domingo, 20 de fevereiro de 2011

Além da Janela - Parte II



Após a morte do pai de Valkíria, aos poucos ela e a mãe foram perdendo os contatos sociais que tinham antes, mas isso parecia incomodar mais a mãe do que a própria Valkíria.
 
Ainda que não pressionasse efetivamente, Valkíria sentia que a mãe desejava que ela se casasse com um daqueles rapazes que tinham sido seus pretendentes em seu aniversário passado, mas efetivamente isso não estava presente em seus interesses.
 
Assim aos poucos foram perdendo o contato com as pessoas que conheciam.
 
Na pratica Valkíria até preferia a nova forma de vida que estava se configurando, só se incomodava com o seu tratamento, as constantes visitas do médico e, ainda que ele nada comentasse com ela e nem com a mãe, sabia que essas consultas não estavam sendo pagas, e isso a incomodava, possivelmente até mais do que à mãe.
 
Tinham deixado de fazer as festas que eram tão rotineiras, afinal elas tinham por principal finalidade reunir aqueles que de alguma forma se beneficiavam com as atividades que o pai praticava e, na medida em que Valkíria não denotava qualquer interesse pelos de sua idade que compunham seu circulo social, também foram sendo deixadas de ser convidadas a participar destas.
 
Valkíria se realizava em suas visitas às bibliotecas e com seus livros, também ficava muito satisfeita com as crianças que a procuravam pedindo ajuda.
 
Na medida em que se ocupava as pressões sociais e o falecimento do pai praticamente não mais ocupavam seus pensamentos, na mesma proporção os desmaios, devaneios, febres já não mais ocorriam, pareciam que também tinham ficado no passado.
 
Sentia-se curiosa, percebia que havia alguma relação com as conversas que tinha com o médico, mas achava estranho, há muito ele não mais lhe prescrevia qualquer medicamento e, ainda assim sentia-se aliviada.
 
Diversas vezes procurou na biblioteca algum livro que comentasse sobre o tratamento que estava fazendo, mas não encontrava nenhuma referência, tinha decido conversar com o médico a esse respeito, sentia necessidade de entender o que estava ocorrendo com ela mesma.
 
 
 
A conversa com o médico não tardou, afinal viam-se pelo menos três por semana, como resposta ele disse que pouco tinha a lhe acrescentar, era a primeira vez que experimentava um tratamento semelhante, e como Valkíria mesma tinha percebido, diferente do que ocorria normalmente nos tratamentos, nesse a paciente participava intensamente dele.
 
Valkíria comentou ainda sobre o seu incomodo em relação aos pagamentos, que ela sabia que não estavam sendo feitos com regularidade, foi tranqüilizada com a fala de que isso não seria um problema. Sobre sua indignação em relação a não encontrar menções na biblioteca sobre o tratamento que estava sendo feito, ele lhe disse que ainda não havia no país material a respeito, o que ele tinha conseguido era através de um colega no exterior.
 
Ele aproveitou para fazer um trato, em troca dos pagamentos, ainda que conseguisse entender os artigos que o colega lhe mandava, estava tendo algumas dificuldades, pois há muito não praticava a língua estrangeira, assim combinou que o tratamento poderia ser pago com as traduções dos artigos.
 
Valkíria sentiu-se encantada com a idéia e resolveu começar imediatamente, ficou fascinada com o livro sobre os sonhos e concordara que em muitos sentidos, os sonhos que ela dizia ter quando acordada, com o estranho que via no jardim de sua casa tinha muitas semelhanças com sonhos que as pessoas dizem tê-los dormindo.
 
 
 
Também se encantou com a forma que coisas que pareciam esquecidas, vinham à tona na forma de sintomas e, quando fazia associações entre os sintomas e essas coisas que achava estarem esquecidas, ainda que de imediato provocassem angústia, aos poucos essa iria dissipando e, junto com ela, os sintomas associados.
 
Sabia que de alguma forma isso que estava aprendendo com esses artigos, de alguma forma poderia auxiliá-la quando estivesse ensinando as crianças, ao deixar que aprendessem, respeitando as suas possibilidades, o aprendizado não era aversivo, como ocorria com a forma repressora que as escolas utilizavam.
 
