domingo, 12 de fevereiro de 2012

Lapso de Tempo - Parte II




Valkíria sabia que um dia encontraria Franz, mas para isso ela não precisaria sair da Casa do Gramado. Houve uma ocasião em que tomada pela ansiedade seguiu pela trilha à procura da parte que tinha se desprendido.

Nessa ocasião ela saiu pela trilha deixando os irmãos menores na casa à espera dela e de Franz, ela sabia que não havia com o que se preocupar, esse era um sentimento que pertencia a um outro mundo.

A casa, o gramado, a floresta, cuidariam se necessário dos menores, mas no tempo em que ficou ausente, esses permaneceram adormecidos, ficaram no mundo dos sonhos e, os sonhos são o caminho mais estreito que podia ligá-los à sua essência: a energia que vem das estrelas.

Considerando-se o tempo medido pelos preocupados, Valkíria ficou ausente da Casa do Gramado por toda uma geração, o período de uma vida longa, na contagem deles.

Mas para aqueles que trazem em si a própria essência, esse espaço de tempo não passa de um breve instante, junto ao limite de quando o tempo de vida de um preocupado que vive por muitos anos tende a zero.

Valkíria, Franz e o irmãos tinham atravessado galáxias desde que se desprenderam da grande estrela azul até o momento em que vieram a cair e posteriormente habitar esse planeta e, nesse contexto, para eles, o tempo de vida de um preocupado representa algo praticamente nulo.

É muito curiosa essa peculiaridade do tempo, muitas vezes quando eles se encontraram mesmo que durante alguns segundos, ou até menos que isso, no mundo dos sonhos. esse tempo parecia representar toda uma eternidade, como se esse espaço de tempo tendesse ao infinito e, outras vezes um espaço de tempo longo, como o decorrer da vida dos preocupados, pode tender a zero.

Uma das coisas que parece estar distante da percepção tanto dos preocupados como dos perplexos é essa relatividade do tempo, ele tem pouca ou até nenhuma relação com o tempo cronológico que ambos criaram.

O significado do tempo tem uma estreita relação com aquilo que se cria. Só aqueles que trazem em si a essência que vem das estrelas é que conseguem estabelecer essa percepção.



O tempo sempre foi uma questão que traz tanto aos preocupados quanto aos perplexos, um intenso sofrimento, mas uma coisa que poucos até então se deram conta é que essa contagem que eles mesmos criaram só existe no mundo deles, e se trata de algo que apresenta praticamente nenhuma finalidade, além do incomodo que essa contagem representa.

Todas as demais espécies que habitam o mundo seja dos perplexos ou dos preocupados, sejam esses seres animados ou inanimados, nenhum deles apresentam essa necessidade de um falso controle sobre a contagem do tempo, mas essa, ainda que aparentemente ninguém consiga expressar uma explicação significativa para essa tentativa de controle, parece ser fundamental para eles.

Possivelmente essa seja mais uma das coisas, entre as quais os mundo poderia ser melhor, se simplesmente ela não existisse, pois muitas vezes o não fazer é a forma mais eficiente de se obter aquilo que efetivamente nos é necessário.

Valkíria, nesse momento fazia uma grande caminhada pela trilha, mas como era sua peculiaridade, não tinha pressa, ela apreciava cada passo e contemplava cada árvore como aquilo que elas representam: serem únicas.

Como única é a existência, cada instante que vivemos. De onde vieram, Franz e Valkíria, fosse um instante, ou toda uma eternidade, tudo era dotado da mesma importância, eles sabiam haver uma única possibilidade de viver a vida, que é o momento presente, um tempo infinitamente pequeno, tendo como limite inferior as experiências passado, e superior uma expectativa de futuro e, nenhum desses oferecem a possibilidade de sustentar a vida.

A caminhada de Valkíria terminaria no momento em que ela sentisse preparada para habitar o mundo dos preocupados, onde sabia que ia encontrar Franz.



“Todos temos as nossas máquinas do tempo, as lembranças são as que nos levam ao passado, e os sonhos nos impulsionam ao futuro.” (H. G. Wells - A Máquina do Tempo).

“A memória é como o brilho das estrelas que já foram, mas que ainda persistem.” (Sigmund Freud).



Durante o tempo que viveu com os preocupados Valkíria veio a ter contato com muitos sentimentos que no mundo dos sonhos tinham pouco ou até nenhum significado.

Mas para habitar esse mundo ela necessitava experimentar a vida em um corpo semelhante ao dos preocupados, pois só assim haveria a possibilidade de ela um dia poder entrar em contato com Franz.

O que ela desconhecia é que habitando um corpo ela experimentaria as mesmas sensações dos que viviam tanto o mundo dos preocupados como no dos perplexos.

