer aqueles que na festa de meu aniversário pretendiam se aproximar de mim, ainda que parecesse uma indelicadeza e, de certa forma seria constrangedor aos meus pais, não tinha motivos para isso, afinal até então eram pessoas que só tinha visto de longe e como não haveria nenhum compromisso não via necessidade de vir a conhecê-los.
 
Embarcaria em direção ao velho continente no primeiro navio que tivesse disponibilidade, como a viagem era longa teria tempo para decidir como seria a continuidade de meus estudos, artes em geral me atraia muito.
 
Com a casa vazia sentia-me à vontade para ocupar o lugar que mais me agradava, o pequeno sofá da sala, em frente à grande janela com vistas ao jardim, onde podia passar o dia lendo.
 
Aos poucos meus olhos começaram a ficar pesados, a casa permanecia em total silêncio, sentia que logo viriam os devaneios.
 
 
 
Fui desperta pelo rangido da porta da sala e senti que alguém entrara, conseguia ouvir os passos no piso de madeira do visitante, mas meus olhos continuavam pesados e ainda me sentia em estado de sonolência.
 
O vidro da sala não estava limpo como de costume, assim consegui ver refletido uma pessoa que estava de costas, observando a sala, temi que fosse um de meus pretendentes, mas não percebi quando ele foi atendido, exceto por nós, a casa parecia estar vazia.
 
Me sentia imobilizada no sofá e preferia ficar assim, ainda não me sentia disposta a explicar para outras pessoas a minha decisão.
 
Quando o sono estava voltando vi que na mesinha em frente ao sofá, além do livro que estava lendo, estavam os grandes papéis com desenhos e anotações do rapaz que tinha visto andando pelo jardim no dia de meu aniversário.
 
 
 
Mais tarde quando despertei o movimento da casa tinha voltado ao normal, os vidros da janela estavam transparentes como era habitual, mas não percebi o momento em que ele foi limpo.
 
Junto ao meu livro na mesinha em frente ao sofá tinha uma folha grande de papel enrolada, semelhante àquela que estava com o rapaz que no meu aniversário estava no jardim, não resisti à curiosidade e subi ao meu quarto com meu livro e a folha, queria ver o seu conteúdo sem a interferência de outras pessoas.
 
Era o desenho da casa com suas medidas, não conhecia desenhos semelhantes, mas não era como uma pintura ou algum tipo de arte, ainda que reconhecesse a casa, no desenho ela parecia envelhecida, os jardins sempre bem cuidados, no desenho estava tomado pelo mato, parte do telhado estava caído.
 
O mais curioso no desenho eram os arredores da casa, a rua e a calçada de pedra, no desenho tinha um piso liso bastante diferente do que estava acostumada a caminhar, o grande Ipê ao lado do portão de entrada não constava no desenho, em seu lugar estava um tipo de tronco, mas era artificial com várias pessoas ao seu lado, como se estivessem esperando por alguma coisa.
 
As construções em volta eram muito estranhas altas e repletas de janelas, as casas com seus jardins que conhecia desde a minha infância tinham sido substituídas por essas construções estranhas, mas o que tinha me deixado mais perplexa era a aparência envelhecida, em ruínas que se encontrava o único lugar que até então tinha habitado, porque alguém faria um desenho dessa forma, queria que me explicassem o significado desse desenho, mas não sentia confiança em falar sobre com ninguém, nem mesmo meus pais.
 
 
 
Os dias que estavam por vir seriam monótonos, logo iria partir, recomeçar a vida, ainda que a idéia me deixasse excitada, uma estranha sensação dominava meus pensamentos, aquele papel me passava a impressão de que meus devaneios no sofá em frente à grande janela eram mais do que sonhos.
 
Por um lado me sentia deslocada parecia que o lugar em que vivia não tinha sido moldado para a minha presença, mas ainda que a idéia da viagem, da mudança, me atraíssem, tinha a impressão de que nesse novo lugar, possivelmente por outras questões também me sentiria deslocada.
 
Começava a perceber que meus sentimentos não estavam relacionados com os locais, talvez a época fosse mais significativa.
 