Valkíria já estava acostumada com essa forma de ensinar, só não conhecia nenhum estudo que justificasse seu método, alguns professores a criticavam, dizendo que ela acostumava mal as crianças, mas os resultados que alcançava estavam além de qualquer crítica.
 
Sabia que teria dificuldades, temia que algum dia pedissem que ela não mais ajudasse as crianças, mas ela sabia que o principal motivo de essas crianças conseguirem amenizar as suas dificuldades era de que a iniciativa de aprender tinha partido delas próprias.
 
No método repressor que as escolas utilizavam, parece que a iniciativa das crianças não tinham finalidades, como elas ainda não tinham conhecimentos, dependiam de alguém que lhes imprimissem esse conhecimento.
 
Valkíria achava, que todo ser vivo era dotado de conhecimento.
 
 
 
Aos olhos das colegas de Valkíria, de sua adolescência, ela teve uma vida triste, mas sua percepção apontava para o lado inverso, para essas colegas o conceito de felicidade se limitava a um bom casamento, filhos e freqüentar as festas que ocorriam em seus círculos sociais, já para Valkíria essas coisas a entediavam.
 
Também não demorou muito e seu pressentimento em relação à sua escola se concretizaram, ainda que nunca lhe tivessem dito nada, não se sentia mais bem recebida lá, principalmente pela maioria dos professores e também pelos funcionários, a exceção se dava por parte do bibliotecário e pelas crianças que a procuravam, poucos anos após o falecimento do pai lhe informaram que não mais poderia utilizar as salas para ensinar às crianças, mesmo nos horários em que não tinham aulas.
 
O que de imediato a entristeceu, em muito pouco tempo se reverteu em seu auxílio, pois quando essas crianças tinham dificuldades, suas famílias começaram a procurá-la para que as ensinassem em aulas particulares.
 
Assim, mesmo que não conseguisse uma vida social como a que tinha quando o pai era vivo, com isso conseguia ganhar o suficiente para ela e a mãe viverem bem. Ainda sentiu-se mais gratificada pois uma vez que utilizava sua própria casa nesse trabalho, também conseguia atender a outras crianças que pela condição econômica de suas famílias, não conseguiriam chegar às salas de aula, dado o custo da escola.
 
Mas a biblioteca não deixou de freqüentar e todos os dias ficava algumas horas no sofá da sala, em frente à grande janela envidraçada, algumas vezes divagando e outras divagando nas histórias dos livros.
 
Ãhn! O que?
 
Não, não é erro de grafia, é história mesmo, isso que chamam de estória um dia foi realidade na imaginação daquele que a escreveu e sem dúvidas fazia parte da realidade do mundo de Valkíria, por isso é história mesmo.
 
E ainda tinham os artigos que o médico tinha pedido que ela traduzisse, esses textos particularmente a encantavam, tinha certeza que havia uma estreita relação entre o conteúdo desses e a forma como ensinava às crianças, mesmo antes de ter conhecimento desses artigos.
 
 
 
À medida que Valkíria aumentava a sua percepção em relação aos textos que estava traduzindo, mais ela compreendia os por quês de seu sucesso em relação às crianças que ensinava.
 
Na escola enquanto a maioria dos professores se utilizavam da repressão e castigos com aqueles que tinham dificuldades, e isso para algumas crianças criava um tipo de bloqueio, que culminava por ampliar ainda mais as dificuldades, até em outras áreas, que não estivessem diretamente relacionadas com o aprendizado.
 
Valkíria não forçava nenhuma criança, quando estava com elas mantinha-se atenta, não importava o quanto suas dificuldades para alguns fossem elementares. Entendia que o que a questão não eram as dificuldades propriamente ditas, e sim a atenção dispensada a essas crianças, o mais importante.
 
Deixava que elas se exprimissem livremente, e quando se davam conta, estavam entendendo questões que os professores já tinham desistido de fazer com que elas entendessem.
 
