terça-feira, 11 de outubro de 2011

Somos Sonhos - Parte I




Aparentemente Franz tinha acordado como o fazia em qualquer outro dia de sua vida, mas nesse em particular parecia haver um deslocamento no espaço-tempo.

Ao acordar pela manhã me deparei com a minha casa de algumas décadas atrás, a televisão na qual estava acostumado a ver um pouco do jornal ainda antes de me levantar simplesmente não estava onde deveria, aliás, ela não estava.

Sem dúvida não havia nenhum sinal de algum roubo ou coisa parecida, o ambiente ainda que muito familiar não era o mesmo de quando fui dormir e, curiosamente não me despontava maior curiosidade ou mal estar.

Enquanto cuidava de minha higiene pessoal igualmente não me espantei com a imagem que encontrei no espelho, cheguei a ficar em dúvida se as décadas que se passaram tinham sido um sonho, ou se agora estava ainda dormindo vivendo em um sonho, de qualquer forma me sentia desperto e com um dia de atividades à minha frente.

Não resisti à curiosidade e voltei ao quarto para ver se me encontrava na cama, ainda dormindo, há muito não levantava tão cedo, o relógio antigo ainda registrava 06h00 e pela aparência só poderia ser da manhã.

Em condição normal ao me deparar com uma situação semelhante, sem dúvida voltaria para a cama, para pelo menos mais uma hora de sono.

Mas sabia que deveria me deslocar para meu antigo lugar de trabalho, depois de um breve café matinal.

No caminho algumas sutis diferenças começavam a surgir, as ruas nas proximidades de casa ainda estavam desertas e mergulhadas em total silêncio, mas enquanto caminhava aos poucos começava a surgir pessoas que seguiam o mesmo caminho.

Sabia que não adiantava parar no ponto de ônibus, não havia um único veículo circulando, seja automóveis ou de transporte público, mas como os demais continuei caminhando lentamente,  aparentemente ninguém estava com pressa.

Praticamente nem sentia meus passos era como se estivesse flutuando, deslizando pelas ruas.

Não demorou para chegar à avenida mais próxima e os ruídos habituais do dia começaram a surgir, um transito fenomenal ocupava toda a via que contava com um sem número de automóveis abandonados, vários deles com as portas abertas parados, enquanto outros, ainda com os motores ligados, despejando sua poluição imunda na natureza com seus motoristas tentando achar uma brecha para seguirem os seus caminhos, esses pareciam cansados e irritados.

Aqueles que caminhavam pareciam não dar maior importância ao congestionamento infindável e com aqueles que estavam irritados com ele.

Às vezes quando esses que caminhavam procurando caminhos entre os automóveis parados eram incomodados por buzinas, que eram tocadas por motoristas irritados, como se esses estivessem obstruindo a sua passagem.

Muitos desses automóveis chegaram a encostar um nos outros e aqueles que precisavam seguir por entre eles eram forçados a pular por cima deles.

Em breve o combustível em seus tanques e suas baterias iriam acabar e nada haveria a fazer além de abandoná-los nessas avenidas, logo os ruídos dessas máquinas, reflexo do egoísmo de uma cultura decadente seriam definitivamente silenciados.

Pouco mais de uma hora de caminhada na outra ponta de um viaduto pude me defrontar com meu antigo local de trabalho, que não fosse a cena inusitada desse imenso congestionamento seria idêntico ao que tinha habitualmente freqüentado algumas décadas atrás.



As coisas simplesmente não pareciam ocupar o lugar que deveriam, mas sem dúvida o mundo parecia mais interessante, mais uma vez fiquei na dúvida se ainda estava dormindo e a manhã que estava iniciando não passava de mais um sonho.

Curioso, só mais um sonho, dá a impressão de uma certa displicência,a gente vive correndo atrás de nossos sonhos e, quando ficamos em dúvida se vivemos o sonho ou aquilo que chamamos de realidade às vezes tendemos a negligenciar os sonhos, como se eles tivessem uma importância menor.

Talvez se déssemos uma importância maior aos sonhos, aquilo que chamamos de realidade poderia se assemelhar a eles.

A antiga mesa de meu escritório era a mesma e, como sempre com pilhas de papéis, mas as pessoas à minha volta, ainda que familiares pareciam deslocadas naquele ambiente, eu era o único que tentava ou fazia de conta que estava trabalhando.

Outro termo curioso, trabalho, para que será que ele serve, ou a quem ele serve, lembro que em algum lugar de meu passado um filósofo disse que a verdadeira riqueza do homem se encontrava no trabalho, prestando atenção à minha volta esse pensamento me parecia totalmente desconexo.