Nos dias que se seguiram não teria muito o que fazer, ainda que sentisse um incomodo sabia que deveria atender os desejos daqueles que me eram próximos e conversar com eles, ainda, achar explicações para as decisões que estava tomando.
 
Decidi que mais tarde iria falar com meu pai sobre o papel que tinha achado junto à mesinha que ficava próxima à janela da sala, achava que ele saberia do que se tratava, mas quando fui procurá-lo não o encontrei em lugar nenhum, simplesmente tinha desaparecido, fiquei confusa, tinha certeza de que não se tratava de meus devaneios, sabia que o tinha levado ao meu quarto e deixado sob a cama.
 
 
 
Ao concluir a Universidade tive a impressão de que uma parte significativamente complexa de minha vida tinha ficado para traz. O curso de arquitetura tinha sido muito exigente para o pouco tempo de que dispunha, uma vez que em seu decorrer estava sempre procurando outras atividades para poder manter o curso e a mim mesmo.
 
Acreditava que uma vez formado a situação melhoraria e os trabalhos seriam gratificantes, a prática portanto, aos poucos denotou-se monótona, não era por isso que esperava.
 
Pensava em construir para o mundo, mas aos poucos fui percebendo que estava acabando por destruir construções que em seu tempo eram magníficas, que agora corroídas pelo tempo, seus donos se apressavam por colocá-las ao chão antes que a comunidade se desse conta de que essas casas antigas deveriam fazer parte da história da cidade.
 
No princípio me dedicava sentindo satisfação pelos projetos que aos poucos iam se constituindo, aos poucos esses foram se tornando desinteressantes, sempre muito parecidos, muito vidro, muito concreto, unidades muito compactas e igualmente muito lucrativas para umas poucas parcelas da sociedade.
 
Assim, enquanto a monotonia do trabalho me despersonalizava, também sem personalidade ficava as grandes esquinas nas quais os grandes prédios que projetava se erguiam, em espaços que antes eram ocupadas por verdadeiras preciosidades históricas.
 
Esse meu último trabalho me incomodava tanto, que após concluir os esboços da construção que estava em ruínas, elas desapareceram, acho que as tinha esquecido em uma mesinha de madeira, tomada por cupins que ficava naquilo que deveria ser a sala da casa, em frente a uma grande janela envidraçada com vistas para onde seria o seu jardim, onde hoje estava totalmente tomado pelo mato.
 
Quando retornei para procurar meus esboços tinham desaparecido, só alguns dias depois os reencontrei, estavam em um dos quartos da casa, no piso superior, mas tinha certeza de que não os tinha deixado lá, até então não tinha subido, pois a escada de madeira estava totalmente podre, devido às infiltrações do telhado que estava parcialmente destruído e as goteiras afetavam principalmente a grande escada, que em seu tempo devia ter sido majestosa.
 
Só agora com alguns andaimes montados era possível acessar o piso superior, sentia-me culpado e estava protelando esse trabalho, essa era mais uma casa que deveria ser recuperada e transformada em museu ou coisa parecida, não demolida para atender interesses imobiliários e parasitas ávidas interessadas em mais impostos.
 
 
 
Parasitas!!! Mas o que essas pragas estão fazendo por aqui? Pensei que elas tinham sido extirpadas de nossa existência no outro conto...
 
O que?
 
Ah! Entendi.
 
O evento que se iniciou em Trilha dos Desejos só irá ocorrer em um futuro breve.
 
Que susto, pensei que essas pragas estavam retornando.
 
 
 
Esse último trabalho que me pediram estava me incomodando particularmente, não se a tratava apenas de uma questão social ou histórica, me formei acreditando que a arquitetura era um tipo de arte, mas desde que comecei a praticá-la tinha a nítida impressão de que só servia a interesses econômicos, evidentemente isso me incomodava, mas dessa vez o incomodo era diferente.
 
No momento em que abri o portão de ferro enferrujado pelo tempo, senti que essa não era só mais uma casa antiga abandonada, quando fazia os esboços da parte externa, onde devia ser o jardim, hoje tomado pelo mato, me sentia como se estivesse sendo observado, algumas vezes tive a impressão de ouvir música no interior da casa, não de um rádio ou qualquer equipamento eletrônico, mas como se estivesse ocorrendo uma festa na casa e, nitidamente a música, estilo clássica, vinha de instrumentos musicais.
 