Percebeu que o mesmo ocorria em seu tratamento, que estranhamente há muito já não lhe era prescrito mais nenhum remédio, mas ela se sentia à vontade para falar com o médico, não importava qual era o assunto.
 
Algumas vezes passava semanas falando de seu trabalho e das dificuldades das crianças, isso a encantava, e enquanto se ocupava com essas questões, seus antigos problemas: as dores, os desmaios, a ausência do pai, as pressões sociais, acabavam por se tornar problemas menores.
 
Para as crianças parecia ocorrer um funcionamento semelhante, à medida que a repressão, os castigos, as pressões que os pais exerciam eram “esquecidas” por elas, as dificuldades de aprendizagem, que aparentemente eram latentes, se tornavam um problema menor, e assim resolviam os problemas com facilidade.
 
Valkíria começou a se questionar sobre o por que de as pessoas não se darem conta de algo, que agora lhe parecia tão óbvio, por que não só a escola, mas o mundo que conhecia como um todo, tinha que haver tanta repressão, castigos, punições...
 
Efetivamente Valkíria não entendia o sentido desse funcionamento e, aqueles que praticavam esse método também pareciam que não se davam conta do que faziam, seus argumentos sempre eram facilmente desfeitos.
 
 
 
À medida que se ocupava ajudando essas crianças que tinham dificuldades e ainda ensinando a outras que não tinham possibilidade de chegar às escolas, a necessidade das consultas com o médico iam diminuindo, nesse momento ela só o via semanalmente. Aproveitava quando tinha mais algum texto traduzido para ir se consultar.
 
Em uma dessas sessões chegou a comentar que chegaria um dia em que todos, mesmo aqueles que pertenciam às classes mais humildes, iriam ter acesso a um tratamento semelhante, o mesmo também ocorreria com a atenção que ela destinava às crianças que por ela procuravam, dizia que quando isso ocorresse, possivelmente o mundo seria diferente.
 
Foi nesse dia que Valkíria tomou consciência do que um dia iria fazer com sua casa, o único bem que ela e a mãe tinham herdado do pai.
Elas sabiam que o pai tinha inúmeras outras coisas, mas elas nunca conseguiram ter acesso ao que o pai efetivamente possuía. Quando questionava aqueles que administravam os bens junto com o pai, sempre era dito que não se preocupassem, que elas seriam cuidadas e nada lhes faltaria.
 
Valkíria e a mãe, não tinham queixas, mas principalmente Valkíria achava errada essa postura, mas viviam em um tempo que a repressão dominava, e não havia muito espaço para questionamentos.
 
Ela sabia que a estrutura social na qual viviam iria ruir, mas já tinha percebido que a casa onde viviam ainda seria um objeto de grande valor.
 
Na semana seguinte tinha decidido conversar com o médico sobre algo que a incomodava, ele era uma pessoa já de idade avançada e ela sabia que não teria mais muito tempo de continuidade nesse tratamento que tanto bem proporcionava.
 
Quando se encontraram ela confirmou sua suspeita, assim decidiram a partir daí a trabalhar o encerramento de seu tratamento, mas ele a tranqüilizou explicando que ainda não tinha uma data definida para que deixasse o seu trabalho.
 
E, ainda propôs que ela elaborasse um relato mais detalhado dos manuscritos que tinha feito no decorrer dos vários encontros que tiveram. Ele sabia que um dia esses relatos ainda seriam importantes e, sendo Valkíria ainda jovem, poderia reescrevê-los e talvez um dia fosse alvo de publicação, ela poderia escolher o momento adequado para isso.
 
Nesse encontro o médico explicou que fazia parte desse tratamento o relato do que ocorria e, com esses a elaboração contínua da teoria na qual se sustentava.
 
Mais uma vez Valkíria ficou fascinada diante dessa nova possibilidade e, não demorou muito também começou a escrever seus pareceres em relação aos trabalhos que executava com as crianças.
 
 
 
Em um breve espaço de tempo as suspeitas de Valkíria se confirmaram, um estado que apoiava suas condutas em um modelo repressor não consegue manter suas estruturas por um longo período e assim ruiu, como ela imaginava.
 