Nos sonhos o conhecimento apresentava uma importância secundária, uma vez que lá é um lugar em que predomina os desejos, é o mundo das sensações, lá não há tempo nem espaço e, o antes, o depois e o agora podem estar acontecendo simultaneamente.

Ainda que na Casa do Gramado Valkíria vivesse sozinha com os seus irmãos, lá ela nunca experimentou a solidão, uma vez que lá todos são partes de um todo, um Universo infinito, vivo, pulsante. Nesse mundo de sonhos, Valkíria, os irmãos, a casa, o gramado, as árvores, enfim todos que lá habitam, sejam eles animados ou inanimados formam um único ser, ainda que em nenhum momento deixam de ter a sua individualidade.

Com a aquisição de um corpo material, como o dos preocupados, Valkíria veio a experimentar a idéia de finitude presente nos preocupados, essa era uma das questões que fazia com que eles tivessem uma preocupação excessiva com o tempo, isso fazia com que eles vivessem em função dele na expectativa de um dia poder controlá-lo.

Valkíria nunca se deixou levar por essa característica dos preocupados, a necessidade de controle, para aqueles que tinham vindo das estrelas, essa era uma idéia completamente desconexa, no Universo não há o que controlar, como somos partes dele, qualquer tentativa de controle é um contra-senso, desprovido de significados.

Valkíria trouxe em si a peculiaridade de fazer parte do todo e de em seu modo de ser predominar as sensações. Isso provocou nela uma vida doente no mundo dos preocupados, mas mesmo assim, em um futuro próximo, na contagem deles, proporcionou a possibilidade de aliviar parte do sofrimento de muitos, nas gerações que sucederam.



Os preocupados desenvolveram em si próprios a peculiaridade de fazer uma cisão entre o mundo que habitava dentro deles, e o mundo externo, aquele que os rodeiam.

Não, não é erro, é desenvolveram mesmo, tanto no mundo dos preocupados como no mundo dos perplexos a idéia de envolvimento mau passava de um conceito teórico, algo que constava nos dicionários e que quase nunca era consultado.

Junto com essa cisão, como defesa, eles criaram tantas outras, entre elas, de fundamental importância constava a divisão entre conhecimentos e sentimentos, de extrema importância para eles, o conhecimento, sempre sobrepujando os sentimentos que ocupavam um lugar secundário, pelo menos é o que tinham por intenção.

O que poucos tinham noção é a dimensão dos sofrimentos e doenças que essas cisões provocavam.

Ainda que habitando um corpo semelhante ao dos preocupados, nesse momento, Valkíria trazia em si a essência que vinha das estrelas, onde essas cisões eram algo completamente desconexo, desprovido de qualquer sentido.

Entre os efeitos colaterais dessas cisões destaca-se a imensa solidão que toma conta da existência dos preocupados, ainda que esse sentimento nunca tivesse feito parte da existência de Valkíria, como suas percepções viviam à flor de sua pele, aos poucos, quando ainda era adolescente ela foi adoecendo, pelo sofrimento desencadeado pela solidão, recalcado naqueles que viviam ao seu redor.

Passaram-se alguns anos, mas com a ajuda do médico de sua família aos poucos aprendeu a lidar com esses sentimentos e transformá-los em algo produtivo, para ela e aqueles que viviam próximos.

Nessa existência ela se realizou ensinando aqueles que tinham dificuldades em ter acesso às escolas, ainda que se dedicasse a propiciar o acesso à leitura e escrita, nesse trabalho o que efetivamente transmitia era a afetividade que dava sentido à vida.



Durante anos Valkíria se consultou com o mesmo médico que mais tarde veio a se tornar um tipo de confidente.

Seu tratamento era composto de uma série de atividades, alguns medicamentos, uma alimentação balanceada desprovida de componentes industrializados, que na época em Valkíria adoeceu estavam começando a se disseminar no mundo.

Com esse médico Valkíria aprendeu conceitos muito significativos para ela e para todos aqueles que com ela aprenderam a ler, escrever e, principalmente a importância da afetividade.

O médico a ensinou a se tratar usando uma das mãos.

Dizia ele o tratamento do tipo de sofrimento ao qual você está submetida pode ser explicado usando a mão.

Mais tarde Valkíria disseminou aos que a procuravam a explicação do médico, mas ampliando o que ele lhe tinha ensinado, ela sabia que essa explicação não se resumia ao problema que ela tinha e, as idéias contidas nas explicações do médico poderiam auxiliar muitas pessoas.

Segundo o médico:

- O dedo mínimo representava o que o médico poderia fazer para auxiliá-la;

- O anelar representava os benefícios que os medicamentos poderiam trazer a ela;

- O dedo médio, que algumas décadas mais tarde veio a representar um gesto para ofender as pessoas, representava atividades físicas, cuidados com o corpo e atividades afetivas e intelectuais;

- O indicador era para ela se apontar, se reconhecer como responsável pelos problemas e sofrimentos que estava sentindo;

- Finalmente o polegar representava mudanças de atitudes frente à vida, se ela tinha adoecido era por que tinha criado mecanismos, rotinas que a levaram à doença e, enquanto não saísse desse ciclo vicioso, sua doença permaneceria.

