domingo, 4 de novembro de 2012

Esquecidos - Parte VIII.





Valkíria e Franz não se deram conta do tempo que ficaram apreciando essa seqüência de mosaicos, que mostrava a história dos Esquecidos, o trajeto que os levou de um mundo permeado pela tecnologia e pelas máquinas ao estágio de vida que agora se encontravam, mas sentiam que essa era apenas uma face da história deles, imaginaram que muito ainda havia a ser revelado.

Eles estavam cansados, desceram até o andar inferior da construção circular, a noite começava a envolver a face do mundo na qual agora se encontravam.

Sentaram-se próximos à grande porta de entrada.

Curiosa as construções dos Esquecidos, as portas só representavam uma passagem, que ligava o mundo interior ao exterior, nada no mundo deles era fechado ou guardado.

Os alimentos que colhiam eram sempre o necessário para o consumo, assim como a água, nunca tinham excessos nem falta, a vida sempre os presenteavam com tudo que eles precisavam.

Enquanto Valkíria e Franz apreciavam a estrela dos Esquecidos, agora avermelhada se escondendo no horizonte, e inúmeras outras, pequenos pontos brilhantes que começavam a brilhar no céu escuro, aqueles que se alimentavam na grande mesa, no centro da construção levaram a eles muitas frutas e a preciosa água que os nutriam.

Os Esquecidos estavam envolvendo Franz e Valkíria e seus dois cachorros, que junto com eles também partilhavam a água e as frutas.

Os poucos grupos que caminhavam pelas calçadas ainda olhando para o céu, ao perceberem o movimento enfrente à construção circular, se juntavam a eles.

Aos poucos todos entraram em transe, um mundo intermediário entre o estar acordados e o mundo dos sonhos.

A luz azul que vinha da Grande Estrela, agora era intensa, sua nuance se intensificava com eles envoltos na sombra da construção circular, o céu como sempre estava permeado por estrelas.

Os Esquecidos aos poucos estavam deixando de olhar para o céu, a cada dia que passava mais eles se olhavam nos olhos, eles sentiam as mudanças que ocorriam à sua volta.

Há tempos as pedras que vinham do céu não mais caiam na superfície do planeta, essas que muitas vezes colocavam a vida deles em risco e destruíam as suas construções, fazendo com que eles trabalhassem incessantemente reconstruindo-as.

Em um último momento às portas do mundo dos sonhos, um pensamento percorreu a mente de Valkíria, desde que tinham chegado a esse mundo viu muitos lugares assolados pelas pedras que caiam do céu, mas nunca tinha visto nenhum vestígio da destruição que elas causavam nas construções circulares, ainda que essas fossem as maiores nas cidades dos Esquecidos.

Valkíria e Franz começaram a flutuar, o grande cachorro de Franz se levantou nas pernas traseiras tocando-o, junto ao pequeno de Valkíria, eles se aninharam a eles, flutuaram tão alto, que foram muito além da atmosfera do planeta.

A luz azul proveniente da Grande Estrela que fluía através deles estava envolvendo toda a superfície do planeta dos Esquecidos, todos que agora se encontravam na face escura do planeta agora dormiam profundamente.





Na altura em que agora flutuavam, Franz, Valkíria e seus dois cachorros eram iluminados simultaneamente pela Grande Estrela Azul e pela Estrela Avermelhada, que alimentava o mundo dos Esquecidos.

Eles não dormiam e ao mesmo tempo não se sentiam acordados.

No mundo dos Preocupados as pessoas não se davam conta desse, que para eles não passava de um breve instante, eles simplesmente adentravam o mundo dos sonhos quando sonolentos ou cansados, para eles, em sua maioria o sono tinha por função propiciar o descanso.

Já os Esquecidos só agora estavam reencontrando os caminhos que levam ao mundo dos sonhos.

Ambos não se davam conta de que o mundo que habitavam não deixava de ser um reflexo do que ocorria nos sonhos.