Havia pessoas que trabalhavam muito, principalmente aqueles que ainda executavam trabalhos braçais e invariavelmente esses viviam em uma condição que beirava a miséria, enquanto outros que se beneficiavam do trabalho deles viviam em uma condição deveras confortável, pelo menos aparentemente.

Ah! mas isso é tema para uma outra história...

Sei, não precisa interromper, é história mesmo, isso já foi explicado em algum outro lugar.

Um pouco mais tarde, em uma pausa para o café, comecei a me dar conta de algumas coisas que estavam fora do lugar.

Um colega se virou e me disse, Franz, por que está trabalhando, você tem dificuldade em perceber que isso não tem mais sentido?

Esse colega, ainda que familiar não parecia estar no lugar que era dele, era alguém com quem já tinha convivido, mas não era um colega de trabalho, tínhamos freqüentado a mesma Universidade e tomamos muitos cafés juntos e agora ele estava ali ao meu lado me oferecendo um café e me questionando, como muitas vezes nos tínhamos questionados sobre outras questões quando ainda éramos estudantes.

Enquanto tomava o café, observava as outras mesas, as pessoas que as ocupavam eram todas conhecidas, mas parte delas eram de outros lugares e ninguém parecia se importar com as pilhas de papéis que ocupavam as mesas, estavam todos conversando, como se esperassem por algum acontecimento.

Quando terminamos o café o colega me perguntou - E então Franz, preparado para o encontro de aqui a pouco, temos muitas pessoas a rever, gente que não vemos faz alguns anos. A Valkíria estará por lá.



Esse paradoxo que vivíamos tinha se iniciado três dias atrás, os jornais noticiavam em todos os momentos, no início só expunham a confusão pela qual a sociedade estava passando, mas logo surgiram teóricos de todos os tipos tentando explicar o que estava acontecendo, mas nenhuma explicação tinha qualquer sentido, ninguém tinha uma explicação convincente e nesse momento mesmo que houvesse uma, de nada adiantaria.

Há três dias, quando o sol estava nascendo todas as pessoas saíram simultaneamente de suas casas, trabalho, ou seja lá onde elas estavam, estavam fascinadas pelo dia que amanhecia, esse advento provocou um trânsito de dimensões nunca antes conhecidas, as ruas e estradas ficaram totalmente congestionadas, não restando qualquer espaço para os veículos transitarem.

Aos poucos eles foram parando não deixando qualquer espaço para circularem, à medida que as pessoas foram se cansando, o combustível acabando... Um a um esses veículos foram sendo abandonados, passados três dias só uns poucos, totalmente exaustos ainda permaneciam neles, em breve as últimas gotas de combustível se esvairia de seus tanques e essas máquinas finalmente seriam abandonadas.

Depois das primeiras horas de intenso congestionamento com o fracasso total daqueles que se diziam administradores em tentar solucionar o problema, mandando aqueles que para eles trabalhavam para tentar organizar a confusão que se formara, logo surgiram as parasitas.

Ah! Esses seres desprovidos de finalidades, começaram a tecer idéias para mandar seus fiscais multarem os veículos que estavam parados nas avenidas, mas essas pragas não tinham como lá chegar, pois se recusavam a fazer qualquer esforço, e as pragas menores, encarregadas de emitirem as multas estavam também presas nos imensos congestionamentos.



No segundo dia após o início do estranho fenômeno aqueles que se diziam governantes e outras pragas, ordenaram que elaborassem projetos a serem executados com a máxima urgência, no sentido de construírem pistas exclusivas para eles e àqueles que pudessem pagar altos valores para nelas transitarem.

Antes de findar o dia vários projetos estavam prontos, só que não havia a possibilidade de execução, uma vez que todos os veículos, inclusive os destinados a trabalhos também estavam presos nos imensos congestionamentos.

Aos poucos aqueles que trabalhavam para as parasitas foram abandonando seus postos de trabalho, só restaram elas nos locais que denominavam como sendo suas instituições, em breve pereceriam.

Só restava às pessoas caminharem com seus próprios recursos, as máquinas símbolos de uma geração iriam apodrecer nas vias construídas para elas circularem.



Não, essa não é mais um história sobre parasitas, aliás, Trilha dos Desejos também não era. Esse breve episódio é só para criar um contexto e assim aproveito para lembrar que as parasitas são como um câncer, e como tal são um mal a se extirpado.



Eu já sabia que Valkíria estaria em nosso encontro, de certa forma seria um encontro de despedida, ainda que não soubesse exatamente em relação a que seria essa despedida.

No caminho aquela imensidão de automóveis ocupando todas as ruas e avenidas me lembrava um imenso cemitério, era como se estivesse ocorrendo o enterro de uma era, não de pessoas, mas de uma época.