Mais tarde quando fazia os esboços do interior da casa às vezes tinha a impressão de que os objetos nem sempre se encontravam no mesmo lugar, o mais estranho foi encontrar meus esboços em um dos quartos, efetivamente não tinha subido no piso superior, antes de os andaimes estarem montados, a escada não parecia que iria suportar o peso de uma pessoa, mas por outro lado não havia nenhum indício de que alguém estivesse ocupando o local.
 
Também não compreendia essa minha necessidade de fazer esses esboços, logo tudo seria demolido, para dar lugar a mais um prédio desprovido de personalidade, que iria se transformar em escritórios ou coisa parecida.
 
No princípio tinha a impressão de que desejava manter viva de alguma forma a construção que tanto havia me fascinado, mas não era apenas isso, efetivamente não queria dar continuidade a esse projeto, por maior que fosse a minha necessidade financeira, ainda que em ruínas, parece que a casa ainda transbordava vida, estava protelando, atrasando a demolição e o início da construção, agora propositalmente.
 
Sentia haver algo a ser desvendado.
 
 
 
No dia seguinte não me sentia bem, tinha acordado com dor de cabeça, assim resolvi tomar um analgésico e voltar para a cama, se à tarde me sentisse melhor, compensaria trabalhando até mais tarde.
 
Fui dormir, mas a idéia de ter achado meus esboços em um dos quartos continuou a me perseguir, não demorou para o analgésico fizesse efeito.
 
Ao acordar percebi que não estava em meu quarto e sim na casa que em breve seria demolida, mas curiosamente não estava em ruínas era esplendorosa, seus móveis e utensílios pareciam vir de um museu, só que estavam impecáveis, parecia que tinham acabado de serem adquiridos.
 
Quando me percebi estava sentado na cama, justamente do quarto em que antes tinha encontrado meus esboços e como antes eles estavam ali mesmo, ainda enrolados em um canto da cama.
 
Levantei-me e fui explorar a casa, ainda cheirava a uma construção nova, o odor de madeira estava presente em todos os espaços, inclusive a escada antes apodrecida pelas goteiras que caiam sobre ela estava impecável.
 
Ainda que em silêncio sentia a presença de alguém em seu interior, em um pequeno sofá que ficava à frente da grande janela envidraçada da sala podia perceber os longos cabelos de uma jovem que estava de costas em relação à posição em que a via, aparentemente ela estava lendo um livro.
 
À noite, em meu quarto, acordei transpirando, ainda que estivesse frio, me sentia como se estivesse febril, percebi que tinha sido um sonho, mas extremamente real, ainda estava sentindo o cheiro de madeira nova da qual a casa um dia tinha sido construída.
 
 
Já não havia mais como trabalhar nesse dia, estava escuro e a eletricidade do local onde iria trabalhar nos próximos dias ainda não tinha sido ligada, resolvi tomar um banho e sair para comer alguma coisa, tinha passado o dia inteiro na cama, sem que me desse conta.
 
As imagens do sonho ficaram presentes em minha memória por toda a noite que se seguiu.
 
Não podia mais continuar assim, tinha que achar uma justificativa para os atrasos no início dos trabalhos, caso contrário seria dispensado dessa tarefa.
 
 
 
Acordei assim que amanheceu, pensava em compensar o dia anterior, após um café rápido me dirigi à casa, no caminho já pensava em chamar aqueles que iriam começar a demolição, já não podia mais protelar o início dos trabalhos.
 
Ao chegar percebi que tinha esquecido as chaves, e o portão estava trancado com um cadeado, mas resolvi dar uma última olhada na casa, não seria difícil pular o muro, que não era alto, decidi que ainda pela manhã chamaria as equipes de demolição.
 
Pensei em forçar a porta da entrada, não seria difícil, ademais na seqüência ela seria derrubada, mas enquanto caminhava pelo jardim ao olhar a grande janela envidraçada da sala, pude ver a jovem de meu sonho da noite anterior, sentada no sofá, calmamente lendo o seu livro.
 