Os Preocupados tinham imensa dificuldade em compreender e principalmente em sentir o mundo que habitavam, tanto aquele que existia fora deles, quanto ao que estava em seus interiores, tinham uma vida cindida entre algo que achavam ser o real e o que ocorria nos sonhos.

Já os Esquecidos, chegaram à condição na qual se encontravam por justamente terem perdido o contato com o mundo dos sonhos, à medida que deixaram de dormir suas lembranças, mesmo as mais simples, as do cotidiano deixaram de permear e dar vida aos sonhos, que com sua magia alimentava as memórias deles.

As poucas lembranças que os Esquecidos conseguiam reter se limitavam a um cotidiano, com a finalidade de manter a sua existência, deixando o imaginário deles com uma vida esvaziada. É nos sonhos que imaginário cria sentidos à própria existência.

Valkíria, Franz e tudo que ladeia a Casa do Gramado, praticamente não distinguem o que ocorre no mundo dos sonhos e no mundo que os Preocupados acham ser o mundo real, antes de dormir eles passam um longo tempo em transe, uma condição intermediária entre o dormir e o estar acordado, é nesse tempo que para eles ocorrem as elaborações que depois vão alimentar e dar vida aos sonhos, o mesmo ocorre nos momentos que precedem o acordar e, assim, os desejos que se realizam nos sonhos, advindos dos momentos que ocorrem antes de dormir, os acompanham para depois dar vida e encantos aos momentos que sucedem o acordar.

Franz e Valkíria e os cachorros estavam sonolentos, pouco antes de dormirem sentiram que a Estrela Vermelha estava crescendo rapidamente.





Envolvidos pela luz vermelha da estrela que alimenta o mundo dos Esquecidos, Franz e Valkíria sentiram que foi ela quem os desviou do caminho que os estava levando à Grande Estrela Azul e os trazido a esse planeta.

À medida que o dia amanhecia Franz, Valkíria e seus cachorros desceram lentamente à superfície do planeta, enfrente à construção circular que nos últimos dias estavam habitando, lentamente os Esquecidos foram acordando, em volta a eles uma densa luz avermelhada envolvia todos os arredores da construção.

Em passos lentos adentraram a construção circular, enquanto todos procuravam por um lugar à mesa, desejavam se alimentar. Valkíria mais uma vez se deteve em frente ao mosaico branco, os dois cachorros ficaram ao lado dela, partilhando a companhia.

Valkíria ainda estava em transe, ela não só estava apreciando o mosaico, seus pensamentos e sentimentos se transportaram a ele.

Ela se viu caminhando entre as pedras brancas do mosaico, formavam uma trilha de pedras, lembrou-se do dia em que chegou a esse planeta, conseguiu divisar nitidamente a montanha em que a Casa do Gramado há algum tempo tinha descido a esse planeta.

Continuou caminhando pela trilha de pedras, mas quando se deu conta já estava flutuando sobre ela. Valkíria sentia saudades de seu mundo de encantos.

Atrás de si a trilha se fechava, formando uma imensa floresta de pedras, desejou estar junto com os irmãos menores e toda a magia que envolvia a Casa do Gramado.

No alto da montanha se deparou com as árvores que lhe eram familiares, além dela o gramado. Na varanda da casa, rodeados por inúmeros seres mágicos seus irmãos dormiam profundamente.

A fada que a tinha acompanhado em seus primeiros passos nesse mundo veio lhe fazer companhia, ficou flutuando ao lado dela.

Valkíria desejou que Franz estivesse nesse momento ao seu lado, para juntos partilharem seu mundo de encantos.

O movimento ao redor da mesa a despertou brandamente, olhou novamente o mosaico branco, nitidamente enxergou a Casa do Gramado, com todos os seus encantos em seu centro, sentiu que tudo que rodeava a sua casa dormia profundamente.

Ao ocupar a mesa junto aos demais e desfrutar as frutas e a preciosa água Valkíria se sentiu grata à Estrela Vermelha, por ela ter emprestado a sua energia para levá-la de volta, mesmo que brevemente ao seu mundo de encantos.