E, com as ruínas constituídas, também ruíram aqueles que diziam que ela e a mãe não tinham com o que se preocupar assim, em muito pouco tempo a ajuda que recebiam cessou.
 
Felizmente Valkíria não pertencia àquela classe de pessoas que se preocupam demasiadamente e, nesse meio tempo ela se ocupou, com isso não houve espaço para as preocupações e na medida que não recebia mais aquilo que chamavam de ajuda cessou, ela e a mãe não mais precisavam disso.
 
Curioso o que aquelas pessoas chamavam de ajuda, uma vez que as ajudavam com aquilo que em princípio pertencia ao pai dela, que de alguma forma essas pessoas haviam se apropriado e, em parte com a justificativa de as ajudarem, parece que na prática eles estavam principalmente ajudando a si próprios.
 
Um dos problemas de pessoas que se moldam pela repressão é que aqueles que se voltam contra elas, também foram formadas dentro de um modelo repressor, assim utilizam o mesmo modelo para se voltar contra aqueles que os reprimiam, consequentemente acabam por formar um novo modelo, igualmente repressor.
 
Às vezes chega à condição de que as pessoas começam a acreditar que a repressão é inerente às pessoas, criando um ciclo vicioso de trocas de posições entre repressores e reprimidos.
 
O tratamento que Valkíria estava experimentando, a forma que ela utilizava para ensinar as crianças, criava um novo ciclo, que rompia com esse modelo repressor, quebrando a lógica de que a repressão é uma característica inerente e necessária às pessoas.
 
Na prática não deixa de ser um modelo doente, que nada mais é do que um reflexo da doença daqueles que determinam essa forma de ser, seja por parte daqueles que reprimem, ou daqueles que são reprimidos, ambos igualmente adoecidos.
 
 
 
O tempo parecia passar rapidamente, é curioso essa questão do tempo, se ele é regulado pela rotação do planeta, por que há momentos em que ele passa rapidamente e em outros a espera parece interminável, talvez a ligação entre o tempo cronológico e o tempo psíquico seja demasiado tênue e, sem dúvida esse último é um dos elementos que determinam nosso jeito de ser.
 
Valkíria sabia que agora em breve iria lidar com mais uma perda significativa em sua vida.
 
Já há algum tempo suas visitas ao médico que tanto havia se dedicado a ela, tinha passado a ser visitas de uma pessoa que se sentia grata pela atenção recebida. Para Valkíria a gratidão era um sentimento raro, estava entre os mais nobres que conhecia, algo que deveria ser preservado.
 
Tinham combinado a despedida, ele já era uma pessoa idosa, e não mais iria exercer suas atividades, desejava passar seus últimos dias onde nascera, um local que ainda guardava as lembranças de sua infância.
 
Valkíria experimentou um misto de alegria e tristeza por um lado essa pessoa que tanto a ajudara, buscava um lugar que pudesse ser mais feliz em seus últimos dias, por outro sabia estar se despedindo de alguém que lhe era muito precioso.
 
Na despedida Valkíria recebeu um presente precioso, vários manuscritos sobre os pareceres dele, desde o início de seu tratamento e vários textos com os quais ainda não tinha tido contato sobre a técnica usada em seu tratamento.
 
Ele lhe dissera que deixava esse material como uma herança para ela, pois acreditava que ainda teria muito valor e, um dia muitas pessoas ainda poderiam se beneficiar de tratamentos semelhantes.
 
Frisou que como havia mencionado aquele que havia criado essa teoria, que um dia até as classes mais humildes da população ainda teriam acesso a esse tipo de tratamento. O médico sabia que nas mãos de Valkíria tudo que fosse possível seria feito para que tão significativa teoria pudesse chegar às pessoas, sem qualquer tipo de distinção.
 
 
 
O tempo não esperava e continuava passando sem se importar seja com as pessoas ou com aquilo que as rodeia. Se há algo que pode ser considerado democrático é o tempo, ele passa, para todos.
 