A visão era tão real que fiquei em dúvida se mais uma vez estava sonhando.
 
Abrir a porta tinha sido mais difícil do que imaginava, lembro de ter ficado um tempo significativo forçando-a, até que finalmente cedeu.
 
A casa estava vazia como sempre a tinha visto, não denotava qualquer movimento, mas tinha a impressão de que mais alguém estava dentro dela e, novamente a impressão de que as coisas não ocupavam os mesmos lugares.
 
Além disso algo mais estava diferente, mas demorei para me dar conta, até que percebi algum movimento no quarto em que me vi sentado na cama em meu sonho, resolvi subir e ver o que era, foi ai que percebi o que estava diferente, os andaimes tinham desaparecido.
 
Indignado, resolvi subir a escada, mesmo com o perigo que ela representava.
 
Quando pisei o primeiro degrau percebi que não estava podre como imaginava, e a cada degrau que subia parecia que a casa se transformava regenerando-se, após o primeiro lance já sentia o cheiro de madeira nova, o mesmo que estava presente em meu sonho.
 
Como no sonho, mais uma vez a casa estava impecável.
 
Ao chegar à porta do quarto em que percebi o movimento, notei que estava trancada, era composta por uma madeira pesada, antiga, mas aqui ainda cheirava a nova, virei a maçaneta para abri-la, mas estava trancada e seria inútil tentar forçá-la, era muito resistente.
 
Cheguei a ficar em dúvida, se mais uma vez não estava sonhando.
 
 
 
Sentada em frente ao espelho pacientemente Valkíria desembaraçava os cabelos, podia ficar horas penteando-os e não se cansaria, sentia grande prazer nessa atividade. Não se importava com maquiagens e outros enfeites, mas os longos cabelos proporcionavam muito prazer.
 
A casa estava em total silêncio, todos ainda dormiam, o dia começava a amanhecer quando começaram os primeiro movimentos na cozinha, o café da manhã estava sendo preparado.
 
A partir desse dia sentia que transformações ocorreriam em sua vida, já tinham transcorrido alguns dias depois de sua festa de aniversário, que tinha frustrado alguns convidados e outros que conviviam à sua volta, mas o incidente não a entristeceu, ao contrário sentia-se satisfeita, a vida que transcorreria se após a festa concretizasse algum relacionamento não lhe trazia qualquer entusiasmo.
 
Com relutância parou de se distrair com os cabelos e pensou em ir tomar o seu café, mas seria mais um dia em que não ia sair de casa, ainda não sentia disposição para se encontrar com as colegas e conhecidos, ainda não se sentia preparada para dar satisfação às pessoas.
 
Quando resolveu sair do quarto se sentiu enjoada e perplexa com a visão que teve da casa, tudo estava transformado, a casa estava envelhecida e totalmente deserta, sentiu-se paralisada, não podia se mexer.
 
 
 
Depois que todos da casa tinham tomado o seu café matinal, o pai de Valkíria pediu que a chamassem, estranhou que ela não tivesse feito companhia como era seu costume, a mãe ao chegar ao quarto encontrou-a dormindo profundamente e preferiu deixá-la dormindo até que acordasse sozinha.
 
Antes de sair o pai também foi olhá-la, mas também preferiu não acordá-la, nitidamente estava sonhando. Foi embora pensando no que a filha estaria sonhando.
 
Quando se levantou Valkíria percebeu que já era tarde para tomar seu café matinal, sentiu-se irritada, não gostava de acordar tarde e não acompanhar os demais, após conversar um pouco com a mãe que quis certificar-se de que tudo estava bem, foi à sala ocupar o sofá e de seu livro que já estava no final.
 
Sentia-se empertigada com o sonho que tivera, tinha sido muito real e a certeza de que tinha significados que ainda não conseguia identificar, mas acreditava que se existe alguma linha que divide o mundo dos sonhos e o mundo que chamam de real, essa seria uma linha muito tênue, infelizmente esse era um assunto sobre o qual não tinha ninguém com quem conversar, tentara algumas vezes com as colegas de escola, mas só conseguira respostas banais.
 
