sábado, 13 de outubro de 2012

Esquecidos - Parte VII.




O segundo mosaico tinha a mesma dimensão do anterior, mas não continha qualquer desenho, o tamanho dele chamou a atenção de Valkíria, ela se afastou momentaneamente,  desejou ter a visão do todo e percebeu que todos eles tinham a mesma dimensão, os encaixes eram perfeitos, nitidamente estavam contando uma história.

Esse era todo constituído de pequenas pedras brancas, distribuídas aleatoriamente em sua superfície, novamente Valkíria ficou confusa, inicialmente pensou que poderia estar intercalando trechos da história.

Ela se afastou e percorreu toda a construção depois disso descartou essa hipótese, se fosse um livro, essa seria a única página em branco, em seu percurso no interior da construção notou que havia uma seqüência, cada mosaico ainda que revelasse uma história, não deixava de ser uma continuação do anterior, ainda que pudessem ser lidos em qualquer ordem, mais tarde perceberia que revelavam múltiplas histórias.

Ao retornar ao mosaico branco, Valkíria permaneceu observando-o por um longo período, estava em transe, sentiu-se como se estivesse no interior dele, caminhando entre as pedras que o constituía, sentia que sua textura branca podia refletir infinitas histórias.

Lembrou-se da Casa do Gramado, viu-se caminhando entre as pedras descendo a montanha, segurando seu pequeno cachorro nos braços, escorregando entre elas, quando chegou ao mundo dos Esquecidos.

Sentiu uma intensa saudade do aconchego de seu mundo, quando à noite se sentava na cadeira de balanço da varanda, na companhia de Franz e dos demais e, hipnotizados apreciavam a sua estrela, a grande estrela de luz azul.

Quando a noite chegava a seu ápice as árvores ficavam tão próximas, como se elas estivessem abraçando-os, deixando sempre uma pequena abertura para que a tênue luz azul refletisse na face dela, de Franz, dos menores, dos bichos e de todos os seres alados, que no auge da noite dormiam profundamente, e seus sonhos se entrelaçavam.

Ao chegar Franz trouxe consigo a noite, essa em especial seria a mais escura desde que eles chegaram a esse mundo.

Entrando na construção Franz se deparou com um intenso silêncio, à frente do mosaico branco, viu Valkíria e seu pequeno cachorro, mais atrás todos os esquecidos que nos últimos dias ocupavam aquele lugar, aglomerados, também partilhavam o transe dela.

Ao olhar para o mosaico, tentando entender o que ocorria, Franz se viu em um pequeno apartamento, no mundo dos Preocupados, já era madrugada, ao olhar para a janela se deparou com uma rua deserta.

Sentou-se na cama e sentiu que seu sono tinha se esvaído, olhou para o relógio e viu que tinha passado uns poucos minutos depois da três horas da manhã.

Ficou estático vendo um dos ponteiros se movimentando lentamente, quando esse parou entre um momento e aquele que o precederia.

Pensou que a pilha tinha se esgotado, mas manteve-se imóvel, e agora não mais tinha a possibilidade de contar o tempo.

Ainda que não pudesse se mover sentiu uma forte presença em seu apartamento, quando ouviu uma doce voz em seu ouvido sussurrando: Você está ai meu amor, estava te procurando. Sua resposta subiu pelo diafragma e ficou sufocada em sua garganta, mas a resposta faiscava em seus olhos e, como era hábito no mundo dos Esquecidos, dispensava as palavras.

Seus olhos exprimiam: Sim meu encanto, estou. Eu estava te esperando.

Ao se darem conta Franz e Valkíria olhavam-se profundamente nos olhos e aos poucos saíram do transe.

Já era noite, a luz das estrelas no céu refletiam seu brilho nas pedras do mosaico branco.

Todos estavam cansados, depois de se alimentarem, deixariam que os sonhos revelassem os significados do mosaico branco.





A noite agora escura no mundo dos Esquecidos revelava infinitos pontos brilhantes no céu.

As ruas de pedras polidas antes repletas por inúmeros Esquecidos caminhando incessantemente a cada dia que passava ficava mais deserta.

Eram poucos os que agora caminhavam olhando para o céu.

Todas as construções circulares estavam sendo polidas e revelando seus mosaicos.

À noite quando iam para o mundo dos sonhos uma densa luz azul, agora cobria toda a face escura do planeta.

Desde o dia que os Esquecidos começaram a ajudar Valkíria a polir as paredes e a acompanhar, quando ela visitava o mundo dos sonhos, nenhum meteorito chegou a atingir a superfície do planeta.

Uma leve impressão agora percorria as lembranças de todos, de alguma forma a energia proveniente dos sonhos impedia que a poeira presente no céu, agora escuro viesse a atingi-los.