O mundo ao redor de Valkíria também se transformava, cada vez em velocidade maior, as fazendas e florestas que rodeavam a cidade estavam desaparecendo, cedendo seu lugar às muitas casas, que a cada dia se multiplicavam.
 
Os arredores da casa em que morava, antes majestosa, começava a ficar cercada de construções cada vez maiores, as fabricas e o comércio estava ocupando os lugares onde antes só haviam residências, o verde dos jardins e das árvores cediam seu lugar ao cinza do des-envolvimento.
 
Pairava no coração de Valkíria que algo estava profundamente errado no caminho que esse mundo seguia, como as pessoas não se sentiam envolvidas com o mundo que as circundam, cada vez mais elas se des-envolviam, como se elas não pertencessem a esse mundo, como se esse mundo não passasse de um simples objeto a ser explorado e dizimado, como se tudo ao redor fosse descartável e estivesse ai só para atender os desejos insanos daqueles que desejam o poder pelo poder.
 
Pensava que essa sede insensata de poder ainda se voltaria contra aqueles que tudo destruíam, esperava que percebessem antes que fosse tarde, que o caminho para uma vida melhor não estava no des-envolvimento e, essa vida melhor só viria quando as as pessoas começassem a sentir a necessidade de se envolver, afinal somos parte de um todo, um Universo infinito, vivo, pulsante. Uma vez que somos constituídos da mesma matéria e energia que compõe esse Universo, quando mais nos desprendemos dele, mais insensatos nos tornamos.
 
 
 
As crises sucessivas pelas quais a sociedade passava oras beneficiavam algumas pessoas e outras vezes as prejudicavam, esse é um dos sinônimos que caracteriza o des-envolvimento, e essas crises também não deixavam de atingir aqueles que um dia já ocuparam as camadas sociais que antes determinavam os caminhos que o mundo ao seu redor deveria seguir e com o decorrer do tempo eram consumidos pelo que eles mesmos criaram, e de determinantes muitas vezes passavam a determinados, pelos mecanismos que essas próprias pessoas criavam.
 
Essas oscilações entre as classes sociais em algumas situações levou Valkíria a reatar amizades das quais no passado tinha sido afastada, em parte por sua escolha por não ter constituído uma família nos moldes tradicionais.
 
Diante das crises essas pessoas que antes haviam se afastado pelos degraus impostos pela cultura do ter, nesse momento estavam aplainados, assim novamente passaram a freqüentar os mesmos lugares. Voltando a se encontrar no cotidiano possibilitando que reatassem as amizades.
 
Como Valkíria tinha por hábito se envolver com as pessoas e o mundo que a rodeava, depois da morte do pai, não chegou a experimentar nenhuma ascensão social significativa e, igualmente não sentia diretamente os efeitos que as crises provocavam.
 
O envolvimento possibilitava um crescimento gradual e contínuo em todos os setores que compunham a sua vida.
 
Valkíria sentia uma profunda solidão, isso muitas vezes a deixava melancólica, mas ao reatar suas antigas amizades percebeu que a melhor companhia da qual poderia desfrutar em sua vida era a companhia dela mesma, à medida que vivia bem consigo própria, não tinha dificuldades maiores em conquistar outras amizades.
 
Com esse reencontro percebeu a solidão na qual estavam inseridas suas antigas amigas e, como faziam em sua adolescência continuavam à procura de pessoas que suprissem essa solidão, muitas vezes em encontros extra conjugais.
 
Sabiam que seus parceiros faziam o mesmo, e elas algumas vezes repetiam a conduta deles, apenas de forma mais discreta.
 
 
 
Ainda que Valkíria conseguisse se complementar ao menos parcialmente, principalmente com as crianças a quem ela ensinava e, eventualmente com as amizades que reatava de sua passada adolescência, seu sentimento de solidão persistia.
 
A única pessoa com a qual conseguiu suprir parte desse vazio que sentia, tinha sido com o médico, foi com ele que percebeu que a solidão era uma questão interna, assim só podia ser suprida de dentro para fora.
 
Sabia que a busca que as pessoas faziam tentando suprir sua solidão com relacionamentos era inócua, o máximo que conseguiam era se suprir momentaneamente e isso provoca intensa angústia na seqüência, aumentando ainda mais o sentimento de solidão.
 