Quando começou a sua leitura, mais uma vez percebeu o estranho que andava pelo jardim, dessa vez ele estava em frente ao portão, olhando para o jardim da casa, teve a impressão de que ele estava querendo entrar na casa, mas estava com dificuldades, achou estranho, pois o portão não tinha nenhum tipo de chave ou cadeado, e sempre ficava aberto.
 
Sentiu vontade de ir à frente da casa e resolver sua curiosidade em relação ao estranho, mas o temor de encontrar algum conhecido, em especial um de seus pretendentes a incomodava mais e preferiu se recolher ao seu quarto.
 
Decidiu que mais tarde falaria com a mãe sobre o sonho, mas não tinha esperança de que conseguisse maior atenção, ou que a ajudasse a construir algum significado.
 
Ficou pensando sobre os sonhos e aquele em especial, imaginava que eles tinham mais importância do que as pessoas normalmente lhe dedicam, acreditava que esse era um tema que merecia maiores estudos, pensou se algum dia haveria pessoas que ajudassem os demais a criar significados para os sonhos, sem atribuir a eles valores morais ou conceitos pré-estabelecidos, logo permeados por pré-conceitos.
 
 
 
A conversa com a mãe não transcorreu como imaginava, se por um lado não ajudou Valkíria a construir significados como imaginava, por outro conseguiu atenção, mas não como imaginava, a mãe não pensava que os sonhos pudessem ter algum significado, mas a deixou preocupada, mais tarde, em comum acordo com o pai resolveram chamar o médico novamente.
 
Inicialmente Valkíria achava que o sonho não era assunto para o médico, mas diante das preocupações dos pais não questionou, mas ficou pensando que as pessoas às vezes se preocupam demais, achava mais importante que se ocupassem, assim restaria menos tempo para as preocupações.
 
Dessa vez o contato com o médico foi diferente, ele não quis a presença dos pais e, diferente do que imaginava ele ouviu atentamente os detalhes do sonho, ainda no transcorrer da conversa fez perguntas sobre o mesmo de coisas que não tinha pensado, como ela estava vestida no sonho, se conseguia perceber de alguma forma em que época transcorrera, se havia alguém mais no sonho além dela, o que sentia em relação ao sonho, entre outras.
 
No princípio não conseguia responder às perguntas, mas na medida em que pensava nelas conseguia lembrar detalhes do sonho que até então não tinha se dado conta, ainda à medida que conseguia encontrar respostas, parecia que os significados dele iam se constituindo.
 
Valkíria pensou, naquele momento estava aprendendo uma nova forma de se conhecer.
 
O médico concluiu dizendo que não poderia ajudá-la muito, mas tinha conhecimento de que para o local onde ela estava mudando, estava se formando um novo grupo de médicos que davam muita importância aos sonhos e a muitos aspectos que as pessoas sequer se dão conta que fazem parte delas.
 
Disse que explicaria isso aos pais dela e deixaria o endereço de um desses médicos que ele conhecia, também fez questão de frisar que a conversa que tiveram ficariam só entre eles, que seus pais não ficariam sabendo sobre o que falaram sobre o sonho dela.
 
Pela primeira vez Valkíria tinha encontrado alguém que como ela achava que os sonhos tinham importância, e que era possível construir significados a partir deles.
 
Após essa breve conversa sentiu um bem estar como há muito não sentia e, daí em diante deixou de se incomodar com o que as colegas ou seus possíveis pretendentes pensavam ou cobravam dela.
 
 
 
Nos dias que se seguiram Valkíria retomou a sua vida normal, voltou aos seus passeios habituais, retomou sua vida social, em especial gostava de caminhar pelas ruas e por uma enorme praça que havia nas proximidades.
 
Ainda que já houvesse concluído os seus estudos, pelo menos do ponto de vista da sociedade, nunca deixara de freqüentar a escola, às vezes ajudando crianças mais novas que começavam a aprender a ler.
 