No sonho o mosaico branco ocupava os pensamentos de todos que agora dormiam ao redor de Franz e Valkíria.

Eles sentiam que os próximos teriam histórias há muito esquecidas a serem reveladas.

No céu escuro inúmeros corpos celestes tinham o seu rumo alterado, quando se aproximavam do mundo dos Esquecidos.





Valkíria despertou no meio da noite, sentia sede, ao olhar em seu redor notou que todos dormiam profundamente, quando se levantou para tomar água, os dois cachorros que estavam próximos a acompanharam.

Flutuaram levemente até a grande mesa no centro da construção, em silêncio, não desejavam interferir nos sonhos daqueles que dormiam profundamente.

Após saciar a sua sede, Valkíria despejou um pouco de água em um uma vasilha menor, pegou-a e flutuou na companhia dos cachorros até próximo à entrada da construção, deteve-se momentaneamente na frente do mosaico branco.

Franz e os Esquecidos ainda dormiam profundamente.

O grande cachorro de Franz emitiu um leve choro, Valkíria olhou para os dois e em silêncio saiu para o lado externo da construção circular e deu a preciosa água àqueles que sempre a acompanhava.

O cachorro de Franz e o pequeno de Valkíria desfrutavam da água e saciavam a sua sede com demonstração de intenso prazer.

Não demorou e um pequeno grupo de Esquecidos, que caminhavam pela rua, observando o céu, ao vê-la saciando a sede dos cachorros, se aproximaram e a rodearam, oferecendo o que tinham de mais importante, a companhia.

Envolto por uma tênue luz azul, em total silêncio Franz flutuou até onde Valkíria se encontrava, ao ser envolvida pela luz ela entrou em transe, e juntos flutuaram até a altura das árvores.

A luz que os envolvia passou a englobar os Esquecidos que vieram oferecer companhia a Valkíria e, lentamente, um a um, como aqueles que estavam dentro da construção vieram a desfrutar o mundo dos sonhos.

Olhando nos olhos e lendo os pensamentos sem sair do transe, Valkíria e Franz flutuaram cada vez mais alto, para além da atmosfera do planeta.

Um grande meteoro que vinha na direção do planeta foi desviado para a escuridão do Universo quando estava se aproximando deles.





Distante no horizonte a luz vermelho alaranjada de uma grande estrela começava a iluminar a face até então mergulhada na escuridão do Universo do mundo dos Esquecidos.

Brevemente Franz saiu do transe, ao ver essa que era a estrela mais próxima de onde agora viviam, teve a impressão de que ela estava maior a cada dia que passava.

Com o brilho da luz vermelha Valkíria também saiu de seu transe, trocando carícias, tocando bem de leve as almas, lentamente desceram à superfície do planeta.

Sentiam sede e fome, ao entrarem na construção mais uma vez Valkíria se deteve em frente ao mosaico branco, sentiu que parte significativa da história a ser revelada estava presente nele.

Os Esquecidos tinham acordado com a luz avermelhada que inundou a construção circular e, olhando nos olhos, lendo pensamentos, desfrutavam da água e frutas que nutriam seus corpos e dos sentimentos que envolviam a todos, alimentando as suas almas.

Franz e Valkíria se juntaram àqueles que estavam na mesa, com seus cachorros que sempre os acompanhavam, para que na companhia deles partilhassem as frutas, a água e os sentimentos que os nutriam.

No alto da construção circular outros estavam com o olhar fixo nos céus, mantendo o hábito que os acompanhavam há muitas gerações, mas agora a luz da estrela mais próxima era muito intensa, iluminando todo o céu que eles podiam ver e, não mais conseguiam ver a poeira e os meteoros que orbitavam as proximidades de seu mundo.

Só à noite e pouco antes do amanhecer ou anoitecer é que conseguiam ver esses corpos celestes.

Saciada Valkíria se voltou aos mosaicos, no momento deixou de se ocupar com o de pedras brancas, aquele que vinha na seqüência mostrava um mundo industrializado, tomado por máquinas.

Ela não as compreendia, notando a sua dificuldade Franz se juntou a ela, mas ele também só as entendia parcialmente, já os Esquecidos frente às imagens não denotavam qualquer interesse.

Nos olhos deles Valkíria sentia que se tratava de algo que aparentemente eles não desejavam se lembrar. Os Esquecidos estavam apreciando muito os mosaicos, o primeiro ensinando como construí-los, o de pedras brancas igualmente e outros que se seguiam, tanto no interior como no exterior da construção, mas esses primeiros, logo além do de pedras brancas praticamente eram ignorados.





O último desses mosaicos mostrava um mundo de máquinas, neles estava representado uma infinidade delas levantando vôo, rumo às estrelas, entre todos os demais esse era o único que nenhum dos Esquecidos se detinham frente a ele, nitidamente não queriam ter qualquer contato com ele.