Ainda assim Valkíria se ressentia de alguém com quem partilhar seus sentimentos e pensamentos, ainda que conseguisse isso parcialmente com o médico, agora não mais o tinha, há algum tempo ele já tinha ido, e não havia ninguém que conhecesse que se permitia utilizar tratamentos semelhantes.
 
Talvez Valkíria fosse alguém que não pertencesse à época em que viveu e, de alguma forma também estava deslocada no espaço, possivelmente o tempo e o local no qual pudesse se sentir inserida ainda não tivesse sido criado.
 
Ainda assim não sentia dificuldades maiores em se tornar produtiva no mundo em que vivia, era o tipo de pessoa que conseguiria se adaptar onde quer que estivesse.
 
O mundo ao seu redor tinha se modificado muito desde a sua adolescência, a mãe estava envelhecendo e em breve os papéis se inverteriam, seria ela quem iria cuidar da mãe.
 
A escola que antes sutilmente através de sua direção tinham limitado seu espaço para que ela pudesse ensinar, também passava por transformações e agora aceitavam professoras e, por vezes chegaram a convidá-la para ensinar, mas sabia que se aceitasse teria que se subordinar aos métodos existentes.
 
A repressão ainda perduraria por muito tempo, mais do que ela e muitas gerações após ela, a convivência com esse tipo de ensino ia contra aquilo que Valkíria considerava didático.
 
Ainda transcorreria séculos para que essa metodologia efetivamente se transformasse.
 
É curioso o mundo que nos rodeia, a velocidade com que ele se transforma, é impressionante, a cada piscar de olhos parece que perdemos muitas coisas, mas o modelo repressivo não cede, se transforma em uma velocidade ainda superior, em sutilezas que muitas vezes demoramos para nos dar conta.
 
A repressão está sempre se des-envolvendo, fragmentando as pessoas, seus pensamentos e sentimentos levando igualmente as pessoas a se des-envolverem.
 
Valkíria persistia envolvida com o que fazia, com o trabalho que realizava com as crianças, com as amizades que reatava, se envolvia com todo o material que o médico tinha deixado como herança, trabalhava no sentido de que aquilo que aprendia sobrevivesse e chegasse a todas as pessoas que se sentissem como parte desse mundo, como se fossem parte de um todo, um Universo vivo.
 
 
 
Se há alguma relação entre o tempo cronológico e o tempo psíquico, essa ligação é demasiada tênue, frente às dificuldades e à solidão o tempo transcorria com uma lentidão peculiar, mas as transformações do mundo ocorriam rapidamente.
 
As lembranças do pai, aos poucos se tornaram uma leve sombra nos pensamentos de Valkíria e, para a população local agora não passava de um nome do qual essas pessoas sequer tinham a representação do que ele tinha sido.
 
A luta insana à qual ele havia sido lançado já era passado, no geral praticamente ninguém sabia do que se tratava, mais algumas décadas faria parte dos livros de história, que seria contada com a frieza que é peculiar aos livros de história.
 
Poucos teriam noção do sofrimento que foi imposto àquela parcela da população que tudo o que desejavam era um local para constituírem sua vida.
 
Já o governante insano passaria à história, um dia viria a ter sua face estampada em alguma cédula do dinheiro sujo que move a sociedade, décadas mais tarde.
 
O nome do pai de Vakíria talvez fosse utilizado para batizar alguma rua ou praça, mas além da mulher e da filha praticamente ninguém mais saberia o quanto ele era contra essa luta insana.
 
Talvez o único a ter retratado o sofrimento daquela pobre gente que vivia nos sertões, tenha sido um jornalista, que posteriormente transformou suas reportagens em um romance, que mais tarde viria a ter alguma importância literária.
 
Seriam poucos aqueles que teriam noção dos crimes e injustiças promovidos por aqueles que se utilizavam da repressão para impor o des-envolvimento de suas ideologias irracionais.
 