Tinha ficado evidente para Valkíria que parte significativa das doenças que as pessoas adquiriam eram responsabilidade delas próprias e, pouco ou nada adiantava procurar médicos e usar remédios se a pessoa não se colocasse na posição de principal responsável pelo seu estado e pela possibilidade de um dia curar-se.



Nesse tempo Valkíria chegou a estar muito próxima de Franz, várias vezes se viram através da janela da casa onde morou, mas estavam separados por um breve lapso de tempo, eles estavam no mesmo lugar, mas vivendo em épocas diferentes.

Valkíria tinha encontrado Franz, e ele por muitas gerações daqueles que habitam esse planeta vivo pulsante estivera à espera dela, não fosse um breve lapso de tempo poderiam ter-se tocado.

Os pais de Franz chegaram a conhecer Valkíria, quando ainda eram crianças foi com ela eles vieram a conhecer o mundo da escrita e dos livros, mas quando a energia contida no corpo que Valkíria estava habitando se extinguiu, ainda faltavam algumas décadas para que Franz viesse a nascer.

Ao deixar esse mundo, a partir do jardim de sua casa Valkíria caminhou por uma estreita trilha que a levaria de volta à Casa do Gramado, trilha essa que muitos poucos tiveram a oportunidade de chegar a caminhar por ela.

Quando o seu tempo estava por expirar, Valkíria sabia que em algum momento Franz encontraria a trilha, agora eles estavam ligados por ela.

No dia em que Franz atingisse a idade adulta teria a oportunidade de recuperar o trabalho de Valkíria, em uma época em que as pessoas estivessem mais preparadas para herdar tudo o que ela inicialmente aprendera com o seu médico, e com o trabalho que mais tarde ela veio a realizar para ele, ainda com as devidas atualizações que foram ampliadas por ela própria.

A antiga casa de Valkíria iria se transformar em um tipo de museu, casa de cultura, para uns poucos que estivessem preparados para restabelecer em suas existências a importância das emoções.

Aqueles que estivessem dispostos a perceber que essas eram tão importantes quanto aquilo que conheciam e, com isso tinham a possibilidade de manter seus sentimentos, pensamentos e atitudes fluindo em um mesmo sentido, isso levaria essas poucas pessoas a se perceberem como parte de um todo, um Universo infinito, vivo, pulsante.



Só quando atingisse a idade adulta, no conceito dos perplexos, Franz voltaria a se encontrar com Valkíria, mas antes disso ele teve a oportunidade de participar da reconstrução da casa onde ela viveu no tempo em que muitas vezes eles conseguiram se ver através de uma grande janela.

As janelas têm uma peculiaridade, elas sempre ligam dois mundos.

Certa vez em um tipo de estado de transe, Franz teve um breve contato com Valkíria, naquele momento ambos estavam no mundo dos sonhos. Quando acordou, a pedido dela deixou um espaço no quintal da casa para um jardim, nesse se iniciava uma pequena trilha, na qual só uns poucos tinham a percepção para enxergá-la.

Essa pequena trilha era um caminho para aqueles que conseguiam ter os sentimentos em compasso com os pensamentos pudessem chegar ao mundo das trilhas, onde em algum lugar se encontrava a Casa do Gramado.

Quando o incidente que deu origem ao mundo dos perplexos estivesse para ocorrer, Valkíria voltaria a caminhar pela trilha, na busca de Franz, mas dessa vez o destino deles não seria o mundo das trilhas nem a Casa do Gramado.



Curiosa essa peculiaridade tantos dos perplexos quanto dos preocupados, eles criaram o hábito de dividir suas próprias etapas de vida, como marcas de seu des-envolvimento.

Todos nasciam como bebes, para depois tornarem-se crianças, posteriormente adolescentes e no ápice de sua existência tornavam-se adultos, prontos para atuar e participar das decisões de seus mundos, até que envelhecem e, assim aos poucos iam deixando de fazer parte da casta da população que mantém um papel ativo na sociedade da qual fazem parte e, finalmente morrem.

Os bebes, crianças e adolescentes não parecem ser reconhecidos como seres inteiros, assim como os idosos, os primeiros são como algo em formação, já o último ocupa o lugar de quem já cumpriu com suas obrigações na sociedade, e assim gradualmente vão lhe retirando suas atribuições.

Assim no mundo deles, que alguns curiosamente denominam de democracia, outro termo curioso, apenas os adultos, e apenas uma pequena casta entre esses, têm o direito de participar das decisões do mundo que habitam, cabendo aos demais a obrigação de acatar as decisões tomadas pelos primeiros.