E sempre se questionava, e também aos demais, o por que de tão poucos terem acesso à escola, mas gostava especialmente de ficar na biblioteca, da qual pegava os livros que gostava de ficar lendo no sofá em frente à grande janela da sala de sua casa.
 
Como não se incomodava mais com os comentários, em muito pouco tempo as perguntas cessaram, e a cena que tinha ocorrido na festa de seu aniversário, tornou-se passado.
 
 
 
Enquanto isso o mundo passava por intensas transformações, ainda que falassem que essas mudanças estavam além da compreensão das mulheres e que essas só interessavam ao mundo masculino, Valkíria se sentia indignada pela perseguição desenfreada de um governador obcecado que insistia que perseguir alguns pobres maltrapilhos que tentavam se fixar em uma porção de terra seca, a qual não era de nenhum interesse das classes que se diziam dominantes no país.
 
Seu pai tinha sido convocado a participar dessa perseguição insana, o que em um breve futuro iria mudar de sobremaneira a forma que sua família vivia.
 
Ainda que a vergonha chamada escravidão, legalmente houvesse acabado muitos ainda viviam sob o jugo dos donos da terra, inclusive aqueles que vieram do mundo antigo para aqui se fixar.
 
Também o mundo antigo passava por transformações que acabariam por gerar uma guerra sem precedentes.
 
O pai de Valkíria comandava uma parte das tropas já na segunda tentativa de dominar aqueles que tentavam construir a própria vida em um sertão árido, em uma investida mal planejada por não ter idéia das dimensões do que estava ocorrendo foi derrotado e a partir daí Valkíria e a mãe não mais tiveram notícias dele.
 
A perda do pai provocou transformações em sua vida social, o que aliado às mudanças que vinham ocorrendo no país e no mundo frustrou a perspectiva de ir viver em outro país.
 
 
 
Ainda abalada com a ausência de notícias do pai, Valkíria tinha até perdido seu interesse pelos livros e, nesse momento já tinha consciência de que sua viagem ao exterior dificilmente iria se realizar.
 
A alegria até então presente na casa, se desvanecera, cedendo seu lugar a um sentimento permeado pela melancolia e ansiedade, os empregados, Valkíria e a mãe desconheciam os rumos pelos quais suas vidas iriam trilhar.
 
Ainda que cansada e sonolenta, Valkíria não conseguia dormir, quando sentada no sofá da sala, folheando um livro, sem conseguir decifrar as palavras, viu o estranho que andava pelo jardim descendo a escada que dava acesso aos quartos.
 
Sentiu-se paralisada e não sabia precisar quanto tempo assim permaneceu, mais tarde descobriu que algumas horas pareciam ter desaparecido de sua história de vida.
 
Era o começo de uma tarde quente quando sentou-se no sofá para tentar ler um pouco, mas só à noite a encontraram caída no chão, quando deu por si, o médico já há muito conhecido estava lhe dando algum medicamento e todos da casa se encontravam a seu redor.
 
 
 
A pedido do médico ficou em casa por alguns dias e sempre com alguém por perto, mas Valkíria não se sentia bem nessa situação o excesso de cuidados a incomodava, mas concordou em conversar com o médico com uma freqüência maior, nos meses que se seguiram o via pelo menos duas vezes por semana.
 
Com essa proximidade maior o médico começou a perceber alguns sintomas que para ele não faziam sentido, eventualmente Valkíria sentia febre, mas não apresentava nenhuma característica que indicasse algum resfriado ou algum tipo de infecção, curiosamente após falar sobre seus sonhos ou incômodos a febre desaparecia.
 
Até então não tinha dado maior ênfase ao sonho que ela disse ter tido acordada, com o estranho, que em outros já o tinha visto no jardim ou caminhando em frente à casa, achava que era algum tipo de fantasia e, na realidade tratava-se mesmo de um sonho.
 
Até que na última consulta presenciou Valkíria em algum tipo de transe, vindo a ficar paralisada na frente dele, durante a consulta, ela via e falava como se estivesse em sua casa, mas em outro tempo e, descrevia a casa como se estivesse em ruínas.
 
Definitivamente o que Valkíria apresentava estava além de seus conhecimentos, algumas chegou a pensar que ela estava perdendo a sanidade, mas seu quadro clínico em nada se assemelhava com outros dos quais tinha conhecimento.
 