Ainda, levaria mais tempo ainda àqueles que são objeto dessa repressão insana se derem conta de que eles são complementares nessa política perversa de caráter sádico-mazoquista, é difícil se dar conta de que como reprimidos, são eles próprios que têm o controle desse funcionamento doentio.
 
Esses pensamentos se tornavam cada vez mais claros, à medida em que Valkíria traduzia os artigos que o médico lhe havia deixado como herança.
 
 
 
O médico que tanto havia ajudado, não só Vakíria, mas também parte significativa da população que vivia nas proximidades, cairia no esquecimento.
 
Outros vieram a ocupar o seu lugar, mas ainda iria demorar muitas décadas até que surgissem outros que utilizariam a técnica que ele usou com Valkíria.
 
Agora Valkíria estava sozinha, no sentido de manter viva a técnica que tanto a tinha ajudado e que ela buscava disseminar envolvendo as crianças, que como pano de fundo lhe eram encaminhadas por estarem tendo problemas de aprendizagem.
 
Efetivamente não poderia aceitar o convite da escola, se ela cedesse e fosse trabalhar em um sistema repressor, tudo o que tinha aprendido em seu tratamento, com o seu jeito de ser e, com os incontáveis textos que estudava e traduzia, perderia a vida e o sentido.
 
Repressão e envolvimento são coisas que não se misturam, é como água e óleo, doença e saúde, insanidade e integração...
 
 
 
Com o passar do tempo uma leve angústia passou a freqüentar os pensamentos e sentimentos de Valkíria, sabia que não demoraria e ficaria sozinha, a mãe envelhecia e ela sabia que não a teria por muito tempo, mas ficar sozinha era diferente de solidão há muito tinha tido a percepção de que a melhor companhia da qual poderia dispor em sua vida era a da pessoa que todos os dias via refletida em seu espelho.
 
 
 
Mais uma vez não demorou muito para que a percepção de Valkíria se concretizasse, sua mãe envelhecia e a cada dia se tornava mais dependente, até que um dia pela manhã se deparou com a casa vazia, nesse dia sua mãe não chegou a acordar.
 
Como esperava ela não passou por grandes sofrimentos, por alguns dias a solidão tocou o seu coração, mas não quis suspender suas aulas, alguns dias passados a porta da sala novamente estava aberta, acolhendo as crianças de que precisavam dela.
 
Sabia que tinha chegado o momento de pensar na herança que ela tinha a deixar, uma vez que como a mãe, um dia ela também seguiria por alguma outra trilha, um caminho no qual houvesse muitas árvores e, segundo o seu desejo uma casa, não como a que ela morava, uma que fosse pequena, cercada por um gramado.
 
Valkíria se sentia desorientada, sabia que em algumas décadas, pela localização e as transformações que o mundo a sua volta passava, a casa em que vivia iria ter um valor muito grande, haveria muitas parasitas querendo se apropriar, mas isso estava distante de suas intenções, desejava que o local sobrevivesse, tudo o que aprendeu: seu tratamento, os manuscritos que o médico lhe deixou, os incontáveis textos que traduziu e estudou, a forma como os adaptou, com suas próprias características para transmitir às crianças que tinham dificuldades; não podia cair no esquecimento, como ocorre quando as pessoas deixam esse mundo.
 
Como já tinha lido em algum lugar, mas não nos textos que lia e traduzia. “A certeza de nossa finitude é tão grande que devemos nos imortalizar em vida.” (Sartre).
 
 
 
Quando já fazia um ano que Valkíria morava sozinha, interrompeu suas atividades por alguns dias, foi conhecer uma cidade pequena nas proximidades, era muito parecida com o local onde viveu sua infância, ruas tranqüilas, muitas árvores, praças, um local onde as pessoas andavam a pé.
 
Queria alguns dias para pensar.
 
Ao retornar sentiu-se como se tivesse feito uma viagem no tempo, como tudo tinha se transformado, gente apressada, não se podia mais andar nas ruas, elas estavam tomadas por veículos cada vez mais velozes, mas que a cada dia andavam mais devagar, dado a forma desordenada com que se acumulavam nas ruas.
 