Valkíria e Franz perceberam que em um tempo longínquo parte significativa daqueles que habitavam esse mundo tinham ido embora nessas máquinas.

No mosaico anterior um número infindável de pessoas embarcavam nessas naves, que aos poucos deixavam o mundo onde até então habitavam.

Valkíria começou a atribuir significados ao mosaico branco, ele representava o vazio deixado por aqueles que foram embora.

Um sentimento de tristeza percorreu os pensamentos dela e de Franz.

Nitidamente partilhando esse sentimento os dois cachorros olhavam fixos para aqueles que se lançaram em direção às estrelas.

O mosaico branco também não deixava de representar um modo de vida a ser abandonado, esquecido, por aqueles que resolveram ficar em seu próprio mundo.

Olhando nos olhos, lendo os pensamentos, Franz e Valkíria se perguntavam o que teria ocorrido que levou os Esquecidos a se dividirem, com parte deles se lançando às estrelas enquanto os demais optaram por abandonar um modo de vida dominado pela tecnologia e permanecer onde viviam.

Percorreram todo o interior da construção circular, mas não encontraram nada que esclarecesse essas dúvidas.

Os mosaicos que se seguiam traziam um interesse maior a todos que agora habitavam a construção circular, na seqüência eram mostradas máquinas sendo abandonadas e se deteriorando pelo tempo.





O mosaico na seqüência mostrava uma intensa migração no mundo dos Esquecidos, aqueles que habitavam as montanhas e as regiões próximas a grandes oceanos estavam se mudando para as regiões planas de seu mundo.

As grandes máquinas que aquela antiga civilização havia produzido, em sua totalidade se encontravam nas regiões próximas aos mares.

Essas mostravam um grau significativo de deteriorização, a mecanização no mundo dos esquecidos trazia conseqüências, o mundo deles estava adoecendo e, evidentemente os Esquecidos adoeciam juntos.

Aqueles que optaram por continuar a viver nesse mundo consideram tanto as águas, como as montanhas uma dádiva, precisavam ser preservadas, ainda que fossem fundamentais à sua existência, não podiam ser submetidas à degradação que sua antiga cultura estava impondo ao mundo que habitavam.

As montanhas, ainda que não apresentassem, pelo menos aparentemente tão degradadas quanto os oceanos, abaixo de sua superfície tinham a sua essência violada, eles estavam subtraindo toda a riqueza que elas continham, para cada vez mais construírem as suas máquinas, sem darem atenção que com isso cada vez mais comprometiam a vida como um todo.

Aquela antiga civilização tinha dificuldade em se dar conta que sua vida só era possível por eles habitarem um mundo igualmente vivo, não conseguiam se perceber como parte dele e sim, tinham esse como um ser para satisfazer os seus caprichos.

Eles não tinham notado que a vida em si sempre lhes fornecia tudo o que era necessário, e sempre que subtraiam de seu mundo mais do que precisavam, também retiravam de si próprios a qualidade da vida que poderiam desfrutar.

Aqueles que optaram por continuar a viver nesse mundo sabiam que seria necessário mudar o seu estilo de vida, os oceanos e montanhas tinham que ser deixados, para que a sua natureza fosse restituída.





Inúmeros outros mosaicos mostravam águas sujas de rios, lagos e mares gradualmente se tornando límpidas, transparentes, fervilhando vida.

As montanhas também não eram diferentes, mostravam um tempo em que sua superfície tinha sido descoberta, desprovida de vegetação e inúmeros túneis pelos quais de suas entranhas eram subtraídas suas preciosidades.

Os Esquecidos tinham chegado a uma condição que nada podiam fazer para devolver a vida a seu mundo, depois que parte deles se lançaram às estrelas, aqueles que ficaram tudo que podiam fazer era abandonar seu antigo modo de vida e assim permitir que a vida achasse os seus próprios caminhos.

Gradualmente uma rala vegetação começava a cobrir as montanhas, depois vindo a ceder seu lugar para árvores maiores e posteriormente as florestas.

Nas regiões planas infindáveis construções circulares construídas com pedras se erguiam com apenas o uso das mãos dos Esquecidos.

Elas tinham formas precisas, idênticas, simétricas, sempre dispostas nas mesmas distâncias umas das outras.

O mundo dos Esquecidos era repleto de pedras, uma dádiva doada pela vida a eles, com elas foram feitas as construções circulares, que à medida que eram concluídas, calçadas também de pedras eram edificadas, unindo as construções umas às outras.

O mundo que os Esquecidos estavam constituindo era todo interligado, envolvido, entrelaçado.


Nenhum comentário:

Postar um comentário