Vários deles estavam abandonados nas calçadas, uma busca inútil de alguns em achar caminhos para sair do imenso congestionamento.

Não havia mais nenhum com o motor funcionando e eram poucos aqueles que os seus donos permaneciam ao seu lado ou no interior deles, simplesmente não havia sobrado nenhum espaço que possibilitasse sair dos espaços inexistentes, tinham se amontoado de tal maneira que para passar entre eles era necessário passar por cima.

A maioria das pessoas estavam desorientadas e não havia ninguém com competência o suficiente para orientar alguma coisa, em breve os estoques de alimentos iriam acabar, bem como outras coisas necessárias à sobrevivência.

Curioso que mesmo diante disso ainda tinha pessoas protegendo seus automóveis ou em uma busca inútil de sair daquele congestionamento.

As pessoas que tinham organizado esse nosso último encontro já tinham tomado consciência do que estava para ocorrer e, juntos pensávamos em achar algum caminho, procurar um lugar onde pudéssemos organizar uma nova forma de vida, longe dessa paradoxal sociedade com suas inúmeras inutilidades que durante décadas inventamos.

Ao longe, no final da calçada com algumas pessoas caminhando desorientadas, pude perceber claramente o perfil de Valkíria, que já nos aguardava, junto com outros conhecidos.



Não fosse a peculiar situação na qual o mundo estava inserido, esse seria só mais um encontro de antigos colegas, para conversarem um pouco sobre  cotidiano.

Mas muitas coisas pareciam estar fora do lugar, entre os conhecidos ninguém estava perplexo com o imenso congestionamento, ainda assim estava presente uma certa preocupação, ainda que velada.

O local de trabalho ainda que familiar, há muito já não o freqüenta, além disso as pessoas que lá estavam não pertenciam àquele lugar, no caminho a pé, com os colegas conseguia reconhecer vários deles, mas pertenciam a épocas variadas de minha vida e, ainda que parecesse que todos se conhecessem havia grupos de lugares diferentes e não tinha a possibilidade de que eles tivessem convivido juntos, como denotavam.

As ruas nas quais caminhávamos, eram todas familiares, mas como as pessoas, se tratavam de lugares em que tinha passado em diferentes épocas da vida, algumas muito distantes umas das outras.

Exceto no nosso grupo de pessoas, todas as demais que víamos no caminho pareciam desorientadas, sem compreender o que estava acontecendo, ainda que todos percebêssemos essa peculiaridade, ninguém se detinha para tecer qualquer comentário.

E Valkíria, que agora já podia vê-la mais próxima, ela já tinha me acenado com os olhos, nenhuma daquelas pessoas tinham tido qualquer contato com ela, até onde sabia ela era parte de um sonho que me acompanhou praticamente toda a infância e, eventualmente ainda me visitava neles, mas ela não pertencia a nenhum dos grupos de pessoas que estavam presentes naquele encontro, por outro lado aparentemente todos a conheciam.



Quando nos juntamos com o grupo que já estava na companhia de Valkíria, por alguns instantes um lampejo de pensamento mudou totalmente a minha percepção, Valkíria tinha feito parte de todos os grupos de pessoas com as quais me relacionei até então, tínhamos sempre estado no coração, um do outro, do lado de dentro.

Para as demais pessoas que circulavam, desorientadas, não fosse a peculiar situação na qual se encontravam teriam a impressão de que não passávamos de um grupo qualquer de pessoas em uma confraternização, mas estavam tão perplexas com o que estava ocorrendo, que passavam por nós como se não estivéssemos lá.

Todos sabíamos que logo as coisas iriam se tornar por demais complicadas, os saques só não estavam ocorrendo por que já não havia mais o que ser saqueado.

O comércio em geral estava sendo abandonado, muitas das lojas já tinham sido deixadas para traz, várias delas com as portas abertas, mas os objetos que elas continham já não atraia mais a atenção de ninguém.

As pessoas estavam procurando por alimentação e água, mas os estabelecimentos que comercializavam esses produtos já estavam com suas estantes vazias, e simplesmente não havia um único espaço pelo qual essas coisas pudessem chegar, todos os veículos estavam irremediavelmente presos no imenso congestionamento que se formara.

É curioso como os objetos, símbolos do consumismo (ismo de patológico) de toda uma civilização, em três dias tinham perdido todo o seu significado, para as pessoas, todas elas, só tinha restado a perplexidade.

Em um dado momento todos que partilhavam o nosso grupo se voltaram para Valkíria, queriam saber como chegar às trilhas, curioso que não foi necessário dizer uma única palavra, mas esse não era um desejo velado, todos sabíamos que só nas trilhas haveria a possibilidade de sobreviver com alguma dignidade, mas muito tempo havia se passado e as pessoas já não se lembravam de sua essência.