Sabia que chegaria o dia em que as pessoas conseguiriam andar mais rapidamente a pé, do que nessas máquinas paradoxais criadas pela engenharia, mas esse era um tema que pouco a interessava.
 
Na manhã seguinte não deixaria novamente de abrir a porta de sua sala, para atender aqueles que desejavam a sua atenção, acreditava ter achado um caminho para aliviar sua angústia.
 
 
 
Valkíria continuou seu trabalho com as crianças ainda por muitos anos, mesmo quando sua visão e audição começaram a falhar, não deixou de ser procurada.
 
Sentia saudades do tempo em que sentava-se no sofá e ficava lendo, apreciando o jardim da casa, quando ainda era adolescente, lembrava que a rua era tranqüila e raramente passava alguém caminhando, além do jardim tinha muito espaço vazio e árvores, agora todos os lugares estavam tomados.
 
Ao se despedir de seu último aluno, nesse dia, quis reviver sua adolescência e se aconchegou em seu sofá e fazer o que mais gostava, ler.
 
Quando estava tomada pelo sono notou que havia um papel enrolado na soleira da janela, ficou curiosa, não lembrava de ninguém ter entrado na casa trazendo aquele papel.
 
Ao tocar nele suas lembranças da adolescência vieram à tona, eram desenhos, bem conhecidos por ela, agora os reconhecia, eram esboços de sua casa, do terreno e arredores.
 
Podia sentir a música e as pessoas circulando pela casa em seu aniversário na adolescência.
 
O jardim da casa, há muito abandonado e tomado pelo mato parecia estar resplandecente, se perguntou se seria um sonho, mas não podia ser, era tudo muito real, podia até sentir o cheiro de madeira nova proveniente da grande escada que ficava no centro da sala.
 
 
 
No dia seguinte um sentimento de tristeza se apossou do coração de muitos que a conheciam. Valkíria tinha tido uma vida solitária, mas não chegou a conhecer o que era a solidão, ela foi uma companhia muito boa para ela mesma, mas entre aqueles que a conheciam e a procuravam, normalmente falando das dificuldades de seus filhos a partir desse dia tiveram seus sentimentos de solidão ampliados.
 
Uma das mães das crianças, a quem ela ensinava, achou por bem colocar uma corrente com um cadeado no portão da casa de Valkíria, que até então, mesmo com as transformações que ocorriam no mundo ao redor, nunca tinha sido trancado.
 
 
 
Passado alguns dias o cadeado se quebrou, e a corrente caiu ao chão, ficando por lá. Depois de alguns anos deixou uma mancha de ferrugem no chão, que veio a se misturar ao mosaico de pedras que o compunha.
 
A casa era como um grande coração, não tinha sido feita para ficar fechada, muitas das crianças que aprenderam com Valkíria vinham visitá-la, mesmo que não mais entrassem em seu interior, lá se sentiam acolhidas, algumas mantiveram esse ritual até mesmo quando adultas.
 
Até seus descendentes adquiriram o mesmo hábito, ainda que aos olhos de algumas pessoas se assemelhasse a um lugar abandonado, para aqueles que tiveram alguma ligação, era acolhedor.
 
 
 
Tomado pela insônia Franz estava tendo muita dificuldade em dormir, quando finalmente caiu no sono o telefone começou a tocar insistentemente.
 
Decidiu não atender, mas na terceira vez que insistiram desistiu, mais uma vez seu sono estava perdido, já sabia que ficaria irritado o dia inteiro.
 
-Alô.

- Estava dormindo?

- Ah! É você... O que acha?

- É que tenho um trabalho urgente para você.Imagino, mais um daqueles projetos.

-

- Sim, isso mesmo, mas esse é urgente, não pode esperar.

- Sei, entendo, como todos os outros, não é?

- RS RS..

- Estou passando o endereço, vá para lá, assim que acordar.

Um comentário:

  1. Olá George,

    Quantas verdades ditas, que encontramos até hoje no nosso cotidiano.
    Parabéns, está cada vez mais envolvente.... vou correndo para a 3ª parte....
    Muita Luz em seu coração!!!

    ResponderExcluir