Ao se tornarem adultos, tanto os perplexos quanto os preocupados reprimem a criança que foram, deixando-as no passado e não percebem que esse é um dos fatores que faz com que elas adoeçam, levando-as a uma velhice precoce, triste e solitária.

Aqueles que tiveram a oportunidade de aprender com Valkíria começaram a se dar conta de que não precisam deixar de ser crianças, bebes ou adolescentes, para esses o des-envolvimento era um processo desconexo, totalmente sem sentido.

A criança nunca deixava de ter contida em si aquele que um dia foi um bebe, assim como o adolescente trazia em si a criança que um dia fora, e o adulto não deixava de ser o processo de envolvimento entre o bebe, a criança e o adolescente, sempre vivo em sua essência.

Quando seu corpo começasse a perder a vitalidade pelo tempo, o idoso tinha sempre em si a companhia de um bebe, uma criança, um adolescente e tudo que concretizou em sua vida adulta, que é a companhia essencial que qualquer pessoa necessita.

Esse idoso, por conviver bem com o seu bebe, criança, adolescente e adulto, por estar envolvido com todos eles, igualmente não tem qualquer dificuldade em conviver e partilhar com outras pessoas que partilham o mesmo espaço que ele, assim dificilmente conhecerá o isolamento e as doenças que advém dele.



Quando o curioso incidente que ocorreu no mundo dos perplexos, que levou todos que tinham algum tipo de veículo a saírem simultaneamente de suas casas, vindo a provocar um congestionamento de dimensões nunca antes ocorrido levando-os definitivamente a abandonarem o paradoxal meio de transporte que haviam criado, Valkíria deixou a Casa do Gramado e foi caminhar pela trilha, em direção ao mundo dos perplexos, ela sentia que tinha chegado o momento de se reencontrar com Franz.

Valkíria sabia que o encontraria, bastava seguir a trilha que unia seus corações. Desde o momento em que chegaram a esse planeta, em um único meteorito, de devido ao atrito com a atmosfera se dividiu em quatro partes, seria a primeira vez que se encontrariam na forma material e espiritual, ela sabia que Franz a estava esperando, eles eram compostos da mesma matéria e energia, a mesma essência, tinham vindo da mesma estrela.

Agora, a estrela da qual faziam parte, emanava energia suficiente a eles, de forma a eliminar o Lapso de Tempo que os separava.

Aos perplexos essas energia veio em forma de sonho, mesmo àqueles que se julgavam despertos, eles não sabiam, mas viviam em uma espécie de transe, fascinados pelo seu modo de vida, e não se davam conta de que se não rompessem paradigmas, estariam não só colocando em risco a sua própria existência com também do mundo que habitavam.

Essa energia tão bem conhecida por Valkíria e Franz era responsável por manter juntos, em sintonia, entrelaçados: os sentimentos e pensamentos.

Quando essa energia chegou para romper o Lapso de Tempo entre Franz e Valkíria, ela também afetou todos os seres fossem eles animados inanimados.

Os perplexos sentiam os riscos que representavam, sejam eles a si próprios ou ao mundo que habitavam, que consideravam como uma propriedade, mas estavam tão distanciados dos próprios sentimentos que achavam que seus conhecimentos dariam conta de reparar tudo que durante milênios degradaram.

Por outro lado, seus sentimentos, ainda que reprimidos percebiam o quanto esse conhecimento era falho, o estreitamento entre os sentimentos e os pensamentos os levaram a uma atitude que veio a romper com o seu modo de vida, inviabilizando o meio de transporte que para muitos era considerado como um símbolo de suas próprias existências.

Valkíria e Franz, tinham permanecido par apontar, quando fosse o momento, que a vida fervilhava nas trilhas, uma outra forma de vida, onde sentimentos e pensamentos permaneciam entrelaçados.

Quando se uniram, Franz e Valkíria sentiram que tão logo apontassem aos perplexos o caminho para chegar às trilhas, teria chegado o momento de se reintegrarem à sua estrela.



Dedico à Marion,

que nas noites de lua cheia se senta ao meu lado, na varanda da Casa do Gramado, me trazendo magia e inspiração.




Um comentário:

  1. Sempre me encantando com os belos presentes.
    Sinto me grata e honrada com seu carinho e consideração.
    Lindo como todos porém este encanta...
    Sente-se o carinho e o amor em cada palavra.
    É sempre muito bom te ler,
    enche a alma de magia, um sublime sentir!
    Estou sem palavras... só me resta dizer muito obrigada por ter me brindado com a beleza desse conto!
    Adoro estar com você, me faz muito feliz!
    Me faz sonhar dormindo ou acordada...sempre.
    Porque o sempre nunca acaba.

    Beijos.

    Marion

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