A cada momento que as pessoas se desprendiam do mundo que tinha sido o berço de sua existência, voltando-se ao consumismo desenfreado, mais os caminhos que poderiam levá-los às trilhas eram apagados.

Um infindável silêncio tomou conta de todos, Valkíria não tinha uma resposta para eles, mas naquele instante um sentimento começou a se configurar.

Somos todos parte de um todo, um Universo infinito, vivo, pulsante. A matéria e energia que nos compõe é a mesma que vem das estrelas, é essa mesma energia e matéria que constituiu as trilhas e tudo que há nelas, o caminho para se chegar a elas está gravado no coração de todos os seres, sejam eles vivos ou aqueles que são chamados de inanimados.

Quando as pessoas tentaram se desprender do Universo que as constituiu as marcas que denotam esse caminho foi fragmentada, por isso estão quase todos desorientados e perplexos.

Para reencontrar as trilhas é preciso unir a maior parte possível de seres para se tentar montar esse mapa que leva às trilhas.

O caminho para se chegar às trilhas está demarcado nos corações, se conseguirem ficar juntos, os sentimentos irão mostrar o caminho a seguir.

Ao me dar conta eu e Valkíria olhávamos profundamente um nos olhos do outro, tenho certeza que nenhuma palavra foi proferida, mas todos tinham entendido os sentimentos envolvidos, esses sempre estiveram no coração de todos, só faltava alguma energia para desencadear o que estava presente em suas essências, lentamente começaram a caminhar, seus sentimentos saberiam apontar o caminho a seguir.

Nos olhos de Valkíria, que brilhavam intensamente, uma frase, ainda que não verbalizada transbordava: Me leve para voar.



Sabia que Valkíria não tinha verbalizado a frase, mas ela parecia estar latejando em seus olhos, em um fragmento de instante o céu começou a escurecer, já era final de tarde e ao nosso redor tudo estava em silêncio.

O que conseguia em meus sonhos não era exatamente voar, era algo que estava mais próximo do flutuar, foram muitas vezes que tive essa sensação, seja nos sonhos que temos quando acordados ou quando estamos dormindo, algumas vezes conseguia ficar um tempo significativo com essa sensação de flutuar, várias vezes quando me sentia assim tentava voar e ir a outros lugares, mas sempre que tentava isso acabava por me desequilibrar, e essa sensação era substituída por uma outra, a de queda.

E agora, diante de mim, estava Valkíria, me pedindo para levá-la para voar e sabia não se tratar de um pedido no sentido figurado.

Nesse momento eu me sentia perplexo, como poderia Valkíria saber desse meu sonho, não conseguia me recordar de um dia tê-lo contado para qualquer outra pessoa.

Repentinamente tive a certeza de ter ouvido uma outra frase proferida por Valkíria: “Nós somos nossos sonhos.” Isso me deixara perplexo, tinha certeza de que os lábios dela não tinham se movimentado, mas ainda que proferida em voz baixa, a sua frase ecoava em meus ouvidos, sabia que tinha sido um pensamento dela, mas o sentido da frase faiscava em seus olhos.

À medida que nossos colegas se afastavam, nós nos aproximamos e começamos a flutuar, inicialmente pouco mais de um palmo acima da calçada, mas à medida que nossos colegas se afastavam começamos a nos elevar pouco acima das casas que se encontravam à nossa redondeza.

Tive a nítida impressão de que tínhamos voltado no tempo, as ruas à nossa volta estavam desertas e, há muito não havia casas naquela redondeza, elas tinham sido substituídas pelos prédios há quase um século, não tinha chegado a conhecê-las, mas agora elas estavam lá.

Ao longe, agora já com a luz do luar pudemos ver nossos antigos colegas no extremo da cidade, se aproximando de uma densa floresta, nesse momento tivemos a certeza de que eles iam chegar às trilhas.



Um comentário:

  1. Uma reflexão profunda entre sonho e realidade, moldada por sensações, desejos e profecias que efetivamente fazem sentido.
    Valkíria seria um espelho, não uma ilusão. Por esta razão todos a conhecem, mas ela esteve presente aos picados na vida de todos em épocas diferentes.
    à medida que os outros se aproximam, os dois flutuam, pois eles chegaram antes ás trilhas mentais do essencial, do que move o Universo e está entrelaçado em todos os corações. Quando os dois flutuaram e tudo ficou deserto, os outros se afastam para a floresta, a natureza, onde há muita energia, para finalmente encontrarem as trilhas.

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