Como os demais Valkíria também sentia fome, lentamente saiu do transe e se juntou a Franz, para com ele partilhar as frutas e a água.

Nesse momento a mesa tinha se esvaziado, apenas Franz ficou para lhe fazer companhia, enquanto se alimentava trocavam olhares, para eles um simples olhar, a presença, traziam em si todos os conteúdos que eram necessários.

Os dois cachorros se juntaram a eles, estavam pedindo carícias e agrados.

Enquanto desfrutava as frutas Valkíria continuou fixada no mosaico de pedras brancas, sabia ainda haver muitos que ainda não tinha construído significados, e que esses eram passiveis de múltiplas interpretações, mas a sensação de que ainda faltava algo persistia em seus pensamentos.

Ao terminar de se alimentar subiu com Franz ao andar superior e apreciar os mosaicos de lá.

Eram todos muito parecidos, mostravam as construções circulares à noite, alguns deles mostravam ancestrais dos Esquecidos entrando nelas, aparentemente para lá passarem a noite.

Eles se deitavam junto às paredes no andar superior em distâncias idênticas uns dos outros, todos olhando para o céu, à medida que adormeciam uma tênue luz vermelha se projetava deles dirigindo-se ao centro da construção e a envolvendo completamente.

Outros mosaicos mostravam a luz que eles projetavam e entrelaçando com outras vindas das demais construções, envolvendo toda a superfície do planeta.

Um outro conjunto de mosaicos mostrava os asteróides vindos do espaço se desviando quando se aproximavam da luz vermelha que ia para além da atmosfera.

Franz e Valkíria se entreolharam, os Esquecidos que agora habitavam o planeta não tinham compreendido a função das Construções Circulares.

Elas canalizavam a energia dos sonhos, envolvendo a superfície do planeta e assim protegendo-o dessa área conturbada do Universo.

Quando chegaram a esse mundo, os Esquecidos usavam as Construções Circulares como um observatório, apenas para se prevenirem em relação aos inúmeros meteoros que constantemente caiam do céu.

Como tinham deixado de dormir, não mais sonhavam, e assim o planeta ficou vulnerável aos inúmeros meteoros existentes nas proximidades.

Valkíria e Franz ficaram intrigados, o que teria levado os Esquecidos a deixarem de dormir, à medida que liam os mosaicos mais dúvidas surgiam.





Em uma época remota quando Valkíria ainda vivia com os Preocupados e, só tinha contato com Franz através da janela de uma pequena sala na qual costuma passar as tardes entretida com seus livros, ela aprendera que havia uma estreita relação entre a memória e o sono.

Naquele mundo, ainda que todos dormissem, aqueles que não conseguiam ter um bom sono habitualmente tinham as suas memórias confusas ou prejudicadas.

Os Esquecidos, antes de terem tido contato com Valkíria e Franz tinham passado gerações sem ter contato com o mundo dos sonhos, ainda que aparentemente vivessem bem sem dormir, suas lembranças se limitavam ao cotidiano, não mais do que os momentos contidos em pouco mais de um dia.

Valkíria estava confusa, os mosaicos do andar superior da construção circular mostravam que em um longínquo passado os sonhos tiveram um papel fundamental na vida deles e, em nenhum lugar achou vestígios do que os levou a deixar de dormir.

Estava começando a acreditar que uma parte de história deles talvez não tivesse sido contada.

Ficou se perguntando o que os teria levado a deixar de dormir e, assim, permitir que o planeta deles ficasse desprotegido.

Ela e Franz percorreram rapidamente todos os mosaicos existentes no piso superior, mas aparentemente nenhum deles contava essa parte da história.

Sabia ainda existir inúmeros mosaicos a serem interpretados e que eles traziam em si múltiplos sentidos, mas de alguma forma sentia que eles não trariam esse tipo de informação.

Já estava quase anoitecendo, muitas estrelas já brilhavam intensamente, no horizonte a estrela vermelha se pondo produzia um brilho alaranjado que ainda iluminava praticamente toda a face do planeta voltada ela, a estrela vermelha estava imensa, ocupava praticamente todo o horizonte.