Valkíria era dotada de inteligência sem dúvida acima das pessoas com as quais convivia, ainda sua fala e atitudes eram articuladas e coerentes, em nada parecia com a de pessoas que tinham perdido a sanidade.
 
Diante de tantas dúvidas resolveu escrever ao colega que vivia no mundo antigo, que participava de estudos de casos semelhantes.
 
 
 
Com as conversas e visitas mais freqüentes do médico os sintomas como a febre haviam cedido, e ainda que entristecida pela ausência do pai, Valkíria se sentia cansada por ficar tanto tempo em casa e pela preocupação daqueles que a cercavam.
 
Dizia ela em uma de suas conversas com o médico, que as pessoas deviam se ocupar mais, achava que era por isso que elas se preocupavam tanto, como pouco se ocupavam, o restante do tempo passavam se preocupando.
 
Por sua insistência, o médico e a mãe concordaram que ela voltasse a sair, sentia-se entediada por permanecer tanto tempo em casa, diferente dos dias que sucederam ao seu aniversário, que preferia ficar na sala, no sofá defronte à grande janela, se ocupando com seus livros, isso de certa forma tinha por finalidade evitar encontrar as pessoas e as conseqüentes satisfações.
 
Agora esses sentimentos eram passados, não se incomodava mais com a indignação, especialmente de suas colegas.
 
Começou a freqüentar a biblioteca regularmente e, em pouco tempo surgiram crianças com dificuldades escolares, as quais se sentia gratificada por poder ajudar, acreditava que um dia mulheres como ela ocupariam as salas de aulas na posição de professores.
 
Com essa possibilidade sabia que podia transmitir conhecimentos que na época os homens pareciam incapazes, Valkíria sabia que conhecimento desprovido de emoções eram uma inutilidade, algo que deveria estar longe do que se deve chamar de educação.
 
Agora, depois de formada, com seu hábito de freqüentar a escola e a biblioteca conseguia perceber seus antigos professores como pessoas dotadas de sentimentos, mas nas salas de aulas eles se transformavam eram frios e faziam da repressão um instrumento para poderem propagar os conhecimentos. Valkíria pensava, as coisas podiam ser diferentes.
 
Da mesma forma que nas escolas as crianças aprendiam pela repressão, posteriormente muitas delas carregavam essa forma de ser para as suas vidas.
 
Fora essa forma repressiva desenfreada que os governantes tinham usado para mandar o seu pai para uma luta insana, da qual nunca retornara, Valkíria pensava, sua vida só teria sentido se de alguma forma pudesse participar de um mundo onde gradualmente a repressão pudesse ser banida da vida das pessoas.
 
 
 
Como resposta de seu colega que vivia no mundo antigo, o médico de Valkíria recebeu vários artigos que versavam sobre sonhos e atitudes inconscientes, dos quais sem dúvida os devaneios também faziam parte.
 
Foi orientado a ouvir a sua paciente, deixar que ela falasse livremente e a interrompesse o mínimo possível. Na medida do possível associar suas falas do dia a dia com os conteúdos dos sonhos, ajudá-la a criar significados para os traumas ainda presentes em sua vida e que esses estariam desencadeando os sintomas que ela apresentava.
 
Na medida em que tornava conscientes esses traumas e construía significados para eles, gradualmente os sintomas desapareciam.
 
Ele estava aprendendo uma nova forma de praticar a medicina.

2 comentários:

  1. Olá George,

    Comecei minha leitura desfrutando de um ambiente muito bem descrito por você, que nos transporta diretamente para o lugar.
    Mas quando "percebi" do que se trata a história, me arrepiei!!!
    Olha! fico impressionada com seu dom Maravilhoso.
    Que Alma sensível e perspicaz....

    Hoje estou lendo a 1ª parte, e como fazemos com um bom livro, vou saborear cada capítulo vivenciando o que ele tem para passar.

    Parabéns!
    Muita Luz e Paz em seu coração!!!

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  2. Maya,

    sou muito grato pela atenção. Espero que goste.

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