Desceram lentamente as escadas em direção à mesa no piso inferior, seus dois cachorros os acompanhavam, queriam participar de tudo, o pequeno de Valkíria estava pedindo colo e carícias.

Os mosaicos na parede ao redor da escada mostrava os Esquecidos se despedindo daqueles que se lançaram às estrelas.

Na mesa Valkíria ficou de frente para o mosaico branco enquanto se alimentava e apreciava a água aos poucos voltou a entrar em transe.





Enquanto se alimentava Valkíria mais uma vez se sentiu caminhando entre as pedras brancas do mosaico, as inúmeras tonalidades de branco formavam sombras e imagens difusas.

Na parte superior do mosaico conseguia distinguir inúmeras espaçonaves dos Esquecidos que deixaram o planeta desaparecendo entre as nuvens, se projetando no Universo vazio indo para muito além das estrelas que podiam ser vistas.

Na linha do chão onde caminhava aqueles que ficaram denotavam um vazio em seus semblantes, vazio esse deixado por aqueles que partiram, pois sentiam que parte de tudo que até então tinham constituído estava deixando o mundo que habitavam.

Agora olhando para o alto do mosaico só via o vazio permeado pelos múltiplos pontos brilhantes das estrelas e corpos celestes que ocupavam o céu, aqueles que ficaram não mais deixaram de olhar para cima, no início talvez à procura de algum ponto em movimento mostrando o caminho seguido por aqueles que se foram.

Depois continuaram olhando à procura de objetos que poderiam cair na superfície de seu mundo.

Em seus semblantes Valkíria lia nas sombras das minúsculas pedras brancas, que os Esquecidos que ficaram deixaram de desejar os sonhos, parece que queriam apagar de sua memória o dia em que aqueles com quem conviviam partiram.

Valkíria sentiu ser essa uma forma de amenizar as saudades e assim buscaram o esquecimento, deixando de sonhar e  constituírem suas recordações.





Quando saiu do transe todos os Esquecidos que agora habitavam a construção circular dormiam profundamente, apenas Franz e os dois cachorros permaneceram acordados, aguardando por ela.

Os olhos de Valkíria ardiam, pela diferença de luminosidade, habitualmente não nos damos conta de quantas tonalidades de branco podem existir, as nuances, sombras que podem formar quando nos detemos a olhar um espaço branco.

Em seu transe ao se fixar no mosaico constituído de pequenas pedras brancas Valkíria trazia à tona pequenos detalhes que não tinha se dado conta em seu cotidiano e assim criava sentidos onde até então predominava dúvidas.

O silêncio, assim como o vazio do mosaico branco permite àqueles que neles adentrarem a ampliação dos sentimentos e pensamentos, tanto em relação a si próprios quando ao mundo que nos rodeia.

A noite estava escura, era a mais escura que presenciavam desde que chegaram a esse mundo, antes de irem ao mundo dos sonhos desejaram subir ao piso superior da construção circular.

Lá, Franz e Valkíria se depararam com uma cena peculiar, os Esquecidos dormiam profundamente, exatamente na mesma posição descrita nos mosaicos que tinha visto durante o dia, de cada um deles era projetada uma tênue luz vermelha que se tornava densa ao se entrelaçar com a luz advinda de outros que também dormiam.

No céu brilhavam muitas estrelas, um tênue brilho, muito distante em um espaço vazio, nitidamente identificaram o brilho da Estrela Azul.

Franz, Valkíria e seus dois cachorros entraram em transe, fixados nela, flutuaram muito alto, muito além da atmosfera do planeta, lá observaram antes de irem ao mundo dos sonhos, os inúmeros corpos celestes que rodeavam o planeta estavam sendo capturados pela Estrela Vermelha, que pulsava intensamente no espaço vazio.

Pequenos meteoros não mais cairiam na superfície do mundo dos Esquecidos.






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